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A nova sistemática do recurso de apelação e a atuação do tribunal sob a óptica do § 3º do art. 515 do Código de Processo Civil

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01/02/2003 às 00:00
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DA NECESSIDADE DE REQUERIMENTO FEITO PELA PARTE PARA QUE O TRIBUNAL POSSA APRECIAR O MÉRITO DA CAUSA

&nbsp        Questão de relevante importância, e que certamente suscitará polêmicas, diz respeito à eventual faculdade do órgão ad quem em proferir julgamento do feito, ainda que não haja requerimento da parte recorrente na apelação, mas desde que verifique a presença dos elementos previstos no § 3º, do artigo 515 do Código de Processo Civil.

&nbsp        Deve ser frisado que o § 3º utiliza-se da expressão pode julgar desde logo a lide desde que presentes os elementos necessários, o que poderia sugerir uma interpretação ampliativa, que, como dito, não é a mais aconselhável para o caso, dado que a inovação vem a restringir a aplicação de princípios outros que são de suma importância para a estabilidade do sistema.

&nbsp        LUIZ ORIONE NETO, em patente defesa do caráter da instrumentalidade e eficiência do processo, em contraposição àqueles que preconizam ser defeso ao tribunal julgar sem que haja requerimento da parte, defende o entendimento de que "A locução sublinhada fala por si só, pois se o tribunal pode desde logo proferir julgamento de meritis, é porque o julgamento per saltum independe de pedido do apelante. Caso contrário, o novel § 3º teria feito menção expressa a essa necessidade de requerimento do apelante." (ob. cit., p. 289).

&nbsp        Todavia, também neste ponto não assiste razão ao autor mencionado. Com efeito, o sistema recursal é dotado de certos princípios, que a despeito da tendência em se buscar meios de conferir maior efetividade à tutela jurisdicional, são inerentes e indissociáveis à correta interpretação dos dispositivos aplicáveis ao caso concreto.

&nbsp        No que concerne à apelação, deve-se mencionar o princípio tantum devolutum quantum apellatum, previsto no artigo 515 do Código de Processo Civil, segundo o qual o tribunal somente deverá conhecer das matérias que forem suscitadas pela parte recorrente.

&nbsp        Note-se que a inovação introduzida pelo § 3º do artigo 515 veio a modificar, em alguns pontos, o entendimento sobre a profundidade do efeito devolutivo conferido ao recurso de apelação, porquanto estará o tribunal autorizado a julgar a questão de mérito, desde que presentes os pressupostos exigidos em lei, o que não significa dizer, de outro vértice, que não mais vige o preceito de que o âmbito de apreciação recursal é delimitado pela parte e não pelo julgador.

&nbsp        Tal entendimento se fundamenta ainda em outro preceito óbvio, de que a parte que busca a reforma de um provimento que julgue lhe tenha sido prejudicial, jamais poderá ver sua situação agravada (reformatio in pejus).

&nbsp        JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA ensina que "Com efeito: se a impugnação só abrange parte da sentença, o caput do art. 515 basta para excluir a cognição do órgão ad quem no tocante à matéria não impugnada. (...) Mesmo fora desse caso, porém, os argumentos de ordem sistemática utilizáveis sob o regime de 1939, para excluir a reformatio in pejus, continuam válidos para o ordenamento em vigor..." (Comentários ao Código de Processo Civil, Volume V, Editora Forense, 8ª Edição, p. 428/429).

&nbsp        Também é esse o entendimento de MANOEL CAETANO FERREIRA FILHO, quando pondera que "Da mesma forma, é princípio fundamental aplicável a qualquer recurso a impossibilidade de no seu julgamento ser o recorrente prejudicado, ou beneficiado além do que fixou como sendo objeto do pedido de nova decisão." (Comentário ao Código de Processo Civil, VolumeVII, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 110).

&nbsp        Ainda, não se pode olvidar que inclusive na esfera recursal aplica-se, sobremodo, o princípio dispositivo, donde é vedada a atividade jurisdicional sem a correspondente provocação da parte.

&nbsp        GLEYDSON KLEBER LOPES DE OLIVEIRA tece interessante consideração a respeito do tema: "Como um dos princípios norteadores do processo civil (mormente na parte referente ao pedido de ação e de recursos) é o dispositivo, o qual está intimamente ligado com os da inércia da jurisdição e da congruência da providência jurisdicional, sendo entendido como o Estado-juiz somente presta a tutela quando é acionado, e rigorosamente nos limites do que é pleiteado, tem-se que deve o apelante formular, expressa e especificamente, pedido para que o tribunal, cassada a sentença terminativa, possa apreciar desde logo o mérito da causa. É dizer, pelo princípio da congruência o tribunal está adstrito ao pedido formulado pelo recorrente, sendo vedada a prolação de decisão infra, extra ou ultra petita, nos termos do art. 460 do CPC." (ob. cit., p. 257)

&nbsp        Não se pode deixar de entender, por conseguinte, que a faculdade prevista na inovação trazida pelo § 3º, condiciona-se à provocação da parte, que caso entenda estar o processo pronto para julgamento, ou não pretenda a produção de provas, fará requerimento neste sentido.

&nbsp        Com efeito, pode ocorrer que a parte, tendo sido declarada carecedora de ação, por falta de interesse de agir, interponha recurso de apelação no sentido de anular a sentença de primeiro grau, mas entenda, da mesma forma, que deva produzir determinadas provas para comprovar a viabilidade de sua pretensão, não sendo lícito ao tribunal, em face dos princípios acima mencionados, emitir juízo de valor sobre o feito sem que haja requerimento neste sentido.

&nbsp        Portanto, pode-se concluir que o tribunal poderá julgar o feito desde logo, caso estejam presentes, de forma concomitante, os elementos previstos no § 3º, do artigo 515 do Código de Processo Civil, bem como, haja requerimento expresso da parte recorrente neste sentido.


CONCLUSÃO

&nbsp        A segurança jurídica sempre foi princípio extremamente privilegiado em nosso ordenamento jurídico, contendo inclusive expressa previsão constitucional, no artigo 5º, inciso XXXV.

&nbsp        A ampla defesa e contraditório, da mesma forma previstos no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, sempre foram respeitados sem qualquer espécie de restrição, como forma de conceder aos participantes do contraditório, todos os meios possíveis para a comprovação da existência de seu direito.

&nbsp        O Estado, por seu turno, através da função jurisdicional avocou para si a responsabilidade de compor os conflitos de interesses, vedando a autotutela, conferindo às partes o mais amplo e irrestrito acesso ao Judiciário, elevando esse princípio ao status de garantia fundamental prevista na Constituição Federal.

&nbsp        Todavia, infelizmente a observação irrestrita e indiscriminada desses princípios, não raras vezes possibilita às partes a utilização indevida do processo como meio de eximirem-se do cumprimento de suas obrigações.

&nbsp        Em contraposição a esse tipo de conduta, o Código de Processo Civil concede ao julgador determinados poderes, como a penalização por litigância de má fé, ou ainda pelo exercício abusivo do direito de defesa ou recorrer, bem como o indeferimento da produção de provas que julgar pertinentes, conforme determina o artigo 130 do estatuto processual civil.

&nbsp        Ainda, não se pode olvidar o grande avanço do reconhecimento da possibilidade de julgamento do feito de forma antecipada, desde que presentes os elementos previstos no artigo 330 do Código de Processo Civil, o que por certo somente vem a contribuir para a eficiência da atividade jurisdicional.

&nbsp        Nada obstante, em alguns casos tem-se mostrado para as partes mais vantajoso submeter-se às penalidades previstas em lei do que adotar o princípio da boa fé, expressamente previsto no artigo 14 do Código de Processo Civil, dado que a morosidade da atividade do Poder Judiciário certamente absorverá esses prejuízos.

&nbsp        Talvez essas circunstâncias, dentre outras que não cabem aqui ser discutidas, tenham impulsionado os pensamentos a respeito da necessidade de se conferir meios de agilizar a entrega do provimento almejado pelas partes, colocando em mais alta monta, por conseguinte, o princípio da efetividade.

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&nbsp        Nessa ordem de acontecimentos é que se deve entender o intuito, ou melhor dizendo, o espírito da reforma, dado que se buscam meios de evitar os efeitos nefastos da ação do tempo na realidade sócio-econômica dos jurisdicionados, que muitas vezes recebem um provimento jurisdicional escorreito, conferido em atenção aos mais importantes princípios, mas desprovido de uma de suas principais características, qual seja a eficiência prática.

&nbsp        Deve-se advertir, no entanto, que o apego extremado a determinada corrente de pensamento pode levar a exageros, que acabam por suprimir preceitos outros, de igual importância no ordenamento jurídico, para que se possa, acima de tudo, entregar uma tutela justa ao cidadão.

&nbsp        Como dito, a inovação trazida pelo § 3º, do artigo 515 do Código de Processo Civil tem o condão de acelerar o julgamento do feito, entregando a tutela jurisdicional de forma mais rápida, mas não necessariamente eficaz e justa ao jurisdicionado.

&nbsp        Diz-se isso porque o julgador, como qualquer ser humano, é passível de falhas, que se verificadas no caso de julgamento direto pelo tribunal, dificilmente poderão ser reapreciadas pelos tribunais superiores, dada a aplicação, por esses, dos verbetes que impossibilitam a rediscussão de questões fáticas.

&nbsp        Realmente, visualizar decisões proferidas pelos tribunais, que não pudessem causar lesão a legítimos interesses das partes, somente seria possível se sua composição se desse integralmente de Juízes Hércules [1], o que infelizmente não é o caso.

&nbsp        Deve-se frisar, que não se busca neste artigo criticar as reformas que vêm sendo introduzidas na sistemática processual, pois elas têm o inegável condão de melhorar a qualidade da prestação jurisdicional, nem tampouco levantar questionamentos a respeito da conduta dos julgadores.

&nbsp        Pretende-se, sobretudo, tecer algumas considerações a respeito de determinados limites que devem ser impostos à interpretação dos dispositivos, no caso o § 3º, do artigo 515 do Código de Processo Civil, de modo a não serem desconsiderados princípios outros, que são tidos como sustentáculos da atividade estatal.


NOTAS

&nbsp        01. O juiz Hércules foi uma figura criada por Dworkin quando trata das soluções para os denominados casos difíceis, onde a atividade cognoscitiva não se restringe tão somente à aplicação ou não das regras, mas a interpretação de princípios como forma de encontrar a solução mais correta dentre as diversas disponíveis, sendo que Hércules sempre encontra a única correta, na real acepção da palavra. No caso em exame existem princípios de natureza constitucional que propugnam pelo acesso dos cidadãos à saúde e à educação, em especial, ao passo que uma lei de natureza infraconstitucional (ordinária), passa a fazer exigências totalmente descabidas e desproporcionais, dissonantes do fim pretendido pelo legislador.

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Sobre o autor
Gustavo Passarelli da Silva

Advogado e Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil na Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul - UFMS, Universidade Católica Dom Bosco - UCDB, Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal - UNIDERP, em cursos de graduação e pós-graduação, de Direito Civil na Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul e Escola da Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Processual Civil e Mestre em Direito e Economia pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro - UGF/RJ, Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires - UBA. Diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia/ESA da OAB/MS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Gustavo Passarelli. A nova sistemática do recurso de apelação e a atuação do tribunal sob a óptica do § 3º do art. 515 do Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3741. Acesso em: 29 mar. 2024.

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