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Os fins sociais da norma e os princípios gerais de direito

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01/02/2003 às 00:00

Resumo:


  • A Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) orienta a aplicação e interpretação das normas jurídicas no Brasil, abordando questões como a integração normativa e a necessidade de considerar os fins sociais e o bem comum.

  • Artigo 5º da LICC é fundamental na prática jurídica, pois exige que o juiz ao aplicar a lei atenda aos fins sociais e às exigências do bem comum, permitindo uma interpretação da lei que considere as mudanças sociais e valorativas.

  • Os princípios gerais de direito são elementos imanentes ao ordenamento jurídico que guiam a compreensão do sistema, sendo utilizados para preencher lacunas e harmonizar a aplicação das normas com os valores e objetivos da sociedade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. A FUNÇÃO DO ARTIGO 5º NA PRÁTICA

Articulada no modelo teórico hermenêutico a ciência do direito deve relacionar a hipótese de conflito e a hipótese de decisão, tendo em vista o seu sentido, assumindo, assim, uma atividade interpretativa, tendo uma função primordialmente avaliativa, por propiciar o encontro de indicadores para uma compreensão parcial ou total das relações, surgindo então uma teoria hermenêutica tendo, dentre outras, a tarefa de: interpretar as normas, verificar a existência de lacuna e afastar contradições normativas.

Vê-se assim que a ciência jurídica exerce funções relevantes não só para o estudo do direito, mas também para a aplicação jurídica, viabilizando-o como elemento de controle do comportamento humano ao permitir a flexibilidade interpretativa das normas, autorizada pelo artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, e ao propiciar, por suas criações teóricas, a adequação das normas no momento de sua aplicação, ou seja, a sua atualização.

A dogmática jurídica possui uma função social, podendo ser vista como uma agência de socialização, por permitir a integração do homem e da sociedade num universo coerente [33], destacando ainda que o ideal dos juristas é descobrir o que está implícito no ordenamento jurídico, descobrindo-o, reformulando-o e apresentando-o como um todo coerente e adequado às valorações sociais vigentes.

LARENZ sustenta que:

"É missão dos tribunais decidir de modo ‘justo’ os conflitos trazidos perante si e, se a ‘aplicação’ das leis, por via do procedimento de subsunção, não oferecer garantias de uma tal decisão, é natural que se busque um processo que permita a solução de problemas jurídicos a partir dos ‘dados materiais’ desses mesmos problemas, mesmo sem apoio numa norma legal. Esse processo apresentar-se-á como um ‘tratamento circular’, que aborde o problema a partir dos mais diversos ângulos e que traga à colação todos os pontos de vista – tanto os obtidos a partir da lei como os de natureza extrajurídica – que possam ter algum relevo para a solução ordenada à justiça, com o objectivo de estabelecer um consenso entre os intervenientes." [34]

Para cumprir tão árdua tarefa deverá o aplicador do direito basear-se no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, vez que contém um parâmetro à atividade jurisdicional, fornecendo as várias trilhas possíveis para uma decisão, que, ao aplicar a norma ao caso concreto, atenda à sua finalidade social e ao bem comum.


5. DO PROCESSO SOCIOLÓGICO OU TELEOLÓGICO

O processo sociológico ou teleológico objetiva adaptar a finalidade da norma às exigências sociais, ao bem comum, conforme prescreve o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Destaca tal processo que a interpretação não pode cingir-se a uma arte dialética pura, desenvolvendo-se como método geométrico num círculo de abstrações, mas sim deve penetrar nas necessidades práticas da vida e da realidade social.

Ao aplicador do direito não se pode permitir quedar-se surdo às exigências da vida, porque o fim da norma não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e, sim, manter contato íntimo com ela, segui-la em sua evolução e a ela adaptar-se, o que resulta assim que a norma se destina a um fim social, de que o aplicador do direito deve participar ao interpretar o preceito normativo. [35]

O processo teleológico procura o fim, a ratio do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu sentido, ou seja, o resultado que ela precisa alcançar com sua aplicação.

Nesse diapasão deverá o intérprete e aplicador atender as mudanças socioeconômicas e valorativas, examinando a influência do meio social e as exigências da época, o desenvolvimento cultural do povo e os valores vigentes na sociedade, concluindo-se assim que as expressões "fins sociais" e "bem comum" do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil devem ser entendidas como sínteses éticas da vida em sociedade, pressupondo uma unidade de objetivos na conduta social do homem.

Tal dispositivo consagra o critério teleológico, sem desprezar os demais processos interpretativos, por conter apenas diretrizes norteadoras ao aplicador do direito. A interpretação legal é essencialmente teleológica, pois deve buscar a finalidade social e valorativa da norma, ou seja, o resultado que se pretende alcançar na sua atuação prática. [36]

Vê-se assim que o bem comum e a finalidade social são fórmulas gerais ou valorativas que visam uniformizar a interpretação, constituindo pontos referenciais para que se aprecie a lei ao aplicar sob o prisma do mesmo momento.

A norma contida no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil indica ao intérprete-aplicador o critério do fim social e do bem comum como idôneos à adaptação das leis às novas exigências sociais e seus valores, constituindo uma espécie de janela da norma, pois propicia a norma a ser aplicada respirar a atmosfera fático-social e valorativa que a envolve, sendo dever do intérprete-aplicador abrir essa janela perscrutando as necessidades práticas da vida social, a realidade sócio-cultural e seus valores. Fazendo isto, estaremos injetando vida a norma, atualizando-a para que se compatibilize com os anseios vigentes da sociedade.

5.1. Eqüidade

Pode-se dizer que o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil está a consagrar a eqüidade como elemento de adaptação e integração da norma ao caso concreto.

A eqüidade apresenta-se como elemento de adaptação e integração da norma ao caso concreto, a capacidade que a norma tem de atenuar o seu rigor, moldando-se ao caso concreto. Nesta sua função, a eqüidade não pretende quebrar a norma, mas adaptá-la às circunstâncias sócio-valorativas do fato concreto no instante de sua aplicação.

Nesse contexto a parêmia dura lex, sed lex merece ser revisitada, pois a finalidade da norma não é ser dura, mas justa; daí o dever do intérprete ao aplicar a norma ao caso concreto, sem desvirtuar-lhe as feições e torcer sua direção, arredondar as suas arestas e adaptar sua rigidez.

Contrapondo-se aos positivistas RÁO já afirmava com sutileza ao tratar da eqüidade e o julgamento contra a lei:

"Adaptar a lei a casos concretos, suprir-lhe os erros e as lacunas, mitigar-lhe a rigidez com escopo de humanistas, de benignitas, não significa ser lícito ao juiz, em princípio, julgar contra legem.

Sem dúvida casos ocorrem, raríssimos, nos quais pode o juiz encontrar-se em face de lei obsoleta, ou manifestamente iníqua, não mais correspondente às condições sociais do momento e cuja aplicação rígida e formal possa causar dano à ordem pública, ou social. Nesta hipótese, melhor será considerar-se a lei inadaptável ao caso concreto, por dissonância com os elementos de fato e socorrer-se, para a solução do conflito, das demais fontes do direito." [37]

Inquestionável que o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil permite ao intérprete-aplicador corrigir a inadequação da norma à realidade fático-social e aos valores positivados, harmonizando o abstrato e o rígido caráter da norma à realidade, mitigando seu rigor, corrigindo-lhe os desacertos, ajustando-a do melhor modo possível ao caso emergente. [38]

Não é demais aqui lançar a seguinte conclusão:

"O juiz é a viva vox juris. A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças’ (STF, Ciência jurídica, 42:58)." [39] (grifo nosso)

A eqüidade, em diversas acepções, é encarada como suprema regra de justiça que os homens devem obedecer, confundindo-se com a própria idéia de justiça, o que não facilita o trabalho, face a indagação que perdura: o que é justiça? [40]

Apenas a título de apresentar manifestação quanto a indagação tem-se:

"A justiça é o elemento moral do direito, moral no sentido espiritual, de teleológico; e é seu princípio e fim, pois sem ela não conceberia o direito, que existe tão só como meio, ou técnica de realizá-la. [...] A justiça ‘é o horizonte na paisagem do direito’, horizonte que é ao mesmo tempo um limite para a paisagem e um ponto de referência para apreciá-la. A paisagem é penetrada de horizonte e vive de claridade que dêle flui; o direito é incarnação da justiça e só tem vida e sentido quando visto à sua luz. A justiça é idéia, é valor e é ideal. [...] Como ideal, a justiça é a aspiração de realizar determinada forma de vida social, que encarne aquêle estado plenário de equilíbrio representado pela idéia de justiça." [41]

Destaca-se também a lição de RAWLS quanto ao objeto da justiça:

"Para nós o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes quero dizer a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais." [42]

Inolvidáveis também são as Escrituras, cabendo aqui destacar o que concerne aos deveres dos juízes: "Segue a justiça, e só a justiça, para que vivas e possuas a terra que o Senhor teu Deus te dá" [43].

Cumpre-nos, por derradeiro, destacar que a despeito da extrema importância da eqüidade na atenuação da rigidez do ordenamento, não podendo ela ensejar, ao operador do direito, a criação casuística de normas que este considera justa ao caso concreto, pois a busca pela justiça não pode conduzir à completa insegurança jurídica, o que devastaria a ordem social.

5.2. Fim social

Não existe norma que não contenha uma finalidade social imediata. Sendo assim, o conhecimento do fim é uma das preocupações precípuas da ciência jurídica, como deve ser do aplicador do direito.

"O fim é a causa final ou aquilo em razão do qual algo se faz." [44]

O princípio da finalidade da norma deve nortear toda a tarefa interpretativa, senão, a aplicação da norma em desconformidade com seus fins, constitui ato de burlar a norma, pois quem desatende ao fim normativo está desvirtuando a própria norma.

Destaca-se que esse fim (telos), não poderá ir de encontro ao bem comum, nem ser anti-social. [45]

Ausente a definição legal de "fim social" o intérprete-aplicador em cada caso concreto deverá averiguar se a norma a ser aplicada atende a finalidade social, que varia no tempo e no espaço, aplicando o critério teleológico na interpretação da lei, sem desprezar os demais processos interpretativos.

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Considerar-se-á assim como fim social o objetivo de uma sociedade, encerrado na somatória de atos que constituíram a razão de sua composição, abrangendo assim o útil, a necessidade social, seus anseios, o equilíbrio de interesses e etc..

Não há norma jurídica que não deva sua origem a um fim, a um propósito, caso contrário, a norma seria uma reunião de palavras vazias.

A aplicação da lei deve seguir a marcha dos fenômenos sociais, recebendo, de forma ininterrupta, vida e inspiração da sociedade, produzindo assim a maior soma possível de energia jurídica.

CARLOS MAXIMILIANO acentua:

"Desapareceu nas trevas do passado o método lógico, rígido, imobilizador do Direito: tratava todas as questões como se foram problemas de Geometria. O julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes do seu veredictum. Se é certo que o juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto; todavia este alcance e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação – o bem social." [46]

Não se pode permitir, como já alardeava IHERING, o retorno aos tribunais da Idade Média, em que as decisões judiciais não estavam em harmonia com o sentido jurídico do povo, pois é no vigor, na energia do sentimento jurídico de cada cidadão, que possui o Estado o mais fecundo manancial de força, a garantia mais segura da sua própria duração. O sentimento jurídico é a raiz de toda árvore; se a raiz nada vale, tudo o mais não passa de uma miragem. Venha uma tempestade e toda a árvore será arrancada pela raiz. [47]

5.3. Bem comum

A noção de bem comum é bastante complexa, metafísica e de difícil compreensão, cujo conceito dependerá da filosofia política e jurídica adotada. Esta noção se compõe de diversos elementos ou fatores, o que dará origem a várias definições. Em regra se reconhecem como elementos do bem comum a liberdade, a paz, a justiça, a segurança, a utilidade social e a solidariedade.

Contudo, para alguns doutrinadores as exigências do bem comum são os elementos que impelem os homens para um ideal de justiça, aumentando-lhes a felicidade e contribuindo para o seu aprimoramento.

O bem comum não é o somatório dos interesses individuais, como pretendia o individualismo, mas sim a coordenação do bem dos indivíduos, segundo um princípio ético. Todo sistema jurídico se inspira numa concepção do bem comum, isto é, nos fins pelos quais a sociedade optou, porque ela os considera bons.

Para TELLES JR. bem comum é a ordem jurídica, por ser o único bem rigorosamente comum, que todos os participantes da sociedade política desejam necessariamente, que ninguém pode dispensar. Sem ordem jurídica não há sociedade; logo somente a ordem jurídica é um bem comum. [48]

Há ainda aqueles que procuram harmonizar, na concepção de bem comum, os dois pólos: o filosófico e o sociológico, entendendo que o bem comum não é o fim do direito, mas da própria vida social – o que concordamos na inteireza. Assim, a fórmula "bem comum" serve como limitador do poder do intérprete-aplicador do direito, fazendo com que, ao prolatar sua decisão, considere as valorações positivadas na sociedade, sem atentar às suas pessoais. A noção de bem comum introduz no direito um princípio teleológico, passando a norma jurídica, sua interpretação e aplicação a ter uma dimensão finalista, colocando-se a seu serviço.

Não é demais aqui trazer à baila o raciocínio conclusivo de DWORKIN:

"A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que queremos ter." [49]

Cobra relevo mencionar que a expressão "exigências do bem comum" contida no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil parece significar mera ociosidade do legislador, pois é evidente que as normas jurídicas se destinam ao bem comum. Como o ordenamento não pode ter palavras inúteis, supérfluas, deve se inclinar para o entendimento de que essa expressão se refere a uma diretriz para a solução de casos duvidosos, em que, diante de mais de um caminho trilhável, o intérprete-aplicador deve seguir aquele que mais consulta utilidade comum dos cidadãos, pois se trata não de uma mera orientação interpretativa, mas de um dever que se impõe ao intérprete-aplicador da norma.

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Sobre o autor
Anderson Sant'Ana Pedra

Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP, Mestre em Direito pela FDC/RJ, Especialista em Direito Público pela Consultime/Cândido Mendes/ES, Chefe da Consultoria Jurídica do TCEES, Professor em graduação e em pós-graduação de Dir. Constitucional e Administrativo, Consultor do DPCC ­ Direito Público Capacitação e Consultoria, Advogado em Vitória/ES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRA, Anderson Sant'Ana. Os fins sociais da norma e os princípios gerais de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3762. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Texto também divulgado na seguinte publicação: Revista forense eletrônica. Rio de Janeiro: Forense. ISSN nº 1678-6777, v. 368, p. 557-565. jul./2003.

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