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Reforma administrativa e direito adquirido

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01/01/2000 às 01:00
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4. Direito adquirido e alteração abstrata do regime jurídico dos servidores públicos

É pacífica a jurisprudência dos tribunais superiores quanto à inexistência de direito adquirido a regime jurídico por parte dos servidores públicos ocupantes de cargo público. Diz-se, nestes casos, que a relação jurídica que o servidor mantém com o Estado é legal ou estatutária, ou seja, objetiva, impessoal e unilateralmente alterável pelo Poder Público. A disciplina geral da função pública é considerada inapropriável pelo servidor público e, portanto, tida como sujeita a modificação com eficácia imediata tanto no plano constitucional quanto infraconstitucional.

O tema é complexo e obriga a recordar noções fundamentais sobre a função pública. Na doutrina, por todos, confira-se a lição sintética e precisa de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO sobre o tema:

"Em tempos, pretendeu-se que o vínculo jurídico entre o Estado e o funcionário fosse de natureza contratual. De início, entendido como contrato de direito público, afinal, prevaleceu o entendimento correto, que nega caráter contratual à relação e afirma-lhe natureza institucional.

Isto significa que o funcionário se encontra debaixo de uma situação legal, estatutária, que não é produzida mediante um acordo de vontades, mas imposta unilateralmente pelo Estado e, por isso mesmo, suscetível de ser, a qualquer tempo, alterada por ele sem que o funcionário possa se opor à mudança das condições de prestação de serviço, de sistema de retribuição, de direitos e vantagens, de deveres e limitações, em uma palavra de regime jurídico." (Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta, 2ª ed., revista, atual., São Paulo, Ed. RT, 1991, p. 19).

Na jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL é abundante a coleção de acórdãos que adotam a mesma orientação de recusar a existência de direito adquirido a regime jurídico pelos servidores públicos estatutários. Podem ser referidas alguns julgados:

"Constitucional Funcionário Público. Regime de tempo integral. Pela natureza estatutária das relações do funcionário público com a Administração, pode tal regime ser modificado por lei, sem que isto ofenda o principio constitucional da garantia ao direito adquirido" (STF, RE 99.592, Rel. Min. DÉCIO MIRANDA, RTJ 108/382, j. em 7/10/1983).

"A garantia constitucional do direito adquirido não faz intangível o regime jurídico de um servidor do Estado, sujeito ao estatuto especial ante a edição da lei complementar que o modifica" (STF, RE 99.594, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, RTJ 108/785)

"Funcionalismo. Proventos de aposentadoria. Se a lei extingue vantagem ou gratificação que serviu de base ao cálculo de proventos do funcionário aposentado, sem redução dos mesmo, não há ofensa a direito adquirido, uma vez que a garantia constitucional não abrange o regime jurídico" (STF, RE 99.955, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, RTJ 116.1065).

"Lei nova, ao criar direito novo para o servidor público, pode estabelecer, para o cômputo do tempo de serviço, critério diferente daquele determinado no regime jurídico anterior.- Não há direito adquirido a regime jurídico"(S.T.F, R.E n. 99.522, Rel. Min. MOREIRA ALVES, RDA 153/110-113, j. em 1/03/1983).

"O funcionário tem direito adquirido a, quando se aposentar, ter seus proventos calculados em conformidade com a lei vigente ao tempo em que preencheu os requisitos para a aposentadoria. - Não possui, contudo, direito adquirido ao regime jurídico relativo ao cargo, o qual pode ser modificado por lei posterior.-(...) (S.T.F, R.E. n. 92.638, Rel. Min. MOREIRA ALVES, RDA 145/56-61, j. em 6/06/1980).

"Vencimentos: reajuste: direito adquirido Inexistência. Segundo a jurisprudência do STF- que reduz a questão à inexistência de direito adquirido a regime jurídico -, as leis ainda quando posteriores à norma constitucional de sua irredutibilidade - que modificam sistemática de reajuste de vencimentos ou proventos são aplicáveis desde o início de sua vigência. Ressalva do entendimento do relator, expresso no julgamento do MS 21.216.(Gallotti, RTJ 134/1.112)"(STF, R.E. n. 185.966-1, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU de 22.09.1995, Seção I., p.30632).

"Decreto-Lei nº 2.335/87. Plano Verão. Reajuste de 26, 05%. Direito adquirido. Inconstitucionalidade. 1- O Plenário da Corte reiterou o entendimento de que não há direito adquirido a vencimentos de funcionários públicos, nem direito adquirido a regime jurídico instituído por lei. Em se tratando de norma de aplicação imediata, esta não alcança vencimentos já pagos, ou devidos "pro labore facto"(...)" (STF, RE-199753-MG, Rel. Min. MAURÍCIO CORREIA, DJU de 07-06-1996, pp. 19843, j. em 30/04/1996).

No SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de outra parte, orientação idêntica é adotada nos seguintes acórdãos:

"(...) O regime público estatutário, que disciplina o vínculo entre o servidor público e a Administração, não tem natureza contratual, em razão do que inexiste direito a inalterabilidade do regime remuneratório, sendo passível de modificação quando em desacordo com a ordem constitucional. (...).(STJ, ROMS 6756-PB, Sexta Turma, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 18/11/1996, p. 44928, j. em 15/10/1996).

"(...) O regime jurídico estatutário, que disciplina o vinculo entre o servidor público, ativo e inativo, e a Administração, não tem natureza contratual, em razão do que inexiste direito a inalterabilidade do regime remuneratório, sendo passível de modificação quando em desacordo com o teto limite constitucional . Esta colenda Corte consagrou o entendimento de que a pensão especial submete-se a incidência da legislação que determina novos critérios de fixação de seu percentual, não se encontrando imune a incidência do redutor, que deve ser calculado tomando-se como valor limite a remuneração referência do Poder a que esta vinculado o benefício. Recurso Especial conhecido e provido". (STJ, RESP 113698-SC, Sexta Turma, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 01/09/1997, j. em 24/06/1997).

"(...) Militares da reserva - Pretensão de serem promovidos ao posto imediatamente superior - Tese sustentada no fato de terem ingressado no serviço público quando vigia norma que assim permitia, embora outra, existente por ocasião da passagem da inatividade, vedasse tal benefício. - Inexistência de direito adquirido. (....) Militar que entra em serviço ativo, dentro de determinada norma, não tem direito adquirido ao mesmo regime jurídico se outra passa a vigorar no decorrer de sua atividade. (....)" (STJ, RMS 4261-DF, Terceira Seção, Rel. ANSELMO SANTIAGO, DJ 08/09/1997, j. em 13/08/1997).

Essa orientação doutrinária e jurisprudencial, específica quanto ao tema da revisão do regime jurídico do servidor público, não impede a consolidação de vantagens ou a formação de direitos adquiridos frente a inovação legislativa na relação do servidor com o Estado.

Além das vantagens consumadas, isto é, aquelas que produziram no patrimônio individual todos os efeitos de que eram susceptíveis no tempo (ex. férias gozadas), dos "facta praeterita", como as gratificações devidas "pro labore facto", a exemplo da gratificação por substituição em cargo em comissão, anteriormente vencida mas eventualmente ainda não paga, é reconhecida a possibilidade de constituição de direitos adquiridos face à lei quando na situação jurídica individual o fato aquisitivo já tenha decorrido por inteiro sem que tenham se exaurido os seus efeitos, a exemplo do direito à qualificação de certo tempo como tempo de serviço público (STF, RE 82.881, Rel. Min. ELOY DA ROCHA, j. em 5/05/1976) e do direito ao cálculo dos proventos em conformidade com a lei vigente ao tempo em que o servidor preencheu os requisitos para a aposentadoria (STF, RE 92.638, Rel. Min. MOREIRA ALVES, RDA 145/56, j. em 6 de julho de 1980).

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Não se admite, porém, direito adquirido à mera sobrevivência no tempo do regime jurídico regulador da função pública, em benefício de indivíduos determinados, pois foi vencida no plano das idéias e na história a concepção patrimonial da função pública (quando os cargos públicos eram bens negociados, comprados ou doados, e integravam o patrimônio pessoal do seu titular). Atualmente, os cargos adotam o regime legal da função pública, estando à disposição do legislador, nos limites da Constituição, repelindo-se a idéia de que o regime jurídico regulador do exercício da função, em si mesmo considerado, possa ser incorporado ao patrimônio jurídico do servidores ou da Administração.


5. Sentido lógico e jurídico das emendas sobre direito adquirido na Reforma Administrativa

No curso de tramitação da reforma administrativa diversas emendas foram apresentadas visando declarar, mediante enunciado expresso, a idéia da validade de direitos adquiridos face às novas alterações constitucionais.

Nenhuma das propostas foi admitida. Na verdade importavam uma contradição lógica e uma contradição jurídica.

Contradição lógica, em primeiro lugar, pois as emendas enunciavam expressamente, geralmente para uma ou duas matérias, o que se admitia como regra geral. De um lado, se as emendas eram consideradas necessárias para garantia do direito adquirido, obviamente nenhuma garantia prévia era considerada suficiente, bastante por si para a tutela destes direitos, com o que indiretamente se negava a eficácia do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal face ao poder de reforma constitucional. De outro, ao enunciarem a garantia para uma ou duas matérias, "a contrario sensu", as emendas terminavam por excluir da garantia que enunciavam diversas outras matérias também objeto de alteração específica. Nenhum desses efeitos parece congruente com as intenções dos autores das emendas ou com a justificativa que apresentavam segundo a qual "existe direito adquirido contra a reforma da Constituição".

Contradição jurídica, porque as emendas enunciavam a inaplicabilidade a todos os atuais servidores das alterações operadas no regime jurídico de institutos jurídicos inteiros, como a estabilidade, quando se sabe que direito adquirido atina com situações jurídicas individuais e vantagens incorporadas no patrimônio individual. Parece evidente que a persistência no tempo do sistema de desligamento existente no regime jurídico anterior à reforma não conforma autêntica vantagem individual incorporável ao patrimônio jurídico de servidores públicos. É estranho ao conceito jurídico de direito adquirido a idéia de imunidade a alterações normativas abstratas, pois essa garantia não impede a modificação abstrata de institutos jurídicos, não visa bloquear a reforma legislativa. De frisar, por fim, que o regime da estabilidade, antes como depois da reforma, não constitui disciplina imutável ou absoluta, mas deixa margem à inovação do próprio legislador infraconstitucional em matéria de definição de novas faltas graves como hipóteses de perda de cargo.

As emendas dos parlamentares sobre o tema dos direitos adquiridos, no entanto, inegavelmente tiveram o mérito de abrir na sociedade o debate sobre os limites ou o alcance da garantia dos direitos adquiridos. De certo modo, alargaram o próprio debate parlamentar, tornando mais conhecido um problema técnico árduo, considerado por todos um dos problemas mais complexos da ciência do direito. A questão dos direitos adquiridos, no entanto, sempre aberta a novas abordagens e concretizações, parece encontrar solução adequada apenas quando é considerada caso a caso pelo magistrado, a quem cabe em última instância precisar os limites de aplicação de todo direito novo.

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Sobre o autor
Paulo Modesto

membro do Ministério Público da Bahia, professor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Salvador (UNIFACS), professor e coordenador do curso de especialização em Direito Público da UNIFACS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MODESTO, Paulo. Reforma administrativa e direito adquirido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/374. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Este texto foi redigido originalmente em forma de perguntas e respostas e utilizado como subsídio para discussão da PEC 41/97 no Senado Federal. É dedicado pelo autor a Carlos Ayres Britto e Valmir Pontes Filho, "professores eminentes e amigos fraternais, porque me permitiram, com o estímulo da divergência elegante e elaborada, repensar o tema em novas bases". O texto foi também publicado nas seguintes revistas especializadas: Revista de Direito Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, Ed. Renovar, Vol. 211, jan/mar, 1998; Revista Trimestral de Direito Público (RTDP), São Paulo, Ed. Malheiros, Vol. 18, 1998; BDA - Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, Editora NDJ LTDA, ano XIII, 1998; Revista dos Formandos em Direito da UFBA, ano III, Vol. III, 1998, grupo de formandos de 1998.1. Salvador, Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 1998; Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Curitiba, Ed. Juruá, ano 1, n.º 1, 1999.

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