A vítima do delito e sua evolução dentro da criminologia

22/03/2015 às 17:32
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Embora não pretenda trazer todos os elementos de sua evolução histórica, este artigo busca a identificação e a promoção da adequada situação da vítima dentro do sistema legal moderno, analisando, em conjunto, todas fases do Direito Penal.

Conceituar vítima dentro da Criminologia é uma árdua tarefa. Primeiro, porque durante as mais variadas fases do Direito Penal, foi-lhe atribuída diversas concepções. Segundo, em razão de que a existência de debates acalorados ainda é regra no que diz respeito a coincidir seu conceito com as denominações que versam sobre o sujeito passivo do delito.

Por isso, é preciso proceder a uma análise mais cuidadosa, sob pena de não expor as premissas necessárias à compreensão da matéria que aqui será abordada. Embora não pretenda trazer todos os elementos de sua evolução histórica, busca-se a identificação e a promoção da adequada situação da vítima dentro do sistema legal moderno.

De pronto, cumpre salientar que os primórdios do Direito Penal identificam o protagonismo da vítima dentre os outros sujeitos no estudo do crime. Este período é denominado pela ampla maioria dos doutrinadores como a Idade de Ouro da Vítima, tendo em vista que, naquele momento, assumia o epicentro do fenômeno criminal.

No entanto, alerta OLIVEIRA[1] que é preciso dizer que a chamada Idade de Ouro da Vítima não é expressão que indique determinado período histórico. Não há, pois, termo inicial ou final preciso. Isto porque, somente a delimitação temporal final deste estágio pode ser tangível tendo em vista o marco inicial de sua decadência.

Independente a esta celeuma, urge salientar que o alto do protagonismo da vítima coincidiu com a fase da vingança ou justiça privada, onde todo delito produzia um dano, não só àquele atingido diretamente, mas também a todo o seu clã. Este período compreende a formação das mais primitivas civilizações até o fim da Alta Idade Média, devendo ser ressaltadas as legislações que mais fundamentaram esta conclusão:

No Código de Hammurabi (Séc XVIII a.C), uma das mais antigas codificações produzidas pelo homem já conhecidas e com forte influência religiosa, as disposições penais eram severas e aplicadas segundo o princípio do Talião[2], pautadas na pena de morte ou em lesões corporais e mutilação.

Mas o que vale ressaltar é que independente destas cominações, havia também a pena de composição para os crimes de natureza só patrimonial, devendo a vítima buscar reparação do litígio.

Depreende-se este entendimento a partir da consulta ao texto do Epílogo, onde Hammurabi afirma que a solução dos litígios deve ser de iniciativa do ofendido, havendo este de se dirigir a sua estela e em mais lugar algum:

“Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante de minha estátua e ouças minhas palavras preciosas. Que minha estela resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate!”[3]

No entanto, embora reconhecido o direito da vítima e de sua família à aplicação do talião e ao recebimento do valor da composição, este não poderia ser exercido de maneira estranha aos limites impostos pela codificação, o que corrobora com a tese de BETTIOL[4] que entende equivocado se atribuir uma natureza privada do Direito Repressivo na fase histórica anterior à constituição formal do Estado, haja vista que o poder punitivo do pater famílias fundamentava-se numa motivação de natureza pública.

Com princípios basilares semelhantes, pode-se listar o Código de Manu (Séc. XIII a V a.C), o mais bem elaborado texto penal antigo da Índia, também com forte influência religiosa e o Antigo Testamento (de período histórico indeterminado) que fornece vasto horizonte do direito penal hebreu, repousando no talião seu fundamento maior.

Ultrapassado esta fase, convém salientar o período compreendido entre os séculos V e X, onde as legislações já não mais sofriam influências religiosas, houve conflitos de dois sistemas legais: o direito romano e o direito germânico.

O direito romano, fundamentado na Lei das XII Tábuas, foi o marco da laicização do Estado Romano. No Direito Penal, houve a limitação expressa da vingança privada, vez que distinguiu os delitos privados, alçando a eles uma pena eminentemente pecuniária, possibilitando a composição em detrimento da vingança. Em alguns casos menos graves, inclusive, como ressalta FRAGOSO[5], o ofendido aceitava a compensação ofertada pelo agressor, coercitivamente.

Porém, diversas codificações foram dando lugar as XII Tábuas, podendo-se destacar as leis Corneliae e Juliae. Nesta, cabia a vítima gozar de iniciativa para buscar a reparação dos delitos privados e sua realização se dava através de um tribunal civil com imposição de pena pecuniária. Ao Estado, presentado pelo Magistrado, cabia a repressão aos delitos públicos.

Partindo-se desta premissa, verifica-se que o instituto da vingança privada se perfaz cada vez menos dentro da legislação romana, constatando-se sua queda primordial durante o Império, momento em que foi abarcada uma maior quantidade de crimes no rol de delitos públicos, passando o direito penal a ser um instrumento a serviço da manutenção e do reconhecimento da autoridade do Estado, não havendo mais tutela pública de interesses particulares.

Já o direito germânico, essência do direito feudal, trazia em suas disposições mais primitivas a vingança de sangue e a noção da perda da paz[6]. Mas o que diferencia das demais codificações anteriores é a sua concepção individualista, tendo em vista que a paz perdida era exclusivamente da vítima, devendo ela, e apenas ela, e não mais toda a comunidade, que deveria responder ao crime. Assim, havia pelo povo a autorização para a agressão da vítima ao agressor sem, entretanto, dela tomar parte.

Passada esta fase, com o fortalecimento do Estado, este paradigma foi pontualmente substituído pela composição obrigatória, caracterizada pelo dever de compensar o dano de modo pecuniário. Assim, neste momento, o Talião é substituído pela compositio[7].

No entanto, saliente-se que, noutro giro, havia a incidência de outras penas de caráter sacramental, imposta aos delinquentes que ofendiam ao povo como um todo. Crimes de traição e contra a religião figuram neste rol.

No Brasil, pode-se afirmar que até as Ordenações Filipinas, a incidência da vingança privada vigia legalmente. Chega-se a essa conclusão ao analisar que, embora tentassem, naquele momento, criar um monopólio estatal sobre direito de punir, nos títulos XXXVIII e CXXVI, p. 8º, havia a previsão de hipóteses que autorizavam a aplicação deste regime.

Destarte, pode-se concluir que o rumo legislativo já apontava para a atuação essencialmente estatal para a repreensão de delitos, deixando à vítima uma posição periférica dentro do Direito Penal, resultando em sua neutralização[8] dentro do sistema punitivo. Neste prisma, embora ainda permaneça às partes a iniciativa de solucionar o litígio, a elas não mais cabia a repressão ao delito, devendo, no entanto, submeter-se a um poder exterior, que se reveste de poder judiciário e político.

Diante deste cenário, saliente-se a referência feita por FOUCAULT[9] acerca da aparição, a partir do século XII, de um elemento até então estranho a todo o desenvolvimento do sistema, o procurador. Na ocorrência de um litígio, surge esta figura política como representante do soberano, assumindo o papel de dublê[10] da vítima, substituindo seu discurso diante do agressor. A legitimidade para fazê-lo, derivava do fato de ser o soberano o representante da ordem e do poder lesado pelo crime, o que denota a gradativa ratificação do jus puniendi estatal e do crescente ostracismo imposto ao ofendido.

Partindo-se desta premissa, a criminologia elege o agressor como elemento principal do delito, atribuindo-lhe a essência do litígio. Tanto é que, sem adentrar ao mérito das Escolas Penais, a Escola Clássica de Beccaria e Carrara, bem assim a Escola Positivista de Lombroso e Ferri, centravam suas discussões na responsabilidade criminal do delinquente e seus desdobramentos, refutando a vítima um papel meramente circunstancial.

Assim, até o fim da II Guerra Mundial, o ofendido permaneceu em posição de nenhuma transcendência no campo da dogmática penal. Os reflexos deste período, no ordenamento jurídico brasileiro, apesar do longo momento histórico, são sentidos até os dias atuais. Basta analisar o Código Penal Brasileiro vigente, promulgado em 1940, e o Código de Processo Penal Brasileiro em vigor, promulgado em 1941.

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Sem maiores delongas, cumpre ressaltar, a título de exemplo, três dispositivos do Código Repressivo. O art. 25 prevê a hipótese da legítima defesa, situação em que a vítima pode repelir a uma agressão injusta, desde que moderadamente, sendo punida por seu excesso; o art. 100 estabelece o caráter restrito da ação penal promovida pelo ofendido; e, certamente o mais ilustrativo de todos os exemplos; o art. 345 prevê o delito de exercício arbitrário das próprias razões, tipificando a conduta da vítima que faz justiça pelas próprias mãos, ainda que seja legítima sua pretensão.

Nesta senda, parece justo a neutralização da vítima, sob pena de seu comportamento configurar uma delinquência. De fato, permitir ao ofendido administrar a resposta penal seria legalizar[11] reações ilimitadas de vingança, abrindo precedente para um modelo de justiça criminal passional.

Entretanto, em meados do século XX, procedeu-se uma evolução do movimento vitimológico, voltando-se para vítima o foco dos estudos criminológicos. Na Espanha e na Alemanha, autores como Roxin e Schunemann, utilizando os referenciais de Von Heting e de Medelsohn, passam a valorar a conduta do ofendido dentro da análise do crime. A este fenômeno deu-se a nomenclatura de vitimodogmática, escola jurídica que passou a estudar afundo a vítima face ao delito, criando teorias para justificar seus comportamentos quando da ocorrência do crime, as quais por nós serão avaliadas e criticadas num momento posterior.

Referências Bibliográficas:

OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 1999.

BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Tradução e Notas de Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 1977.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: a nova parte geral. Rio de Janeiro. Ed. Forense. 1985.

GARCIA – PABLOS DE MOLINA, Antônio. O que é criminologia?. Tradução de Danilo Cymrot – São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2013.

FILHO, Nestor Sampaio Penteado. Manual esquemático de criminologia. São Paulo. Ed. Saraiva. 2011.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 41ª ed. Ed. Vozes. 2011.

[1] OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal. P. 17

[2] Neste respeito, como salienta Ana Sofia Schmidt de Oliveira “é importante sempre lembrar que, não obstante a utilização da expressão ‘Lei de Talião’ como sinônimo de irracional crueldade, a aplicação de castigos proporcionais ao mal causado constituiu importante evolução.

[3] Epílogo, Col. XLVIII, 1-20.

[4] BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. p. 106: “Quando o Estado não existia ou a sua organização era rudimentar, o pater famílias não agia como depositário de um poder privado, mas como expressão de uma autoridade política e, portanto, pública, sendo a família a primeira forma de organização política.”

[5] Heleno Cláudio Fragoso. Lições de direito penal. p. 26.

[6] Esta expressão, basicamente, é elementarmente trazida pelo princípio do Talião, onde deriva “quem quebrar a paz, merece perder a paz”.

[7] Ana Sofia Schmidit de Oliveira. A vítima e o direito penal. p. 29.

[8] Antônio García-Pablos de Molina. O que é criminologia? p. 27

[9] Michel Foucault. Vigiar e Punir. p. 124

[10] Ana Sofia Schmidit de Oliveira. A vítima e o direito penal. p. 33

[11] O fenômeno de vingança privada, no Brasil, é crescente e alarmante. É comum ser noticiado que as vítimas estão respondendo a altura as agressões sofridas. Neste sentido:  <http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2014/02/jovem-e-amarrado-poste-e-agredido-apos-assaltar-lanchonete-em-itajai.html>

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Sobre o autor
Levy Moscovits

Sócio do Batista & Moscovits - Advocacia Especializada. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSAL. Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Salvador - UNIFACS. Pesquisador do Centro de Pesquisas Jurídicas da Bahia (CEPEJ/UFBA). Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM. Professor de Direito Penal da Faculdade São Salvador (FSSAL) e de cursos preparatórios em Salvador e no interior do estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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