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Direito: um querer necessário e potencialmente insurgente?

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Sumário: 1.introdução; 2.o direito dogmático moderno; capítulo I- conceito de direito; capítulo II- a visão de stammler: o direito como forma de querer; capítulo III- o direito na atualidade; seção I- o direito nos países de centro; seção II- a realidade nos países periféricos; capítulo IV- a crise do direito estatal moderno: o direito pode ser autopoiético?; 3.a hermenêutica jurídica e os métodos de interpretação e aplicação do direito; capítulo I- interpretação x hermenêutica; capítulo II- os momentos de aplicação do direito; capítulo III- interpretação jurídica; 4.o direito alternativo; capítulo I- o que é o direito alternativo?- diversas acepções; capítulo II- evolução histórica; capítulo III- a proposta do direito alternativo; capítulo IV- jusnaturalismo e direito alternativo; capítulo V- as diversas formas de manifestação do direito alternativo; seção I- o instituído sonegado (positivismo de combate); seção II- o instituído relido (uso alternativo do direito); seção III - o instituinte negado; capítulo VI - o perigo do excesso de liberdade; 5.conclusão; 6.bibliografia


1.INTRODUÇÃO

É crescente a discussão no mundo jurídico a respeito do chamado Direito paralelo, inoficial, conhecido como Direito Alternativo.

Há uma divisão entre os estudiosos com relação ao tema: há aqueles que simplesmente negam essa tendência, há os que defendem a idéia de que ele não ultrapassa a esfera estatal e outros dizem que se trata de um novo Direito.

O conceito dogmático de Direito, adotado pelo mundo ocidental moderno, tem o seu fundamento nos juízos prescritivos e inquestionáveis do dever-ser.

Entretanto, é visível o aparecimento de lacunas que explicitam a ineficácia do Direito oficial. Por isso, surge o Direito Alternativo, diante da necessidade de integração dos vazios legais.

O mundo moderno vive a crise do Direito Dogmático, havendo a ineficácia e inércia estatais, que transformam em ficção a pretensão do monopólio das normas estatais pelo Estado. Ficção esta comprovada quando se percebe que há diversas classes sociais marginalizadas que não têm acesso ao Direito, e que, por necessitarem de normas que regulem seus conflitos, criam o Direito pára-estatal, alternativo.


2. O DIREITO DOGMÁTICO MODERNO

Capítulo I - CONCEITO DE DIREITO

Os conceitos são os conteúdos significativos de determinadas palavras, as quais são exclusivamente os símbolos ou sinais. O conceito é, portanto, a forma do pensamento humano que permite destacar as características essenciais e gerais das coisas, ou os fenômenos que ocorrem na realidade objetiva. Para tanto, são abstraídos os individualizantes e os supérfluos, enfatizando-se uma apreensão de modo intelectual da coisa.

Ao diferenciarmos os conceitos das definições, verificamos que estas são a explicitação dos elementos contidos num conceito. Definimos um conceito procedendo de duas maneiras: estabelecendo um gênero próximo e as diferenças específicas.

Ao longo do tempo, e em sua evolução, o Direito assumiu diversas definições, tanto nominais, que se preocupam apenas com a nomenclatura, como reais, que se preocupam com a realidade.

Desde os romanos, notadamente Celso e Ulpiano, inúmeros doutrinadores versam sobre o conceito de Direito. Dentre alguns ilustres mestres, podemos destacar Dante Alighieri, Hugo Grotius, John Locke, Samuel Puffendorff, Emanuel Kant e Rudolf von Jhering.

Entretanto, dentre diversas possibilidades de definição, a que se notabilizou como a mais moderna e esclarecedora até os tempos atuais foi a de um filósofo alemão do século passado, Rudolf Stammler.

Capítulo II - A VISÃO DE STAMMLER: O DIREITO COMO FORMA DO QUERER

Dentre as diversas conceituações de Direito, preferimos adotar a que nos foi dada por Stammler.

Rudolf Stammler, filósofo alemão, pertence ao movimento neokantista da Escola de Malburgo. Prevaleceu nesta escola a preocupação em determinar os pressupostos das ciências, tendo como padrão o modelo das colocações fundamentais feitas na Crítica da Razão Pura, de Kant.

Stammler empenhou-se em descobrir quais são os pressupostos lógicos ou "formas puras" da Ciência do Direito, bem como os esquemas gerais condicionantes da realidade jurídica enquanto realidade histórica e social.

O filósofo alemão observou o fenômeno da universalidade do Direito, visto que ele existe onde quer que exista o homem. Parte do homem para analisar o fenômeno jurídico, porque no homem estaria a explicação do Direito.

O ponto de partida de Stammler é a consciência, não como entidade psicológica, mas como atitude integral do homem perante si mesmo e perante a realidade em que se situa. O homem teria então duas opções: ou se punha perante as coisas, para contemplá-las (percepção e conhecimento), ou se punha perante a realidade, no sentido de um fim a atingir (forma de querer).

O homem não apenas percebe, mas também explica a realidade, passando do conhecimento sensorial para o científico. Não apenas percebe e explica, mas ele quer segundo fins. Para Stammler, toda atividade humana, seja de ordem moral, religiosa ou jurídica, é sempre um querer, uma expressão do wollen.

Stammler direciona sua conceituação segundo dois princípios: o princípio da causalidade, que se limita a perceber e explicar os fenômenos, e o princípio da finalidade, que seria o prisma do querer, o mundo dos fins ou das finalidades.

O querer de Stammler é optar por um fim e subordinar a esse fim determinados meios. No entender de Miguel Reale, "o querer, em suma, é uma forma de ordenação de conduta, enquanto subordina meios a fins."

Logo, para Stammler, o Direito é um querer (gênero próximo), e as diferenças específicas desse gênero são que o querer é vinculatório, autárquico e inviolável.

Importa afirmar que a norma é instrumento portador de um conteúdo de conduta compartida, provocando conseqüências (sanções) o descumprimento do dever-ser inexoravelmente imposto. Sobre tal, versa Dário Rocha, ao afirmar que "o Direito não vai além da norma enquanto instrumento: o seu conteúdo é de natureza intersubjetiva, mas continua norma, independente desse conteúdo de caráter axiológico, positivo ou negativo, valor ou desvalor."

O Direito, na concepção moderna stammleriana, é um querer vinculatório, porque regula condutas em recíproca interferência, havendo intersubjetividade dos sujeitos contrapostos. É autárquico, porque vale por si mesmo, independente da vontade dos indivíduos. É também inviolável, porque o dever jurídico originário não deve ser descumprido, ou seja, a norma transgredida dispõe de meios para obrigar aquela conduta a que o indivíduo estava obrigado.

Capítulo III -O DIREITO NA ATUALIDADE

Seção I - O Direito nos países de centro

Nos países de centrais, ou ditos desenvolvidos, o que se observa atualmente é que, devido ao surgimento de diversos grupos sociais bastante diferentes entre si, há uma crescente complexidade no Direito Estatal.

Esse fato acarreta o surgimento de outras esferas normativas que se destinem a regular condutas consideradas relevantes àqueles novos grupos. Isso dá origem a um pluralismo jurídico, pluralismo este que ocorre dentro da mesma esfera de validade territorial.

No século XVIII, surgiram os direitos civis, tais como a liberdade de expressão, locomoção e crença, separando a esfera pública da privada. No século seguinte, surgiram os direitos políticos. Já no século XX, houve uma tendência aos direitos sociais.

Nos dias atuais, a realidade demonstra que, nos países desenvolvidos, prega-se a ideologia neo-liberal, que defende a mínima intervenção do Estado, ou seja, este limita-se a assegurar a paz e o bem comum. Conseqüentemente, dada a hipertrofia em que se encontra o Direito estatal, oficial, admite-se a convivência com outras esferas jurídicas, ou seja, há tolerância em relação ao Direito Alternativo.

Seção II- A Realidade nos países periféricos

Quanto aos países subdesenvolvidos, que se enquadram na periferia mundial, a realidade é bem diferente daquela verificada nos países centrais.

Enquanto nos países centrais, há um Direito oficial respeitado pela sociedade e cumprido objetivamente pelas autoridades, de forma justa, em geral, atendendo aos anseios de todos os cidadãos, nos países periféricos o que se vê é um Direito no qual a situação econômica prevalece sobre a jurídica.

Há nesses países subdesenvolvidos, de fato, um processo de desjuridificação no plano da ação. O conceito de juridificação, proposto por Blakenburg, envolve dois prismas: a juridificação no plano da expectativa, que corresponde à criação de normas jurídicas, e a juridificação no plano das expectativas, que seria a efetivação das normas criadas. Há, portanto, nesses países, apenas juridificação no plano das expectativas, pois no plano da ação, muitas vezes, as normas não são eficazes.

Ocorre que, nesses países, a cidadania é algo que existe apenas para alguns, os ditos sobrecidadãos, que são privilegiados do ponto de vista sócio-econômico, integram o sistema judiciário geralmente como autores, sendo os credores ou vítimas, em favor dos quais os direitos são reconhecidos. Do outro lado, existem os subcidadãos, à margem do sistema jurídico, são normalmente os réus, considerados devedores e criminosos, totalmente desprivilegiados em relação aos seus direitos.

Capítulo IV - A CRISE DO DIREITO ESTATAL MODERNO: O DIREITO PODE SER AUTOPOIÉTICO?

O Direito dogmático moderno apresenta como pressupostos lógicos a ascensão da lei como fonte primordial do Direito e a pretensão, por parte do Estado, do monopólio da produção de normas jurídicas.

Entretanto, quando transplantamos essa teoria para a realidade, observamos que, na prática, tais pressupostos não mais são observados. O Direito Estatal vive uma crise, a lei não mais consegue se sustentar como fonte única a regular condutas.

Essa crise, segundo os ensinamentos de Habermas, pode ser encarado sob duas vertentes: a primeira é o de uma crise input, representada pela quebra dos fundamentos do consenso, ético-normativos que regulam as relações intersubjetivas. A segunda vertente seria o de uma crise output, caracterizada pela incapacidade das normas em dirimir os conflitos observados em sociedade.

Essas duas formas de crise manifestam-se em locais diversos: a crise input é característica dos países da modernidade central, desenvolvidos, enquanto a chamada crise output é encontrada nos países subdesenvolvidos ou periféricos.

Essa bipartição dos Estados Modernos em centrais e periféricos é baseada em critérios econômicos, que encontram repercussões jurídicas. Isso caracteriza uma interferência do subsistema econômico no jurídico, ou seja, uma alopoiese. Mas, o que vem a ser alopoiese e autopoiese?

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As noções de alopoiese e autopoiese no foram trazidas por Luhman, em sua Teoria dos Sistemas. Diz-se que um sistema social é autopoiético quando ele é imune à interferência de qualquer outro sistema, ou seja, é auto-referente. É também pressuposto para a dogmatização do Direito a sua autopoiese, isto é, que ele não seja invadido por outros subsistemas sociais.

Entretanto, o que se observa, especialmente nos países periféricos, é a alopoiese no Direito, sendo ele heteroreferente. O subsistema que mais interfere no jurídico, nesses países, é o econômico.

A crise do Direito Estatal periférico vincula-se, principalmente, a esta alopoiese do Direito. Isso não ocorre na modernidade dos países centrais, pois nesses, apesar de não serem totalmente autopoiéticos, é mínima a interferência dos outros subsistemas sobre o jurídico.

Há autores que discordam da existência da autopoiese, mesmo nos países centrais. Entre esses, situa-se Dário Rocha, que afirma ser no Direito necessária a intercomunicação com as ciências afins, sendo necessariamente alopoiético. Para ele, "quando a norma jurídica é interpretada/aplicada diferentemente, em razão de exigências temporo-espaciais, essa alopoiese é positiva; quando a interpretação/aplicação é variável por fatores social, ética ou axiologicamente condenáveis, é negativa a alopoiese.


3. A HERMENÊUTICA JURÍDICA E OS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO

Capítulo I - INTERPRETAÇÃO X HERMENÊUTICA

Diversos autores consideram os termos hermenêutica jurídica e interpretação jurídica como sinônimos.

Na verdade, a Hermenêutica, através da Filosofia do Direito, fixa os processos de interpretação. Já a interpretação é a aplicação da hermenêutica, sendo, portanto, um equívoco substituir um termo pelo outro.

Sobre tal tema, versou Abelardo Torré, ao dizer que "a interpretação dá origem a uma série de problemas, todo o qual permite a confecção de uma teoria geral de interpretação das normas jurídicas, também chamada Hermenêutica Jurídica."

Capítulo II - OS MOMENTOS DE APLICAÇÃO DO DIREITO

O objetivo principal do Direito é a justiça, valor primordial da ciência jurídica.

A aplicação do Direito consiste em se tirar a essência de uma norma jurídica e colocá-la diante de um caso real. É a passagem do abstrato para o concreto, tendo a justiça como ideal.

Para que se chegue a esse ideal de justiça, é necessária uma adaptação que comporte um embasamento crítico e, em seguida, um método de interpretação adequado, para "determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito."

Outro erro é a confusão, cometida por alguns autores, entre os termos aplicação e hermenêutica, pois a primeira objeta o Direito e o fato presente, e a segunda objeta a norma jurídica.

Há duas maneiras distintas de se fazer a aplicação do Direito: a primeira é feita dentro do fetichismo legal. Refere-se à tradicional interpretação jurídica, ou seja, a sua área de atuação restringe-se aos textos legais. O segundo momento abrange as situações em que há insuficiência do Direito dogmático, necessitando-se de novos horizontes, incluindo nesse âmbito o aparecimento do Direito Alternativo.

Capítulo III - INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Os meios de interpretação das normas jurídicas se dividem em dois grandes grupos: o primeiro é o grupo dos chamados sistemas tradicionais, que se caracterizam por serem extremamente legalistas, reduzindo o direito aos dogmas, procurando apenas a vontade do legislador. Estes se resumem a uma visão arcaica da ciência jurídica.

O outro grupo é o dos sistemas modernos, que defendem um combate ao fetichismo legal pregado pelas escolas legalistas. Segundo os adeptos desse grupo, a lei não é mais a única fonte do Direito.

A famosa Escola de Exegese pertence ao primeiro grupo, pois considera a lei como fonte única do Direito e estuda os processos preparatórios da lei. Esta escola nasceu na França, com o Código de Napoleão. Nega os costumes jurídicos e a jurisprudência para a interpretação do Direito.

O declínio dessa escola começa com as mudanças na sociedade. "Assim, quando os anseios sociais estabeleceram uma ruptura entre a lei e o fato social, outras soluções interpretativas se impuseram."

Quando o jurista não mais se satisfaz com a vigência das normas de Direito, surgem os sistemas modernos, visando à adaptação das novas realidades sociais.

Como exemplo desses métodos modernos, temos a Escola Histórico-Evolutiva, de Salleiles, que busca dar nova vida à lei, captando as tradições e princípios sociais do momento de sua aplicação.

Temos também o método da Livre Investigação Científica, defendida por Geny. Segundo essa escola, dever-se-ía reconstruir o pensamento do legislador, não deveria haver uma escravidão aos códigos, recorrendo a outras fontes quando houvesse lacunas.

Outro exemplo é a Escola do Direito Livre, defendida por Hermann Kantorowicz, que propunha uma negação ao legalismo exagerado, defendendo a mais ampla liberdade ao juiz, que deve decidir sem limites na lei.


4. O DIREITO ALTERNATIVO

Capítulo I - O QUE É O DIREITO ALTERNATIVO? DIVERSAS ACEPÇÕES

Recentemente, o tema Direito Alternativo tornou-se alvo de intensos debates. Qualquer tema proposto no meio jurídico que saia da alçada do dogmatismo, é alvo de grandes discussões.

E é por isso que esse direito nascente, insurgente, é visto por muitos como algo que deve ser expurgado do ordenamento jurídico, visto que é considerado ilícito. Outros o consideram apenas um hábito social juridicamente irrelevante.

A própria expressão "alternativo" apresenta uma variedade de sentidos que dificulta a elaboração de grandes doutrinas a respeito de tal tema.

Ordinariamente, segundo Dário Rocha, "alternativa é um esquema resolutivo não convencional de um problema que não teve solução convencional."

Os detratores do Direito Alternativo, na falta de um argumento inicial forte para combatê-lo, criaram uma falsa imagem sobre ele, estereotipando-o como um movimento de jurista contra a lei.

É um grave erro epistemológico fazer tais críticas ao Direito Alternativo, visto que nenhum autor alternativo coloca como base teórica ou prática, até mesmo como um dos requisitos do Direito Alternativo, a anomia, o voluntarismo jurídico e o combate da lei em si. Sequer o método positivo é alvo central da crítica dos operadores jurídicos alternativos. Esta circunscreve-se a enfrentar a teoria e a ideologia juspositiva.

Capítulo II - EVOLUÇÃO HISTÓRICA

O Direito Alternativo remonta suas origens à crise do fetichismo legal. Quando os juristas não mais estavam satisfeitos com a vigência das normas jurídicas, surgiram os métodos modernos de interpretação.

Salleiles e sua escola histórico-evolutiva, que pregava a captação da evolução histórico-social, além de Geny, com sua livre investigação científica, foram antecessores do Direito Alternativo.

Büllow foi o primeiro a defender que a lei não é a única fonte criadora do Direito. É precursor desse movimento o seu escrito Gesetz und Richterant (lei e função judicial). "A idéia básica é de que cada decisão judicial não é apenas a aplicação de uma norma já pronta, mas também uma atividade criadora de Direito."

Outro precursor foi Eugenio Ehrlich, pertencente ao setor constitutivo do movimento do Direito Livre, defensor da idéia de um Direito extra-estatal, sendo provisórios os preceitos legais.

A Escola do Direito Livre alcançou efeitos maiores como Hermann Kantorowicz, que utilizava o pseudônimo de Gnaeus Flavius, e publicou a monografia Der Kam um der Rechtwissenchat (a luta pela ciência do Direito). Kantorowicz defende a chegada do novo movimento, pregando ampla liberdade ao juiz, que deve decidir sem limites na lei. Dizia que deveriam ser abandonados os códigos, quando sua aplicação ao caso concreto contrariasse o ideal jurídico, que era o direito justo, havendo a possibilidade até de se decidir contra legem. Era necessário primeiro ditar o justo e depois procurar a lei. É a justiça acima da lei.

No Brasil, o Direito Alternativo ou Movimento do Direito Alternativo, é um movimento de juristas, isto é, um grupo de pessoas com certos objetivos comuns, que se organizaram no Brasil, para produzir uma nova forma de ver, praticar e ler o Direito a partir de 1990. De início, eram apenas juízes, hoje abrange também advogados, promotores, procuradores, professores e estudantes.

O primeiro passo foi a criação de um grupo de estudos, organizado por alguns magistrados gaúchos. O episódio histórico responsável pelo surgimento do movimento no Brasil ocorreu em São Paulo, outubro de 1990, quando o jornalista Luiz Maklouf publicou no Jornal da Tarde um artigo buscando desmoralizar o grupo de estudos. Pelo contrário, acabou dando início ao movimento, ocorrendo já no ano seguinte o I Encontro Internacional de Direito Alternativo, em Florianópolis, Santa Catarina.

Capítulo III - A PROPOSTA DO DIREITO ALTERNATIVO

O movimento do Direito Alternativo não possui uma ideologia por completo formada, mas sim pontos teóricos comuns entre seus membros e adeptos.

Dentre esses pontos comuns, destacam-se: a não aceitação do sistema capitalista como modelo econômico; o combate ao liberalismo burguês como sistema sócio- político; o combate irrestrito à miséria da grande parte da população e luta por democracia, condições dignas de vida a todos; simpatia de seus membros em relação à teoria crítica do Direito.

Há entre os adeptos do movimento uma unanimidade de crítica em relação ao paradigma liberal- legal do positivismo jurídico, entendido como uma postura jurídica técnica- formal- legalista, apegada irrestritamente à lei.

Os juristas alternativos denunciam que o Direito baseado no fetichismo legal é político, parcial e valorativo. Dizem que o formalismo jurídico é uma forma de escamotear o conteúdo perverso de parte da legislação e de sua aplicação no seio da sociedade; afirmam que o Direito formalista não é coerente e completo, pois é cheio de contradições e lacunas.

No entender de Amilton Bueno de Carvalho, um dos maiores defensores do Direito Alternativo, "ele se caracterizou pela busca de um instrumental prático- teórico destinado a profissionais que ambicionam colocar seu saber na perspectiva de uma sociedade radicalmente democrática. Uma atividade comprometida com a utópica vida digna para todos."

Capítulo IV - JUSNATURALISMO E DIREITO ALTERNATIVO

Amilton Bueno de Carvalho bem define o Direito Alternativo como a "atuação jurídica comprometida com a busca de vida com dignidade para todos, ambicionando emancipação popular com abertura de espaços democráticos."

Ao buscar a interpretação justa do Direito, podemos relacionar o Jusnaturalismo com o Direito Alternativo, através do raciocínio que o Jusnaturalismo, com a afirmação que existe um posicionamento de justo (e portanto moral e ética) anterior ao direito positivado, embasaria o uso do Direito, proporcionando a Justiça nessa visão ética, ou seja, o Direito Alternativo seria uma forma de aplicação dos ideários jusnaturalistas.

Capítulo V - AS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES DO DIREITO ALTERNATIVO

Há diversas formas de analisarmos e classificarmos o Direito Alternativo. Entretanto, a mais comumente usada é a que nos foi trazida por Edmundo de Lima Arruda Júnior, baseada em três divisões: instituído sonegado, instituído relido, instituinte negado.

Seção I- O instituído sonegado (Positivismo de Combate)

O primeiro momento do Direito Alternativo chama-se positivismo de combate ou instituído sonegado. É uma luta dentro do Direito já posto, que procura dar uma eficácia concreta aos direitos individuais e sociais já constantes nos textos e contextos legais. Está inserido mais na visão européia.

É uma luta que visa a colocar em prática os direitos individuais dos mais necessitados, já existentes formalmente. "A matéria- prima de seu labor é o Direito dogmático sonegado a que se pretende atribuir eficácia e não mera vigência."

Na acepção estrita, não podemos considerá-lo Direito Alternativo, visto que é um direito dentro da legalidade, que contudo, é ineficaz.

Seção II- O instituído relido (Uso Alternativo do Direito)

O plano do instituído relido, que também se insere na visão dos países centrais ou desenvolvidos, busca dar uma nova interpretação das normas jurídicas já existentes.

Trata-se de um uso alternativo do Direito estatal, e não de um direito extra- estatal, alternativo. Essa reinterpretação visa a inseri-lo no contexto para o qual ele nasceu, na busca dos ideais de justiça, aplicados ao caso concreto.

Seção III- O instituinte negado

Sob o prisma do instituinte negado, que seria a efetivação de um direito extra- estatal, temos duas divisões: o jusnaturalismo de caminhada e o jusnaturalismo stricto sensu.

O jusnaturalismo de caminhada defende a conquista dos direitos inerentes ao ser humano, quer eles estejam positivados ou não. Restaura a velha dicotomia Positivismo X Naturalismo. Segundo essa corrente, o juiz não deve aplicar normas positivas injustas, pois essas confrontam o Direito Natural, que é superior ao Positivo. "Não é, à evidência, uma negação da Dogmática Jurídica, mas uma posição contra o monismo positivista. Não se trata de novidade, nem de Direito Alternativo."

Aquilo que realmente podemos chamar de Direito Alternativo é o chamado Direito Alternativo stricto sensu. É uma realidade existente na América Latina.

Este direito se preocupa com a participação das camadas populares marginalizadas buscando atender às suas necessidades. Essa população vive "à margem" do Direito Estatal, são os subcidadãos. Vê-se, portanto, a necessidade de normas para a decidibilidade de seus conflitos, e esses subcidadãos acabam por criar seu próprio direito. É um direito paralelo, fruto das necessidades dos marginalizados e da realidade sócio- econômica dos países periféricos.

Capítulo VI - O PERIGO DO EXCESSO DE LIBERDADE

A recorrência aos textos legais é, sem dúvida alguma, um retrocesso no mundo jurídico, pois muitas vezes se afasta do ideal de justiça. Por outro lado, é inadmissível um direito sem dogmas.

É equivocada a noção de que a dogmática é sinônimo de injustiça. Não podemos confundir o Direito Alternativo como fosse um direito bom, justo. O próprio direito alternativo pode ser imoral ou amoral.

A lei garante a estabilidade do direito, e a ampla liberdade pregada pelo Direito Alternativo, pode, algumas vezes, comprometer a segurança do Direito.

Logo, não podemos pregar a primazia absoluta do direito posto ou do alternativo nos dias atuais, pois o primeiro pode estar defasado, e o segundo pode sacrificar a segurança jurídica.


5. CONCLUSÃO

Nos dias atuais, é notável a insuficiência estatal para regular todas as relações intersubjetivas existentes em sociedade. Diante de tal fato, é inevitável a percepção de lacunas no ordenamento jurídico.

Toda norma jurídica deve ser interpretada, por mais coeso que esteja o texto, para que haja uma aplicação ao caso concreto.

O Direito é, de fato, um querer necessário, é uma forma de querer, seguindo uma visão stammleriana, visa a adequar os meios para que se atinja a finalidade primordial do mundo jurídico, que é a justiça.

Dentro do conceito de justiça em primeiro plano, aparece o Direito Alternativo, tão debatido na atualidade. O Direito Alternativo propriamente dito nasce pela inércia do Estado e é mais visível nos países subdesenvolvidos.

Além desse sentido estrito, há outras formas de alternatividade no direito, que são: o uso alternativo (instituído relido, reinterpretação das normas postas), o positivismo de combate (instituído sonegado, busca dar eficiência às normas postas) e o jusnaturalismo de caminhada, que busca os valores superiores do Direito Natural.

Atualmente, a pretensão de monopólio das normas jurídicas por parte do Estado é mera ficção. O Direito Alternativo é uma realidade. Os aplicadores do direito podem decidir contra as leis se as mesmas estiverem incompatíveis com a realidade, sem que isto signifique o fim dos dogmas, pois esses garantem a estabilidade e a segurança jurídica.


6. BIBLIOGRAFIA

  • ADEODATO, João Maurício Leitão. Para uma conceituação de Direito Alternativo. In: Revista de Direito Alternativo. São Paulo: Ed. Acadêmica, n.1, p. 157-174, 1992.

  • BOLLMANN, Vilian. Jusnaturalismo e Direito Alternativo.
    http://www.iaccess.com.br/bollmann/trab03.htm, 15 de outubro de 1998.

  • CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo. Uma Revista Conceitual. http://www.uerj.br/~direito/rqi/07/a070402.htm, 15 de outubro de 1998.

  • GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio: Ed. Forense, 10. Ed., 1984.

  • KANTOROWICZ, Hermann. La definición del Derecho. Madri: Revista do Ocidente, 1964.

  • LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Guebenkian, 2. Ed., 1969.

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Sobre o autor
Marco Aurélio Ventura Peixoto

Advogado da União, Mestre em Direito Público pela UFPE e Professor Universitário em Recife/PE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura. Direito: um querer necessário e potencialmente insurgente?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -973, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38. Acesso em: 26 abr. 2024.

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