Os danos morais coletivos e a interpretação neoconstitucional dos direitos transindividuais

14/04/2015 às 12:04
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O presente artigo tem por finalidade analisar a possibilidade de garantir maior efetividade aos direitos transindividuais através da tutela de danos morais em favor de uma coletividade, em conformidade com as diretrizes do atual Estado Constitucional.

INTRODUÇÃO

O propósito deste artigo é o de refletir, no âmbito dos direitos fundamentais transindividuais, como ocorre a efetiva a tutela jurídica desta classe de direitos e qual é o substrato teórico que lhe confere efetividade. Seu norte é a ideia da evolução histórico constitucional do Estado. A presente proposta baseia-se, principalmente, na contemplação de princípios fundamentais sobrelevados pela Constituição Federal de 1988, em especial do princípio dignidade, como instrumento efetivo para a limitação do poder estatal e realização do Estado Democrático de Direito. 

A possibilidade de indenização por dano moral está prevista na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso V. No entanto, é imperioso notar que o texto constitucional não restringe essa violação à esfera individual. As mudanças históricas e legislativas têm levado a doutrina e a jurisprudência a entender que, quando são atingidos valores e interesses fundamentais de um grupo, seria possível a defesa de seu patrimônio imaterial.

A violação da dignidade de uma coletividade pode impingir sofrimento, dor, a humilhação, violando não só a dignidade como direitos da personalidade, como a honra, valores de uma coletividade, atingidos inadvertidamente do ponto de vista da normatividade jurídica.  E esse sentimento de lesão à dignidade coletiva poderia decorrer de danos ao meio ambiente, patrimônio histórico e cultural, meio ambiente, direito do consumidor entre tantos outros.

Assim sendo, havendo celeuma doutrinária e jurisprudencial, questiona-se ser possível a existência do dano extrapatrimonial a uma coletividade, ainda que não exista lesão, de imediato, a um indivíduo singularmente considerado?

A EVOLUÇÃO HISTÓRICO CONSTITUCIONAL DO ESTADO E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

Os modelos de Estado diferiram e diferem de acordo com os interesses econômicos e políticos das sociedades. A longa trajetória dos direitos fundamentais, cuja essência está no reconhecimento da proteção da dignidade da pessoa humana, tem sua origem no Estado Moderno.  

Com efeito, os modelos paradigmáticos de Estado, quer seja Liberal ou Social de Direito, devem ser  analisados, sobretudo no que diz respeito aos modelos de constitucionalismo construídos ao longo da história.[1] Isto, a fim de compreender, inclusive, como a crise do Estado Social, no Brasil, significou o aumento da conflitualidade social e conduziu a análise da justiciabilidade de direitos, sobretudo os direitos “massificados” (SANTOS, 2010, p.05).

Ou melhor, os modelos de Estados devem ser estudados como sistemas de direitos e princípios constitucionais a serem realizados no contexto percebido de uma dada sociedade (HABERMAS, 1997, p. 123)[2]. É imperioso, dentro dessa ordem de ideias, deixar claro que essa periodização histórica tem como norte a distinção de três grandes períodos no significado sociopolítico[3] nas sociedades modernas e, portanto, está associada aos mecanismos de uso e controle do poder.

Não se pode deixar de vislumbrar, portanto, a evolução dos direitos fundamentais históricos dentro de uma perspectiva limitadora do poder político. Ou melhor, sem analisar o fenômeno do constitucionalismo e a sua consolidação com o Neoconstitucionalismo.

O Constitucionalismo clássico corresponde a um movimento político, social e cultural que, questionava, nos planos político, filosófico e jurídico, os esquemas tradicionais de domínio político, concomitantemente sugerindo a criação de uma forma de ordenação nova e da também nova forma de fundamentação política (LENZA, 2011, p. 55). Tais elementos históricos permitem o reconhecimento de direitos fundamentais ao ser humano, podendo ser classificados em direitos fundamentais de primeira dimensão[4].

As constituições que foram promulgadas no período clássico apenas serviam para estabelecer a estrutura básica do Estado e “proclamando na relação indivíduo-Estado a essência dos direitos fundamentais relativos à capacidade civil e política dos governados, os chamados direitos de liberdade”. (BONAVIDES, 2008, p. 229)

Se por um lado o homem alcançou a condição de sujeito de direitos através da concretização do ideal de liberdade em face do Estado; por outro, essa garantia cingia-se ao campo formal, tendo em vista que, no paradigma constitucional do Estado liberal de direito, a ideia de dignidade da pessoa humana não sofreu alterações sensíveis.

Nesse sentido, houve a evolução dos direitos fundamentais. Tal evolução, denominada por Bonavides de “ascensão histórica” (BONAVIDES, 2004, p.230), ensejou espaço para avanços de uma nova ordem. O Século XX representou, então, a ascensão e consolidação dos denominados direitos de segunda dimensão.

Com o Paradigma do Estado Social, surgiu o constitucionalismo social, e emergiu como um sucedâneo que pretendia dar respostas às novas demandas sociais, ou melhor, para materializar os direitos formais liberais materialmente não concretizados. No entanto, quadra observar que não implicaria isto apenas em acrescer uma gama de novos direitos aos direitos individuais, senão de realizar uma releitura do paradigma liberal e concretizar, de fato, direitos necessários à afirmação da dignidade humana.

A partir de então, após todas as violações de direitos fundamentais decorrentes da Segunda Gerra mundial é que se tornou possível iniciar uma investigação sobre a proteção constitucional dos interesses transindividuais sob os auspícios do Estado neoconstitucional contemporâneo. Isto é, sob o ponto de vista que encara o neoconstitucionalismo como alicerce que sustenta todo o edifício jurídico do entorno desses direitos.

Surge, assim, um novo modelo de constitucionalismo, o neoconstitucionalismo. Para esse novo modelo, a Constituição Federal está no centro do sistema jurídico, cujas normas são dotadas de imperatividade e superioridade e carga valorativa. A partir desse momento, portanto, a transição histórica teve e tem consequências fundamentais na concretização e efetividade de direitos e garantias individuais, mas sobretudo dos direitos sociais e coletivos.

O neoconstitucionalismo e a tutela dos interesses transindividuais no ordenamento jurídico brasileiro.

Muito embora a tutela dos direitos transindividuais, modernamente, encontre resguardo na Constituição Federal de 1988, na fase do neoconstitucionalismo, inaugurando o que a doutrina (ZANETI E GARCIA, 2011, p. 12) chama de “fase da tutela jurídica integral ou tutela jurídica holística dos direitos coletivos”- reconhecidos estes como direitos fundamentais- é certo que a luta pela sua efetividade ainda tem que trilhar um longo caminho.

Segundo a doutrina da evolução dos modelos de estado, no mundo, conforme visto, percebeu-se timidamente o surgimento de uma nova classe de direitos que mereciam guarida. Portanto, acompanhando o movimento histórico da evolução sociopolítica do Estado, a proteção dos direitos transindividuais seguiu igualmente movimentos graduais de evolução, marcados por três fases distintas.

A primeira, denominada “fase da absoluta predominância individualista da tutela jurídica”, estava atrelada ao modelo preconizado pelo código civil de 1916. Nessa fase, a tutela de posições e interesses jurídicos cingia-se à defesa, em nome próprio, de direito próprio ou excepcionalmente dos direitos de familiares. A tutela dos direitos da coletividade restringia-se ao campo do direito penal ou administrativo.

Havia uma nítida separação entre as leis públicas e as leis civis com a priorização das codificações, momento a partir do qual surgiu a era das codificações e fortaleceu, ainda mais, a autonomia privada das relações, através do constitucionalismo clássico que consolidou a primeira dimensão dos direitos fundamentais.

No momento seguinte, com as Constituições de 1934 e 1946, bem como com o advento da lei n° 4.717/65 e da lei n ° 7.347/85, transmudou-se para a “fase da proteção taxativa dos direitos massificados”. Essa segunda fase de proteção dos direitos coletivos caracterizava-se pela proteção fragmentária dos direitos transindividuais. [5]

Percebe-se que pairava, até então, um ar de insegurança doutrinária e legislativa a respeito do tema, no entanto, a promulgação da Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova fase do processo de proteção desses direitos. Os direitos transindividuais passaram a ser reconhecidos como direitos fundamentais, garantindo-se-lhes à inafastabilidade da tutela coletiva, devido processo legal, entre tantas outras conquistas, o que ampliou a tutela de outros interesses e direitos difusos, conforme a redação do art. 129, III da CRFB/88.

O texto de 1988, embora a ideia já se insinuasse nas constituições de 1946 e 1967, vivificou a proteção dos direitos de terceira dimensão, também chamados de direitos transindividuais (LENZA, 2011, p. 52). É importante notar, portanto, que a promulgação da Carta Magna possibilitou a superação da antiga dicotomia público/privado, interpretando-se o direito privado à luz da constituição.

Assim, pode-se falar do fenômeno da constitucionalização do direito civil e a sua consequente descodificação, dando ensejo ao surgimento de diversos microssistemas normativos, sejam coletivos, processuais. Nesse caminhar, verifica-se que os direitos fundamentais de terceira dimensão, transindividuais, ainda não possuem um conjunto de normas e regras específicas devidamente positivadas, apenas um microssistema coletivo em que se deve reunir as diversas normas distribuídas pelas diversas leis presentes no sistema normativo pátrio. [6]

O art. 81 do Código de Defesa do Consumidor consagra a proteção dos interesses e direitos exercitáveis em juízo coletivamente através de três diferentes espécies de direitos transindividuais, os difusos, coletivos stritu sensu e individuais homogêneos. Os dois primeiros tratam de direitos essencialmente coletivos, enquanto o último é denominado como acidentalmente coletivo. (GIDI, 1995, p. 23)

Há muito, já dizia o autor português Boaventura de Souza Santos (2010, p.10) que a evolução do estado constitucional de direito caminha para que as relações jurídicas sejam massificadas. A lesão aos interesses da coletividade não poderia ficar sem proteção, sob pena de violar o senso de dignidade coletiva, igualdade, direitos da personalidade, levando, nos dizeres da Exmª Ministra Eliana Calmon “ao fracasso do direito como forma de prevenir e reparar os conflitos sociais”[7]

O Estado Constitucional atual, também denominado Estado neoconstitucional, dentro de uma nova roupagem histórica que se sobrepôs ao constitucionalismo clássico e social, não mais relaciona simplesmente o constitucionalismo à limitação do poder político, antes de tudo, a idéia central é a de buscar a efetividade das normas constitucionais. Nesse sentido, a eficácia social das normas constitucionais passou de um plano meramente retórico para algo mais concreto, garantístico e efetivo.

Para Walber de Moura Agra, citado por Pedro Lenza, o modelo normativo do neoconstitucionalismo não é o descritivo ou deontológico, senão axiológico. Ou seja, no neoconstitucionalismo a diferença entre as normas constitucionais e infraconstitucionais ocorre no plano axiólogico, não apenas no plano de hierarquia formal, como o era no constitucionalismo moderno. A constituição tem um valor em si. “O caráter ideológico do constitucionalismo moderno era apenas o de limitar o poder, o caráter ideológico do neoconstitucionalismo é o de concretizar os direitos fundamentais.” (2011, p. 60).

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DOS ELEMENTOS DO DANO MORAL E O DANO MORAL COLETIVO

Nessa ordem de ideias, tendo em vista que a Constituição Federal tem consolidada  a proteção dos direitos fundamentais de ordem transindividual, chega-se ao cerne desse artigo, indagando-se mais: seria possível transpor a proteção constitucional aos danos morais também ao dano moral sofrido por uma coletividade?

A possibilidade de se pleitear danos extrapatrimoniais coletivos coaduna com o espírito do neoconstitucionalismo e significa garantir a efetividade do sistema normativo de direitos fundamentais transindividuais. E muitos são os exemplos práticos, inclusive discutida, nos tribunais, sobre essa possibilidade.

No ano de 2008, o Ministério Público, por meio de Ação Civil Pública, pleiteou a condenação de uma empresa que havia fraudado procedimento licitatório a recompor o patrimônio da coletividade lesada, requerendo o pagamento de dano moral coletivo ao município de Uruguaiana-RS (REsp 821.891)[8]. Na ocasião, a 1ª turma do STJ negou provimento ao pedido formulado pelo parquet.

No Recurso Especial 1.057.274, precedente já citado, também foi proposta uma Ação Civil Pública contra  uma concessionária de serviço de transporte público que pretendeu condicionar o uso do benefício de transporte gratuito de idosos a um prévio cadastramento, a contrário sensu da Constituição Federal e do Estatuto do Idoso. Pleiteou-se indenização por dano moral à coletividade, aos idosos lesados com a medida adotada. Foi deferido o provimento.

Esclarece o art. 5, inciso V, da CRFB/88 que: “é assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça têm aventado essa possibilidade no que diz respeito ao dono moral coletivo, mas ainda há grandes discussões e incertezas.

Antes, no entanto, é preciso dizer que a doutrina majoritária, bem como a própria lei, adverte àquele que, por ato ilícito, causa um dano a outrem o dever de repará-lo, nos termos do art. 186 do CC. Está-se diante do instituto da Responsabilidade Civil.  A sua precípua função é reparadora,  presta-se ao fim de tentar minimizar as consequências de um ato ilícito causado contra o lesionado.

 Destarte, não se pode esquecer dos elementos[9] que permitem a caracterização da responsabilidade civil, quais sejam: a conduta, o nexo de causalidade e o dano. Este último, pode ser material ou extrapatrimonial. Assim, entende a doutrina, no esteio de Maria Helena Diniz (1993, p. 48) que o dano:

É a lesão, equivalente à diminuição ou destruição, que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa (física ou jurídica) ou mesmo uma dada coletividade, em detrimento de sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral.

A Constituição conferiu autonomia ao dano moral estabeleceu uma correlação entre dano moral e direitos da personalidade. Até aquele momento o dano moral era tratado como sentimento negativo, qualificação da pessoa na sociedade. Ele era um dissabor, vexame, sofrimento. Se os direitos da personalidade são exemplificativos o dano moral também o é, e estão ancoradas na dignidade da pessoa humana.

Dano moral corresponde à violação dos direitos da personalidade humana[10]. dano moral não é um aborrecimento, mas o aborrecimento pode ser consequência do dano moral, pode agravar o quantum da fixação da reparação. Mas o dano moral terá prova in re ipsa, ou seja, ínsita na própria coisa, portanto não é preciso provar a dor, o vexame, o dissabor, basta que prove a violação da personalidade.

A dor, o dissabor, serve para a quantificação do valor. Diante de todo exposto, concentra-se na linha de intelecção dos direitos transindividuais e está relacionado aos danos morais coletivos enquanto nova modalidade de dano indenizável à luz de pilares constitucionais, tais como a dignidade da pessoa humana.

Os novos nuances interpretativos frutos do neoconstitucionalismo levaram à releitura de diversos institutos, superando a antiga dicotomia público versus privado, passando a permitir a aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais, descodificando diversas áreas do direito, como o direito civil, abrindo a possibilidade de criação de microssistemas normativos.

O legislador constituinte redimensionou a norma privada, fixando os parâmetros fundamentais interpretativos. Em outras palavras, ao reunificar o sistema jurídico em seu eixo fundamental (vértice axiológico), estabelecendo como princípios norteadores da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a solidariedade social (art. 3º) e a igualdade substancial (arts. 3º e 5º), além da erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, promovendo o bem de todos (art. 3º, III e IV), a Lex Fundamentallis de 1988 realizou uma interpenetração do direito público e do direito privado, redefinindo os seus espaços, até então estanques e isolados. Tanto o direito público quanto o privado devem obediência aos princípios fundamentais constitucionais, que deixam de ser neutros, visando ressaltar a prevalência do bem-estar da pessoa humana. (CHAVES E ROSENVAL, 2011, p. 40)

Assim, se as legislações de outrora estiveram marcadas pelo liberalismo, tal como o Código Civil de 1916, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, essas normas individualistas e patrimonialistas colidiam com os novos ideais constitucionais.

O dano moral coletivo relaciona-se com a terceira fase do constitucionalismo, a solidariedade, ele está presente quando há a violação de direitos da personalidade de pessoas determinadas ou determináveis, e, portanto, a indenização deveria ser destinada às vítimas do evento (TARTUCE, 2012, p. 436).[11]

Carlos Alberto Bittar Filho (1994, p. 95) vaticina que o dano moral coletivo:

Trata-se da coletivização ou socialização do Direito, movimento que, característico dos novos tempos, se coloca em posição diametralmente oposta à dos pandectistas do século passado, que tanto se deixaram envolver pelo raciocínio puramente lógico e abstrato, tornando absolutamente exangue o mundo jurídico. É exatamente nesse panorama de renovação generalizada que se encarta a questão  do dano moral coletivo, assunto pouco explorado pela doutrina e absolutamente novel na seara da jurisprudência, mas cuja importância exsurge, de forma insofismável, da própria realidade por ele representada.

Nesse sentido, mostra-se importante verificar como a jurisprudência tem enfretando o tema. A 2ª turma do STJ decidiu recentemente, no REsp 1.328.753-MG[12], que é possível que a sentença condene um infrator ambiental ao pagamento de quantia em dinheiro a titulo de indenização de danos morais coletivos[13]. A ministra Nancy Andrighi do STJ, em julgamento realizado em 2008, no REsp 636.021[14], em seu voto afirmou que:

Nosso ordenamento jurídico não exclui a possibilidade de que um grupo de pessoas venha a ter um interesse difuso ou coletivo de natureza não patrimonial lesado, nascendo aí a pretensão de ver tal dano reparado. Nosso sistema jurídico admite, em poucas palavras, a existência de danos extrapatrimoniais coletivos, ou, na denominação mais corriqueira, de danos morais coletivos.

Essa é a corrente majoritária, a despeito da 1ª turma se posicionar em sentido contrário, AgRg no REsp 1.305.977/MG[15], julgado em 09/04/2013, e REsp 971.844[16], negando a possibilidade de dano moral coletivo. Nessa última linha de entendimento, afirmou-se ser necessário para a ocorrência de dano moral a “sua vinculação com a noção de dor, sofrimento psíquico e de caráter individual, incompatível, assim, com a noção de transindividualidade – indeterminabilidade do sujeito passivo, indivisibilidade da ofensa e de reparação da lesão.”

E que pese o entendimento esposado pela 1ª Turma, data máxima vênia, a própria doutrina oferece solução diversa, apontando sobre a desnecessidade de se desatrelar o dano moral coletivo à dor psíquica. Não existiria essa estreita necessariedade, porquanto se a dor anímica pode ser causa do dano moral, com maior razão qualquer outro abalo no conjunto de valores de uma coletividade, também pede por reparação. Na lição de André de Carvalho Ramos (1988, p. 82) conclui-se que:

A coletividade é passível de ser indenizada pelo abalo moral, o qual, por sua vez, não necessita ser a dor subjetiva ou estado anímico negativo, que caracterizariam o dano moral  na pessoa física, podendo ser o desprestígio do serviço público, do nome social, a boa-imagem de nossas leis, ou mesmo o desconforto da moral pública, que existe no meio social. [...] Assim, a dor psíquica na qual se baseou a teoria do dano moral individual acaba cedendo espaço, no caso do dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço que afeta negativamente toda a coletividade.

Portanto, a ideia por detrás do dano moral coletivo não está adstrita aos contornos aos quais se percebem os danos morais individuais. Essa espécie de dano abarca uma série de valores morais de um grupo de pessoas, tais como direitos consumeristas, meio ambiente, patrimônio cultural, histórico, artístico. Segundo Bittar Filho (1994, p. 55):

[...] dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (damnum in re ipsa).

Esse sentido de “violação da cultura no aspecto imaterial” deve ser ressaltado para que não se cometa equívocos na hora de se decidir judicialmente questões que envolvam os interesses e valores da sociedade. Os tribunais têm um papel importante, dentro de um Estado neoconstitucional, de refrear quaisquer abusos aos direitos extrapatrimoniais de uma coletividade. Assim, percebe-se que o campo de efetivação do dano moral coletivo tem crescido, abrangendo um maior número de situações, seja com relação aos agressores, seja relativamente aos ofendidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todas as recentes discussões trazidas no âmbito da doutrina e jurisprudência relativamente à proteção dos direitos tranindividuais, percebe-se que o Direito, como um todo, tem passando por transformações profundas. A evolução do Estado, hoje denominado Neoconstitucional, prima mais que a mera limitação do poder político, mas concentra-se em seus fins garantísticos – como outrora já diria Canotilho- , na efetivação de direitos fundamentais, seja qual for a sua natureza.

As mudanças sentidas, sobretudo, na reinterpretação de institutos clássicos, como no caso do dano moral coletivo, podem ser sintetizadas pelas palavras “socialização” ou “sociabilidade” em que as alterações constantes havidas no tecido social igualmente devem ser consideradas no mundo jurídico.

E assim deve caminhar a atual jurisprudência e doutrina, visando fortalecer os direitos transindividuais, tutelando os valores culturais em seu aspecto imaterial, garantindo sobremaneira a dignidade da pessoa humana, ou melhor, a dignidade de toda uma coletividade que ao ser lesada, deve sim ser indenizada.

REFERÊNCIAIS

BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro.  Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. v. 12, out./dez. 1994.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2008.

______Do estado liberal ao estado social. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972.

CHAVES, Cristiano. ROSENVALD, Nelson. Direito Civil teoria geral. 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2011.

DIDIER JR, Fredie. ZANETI JR, Hermes. Curso de Direito Processual Civil- Processo coletivo. Salvador: JusPodivm. 2012.

DINIZ, Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 7. ed. aum. e atual. São Paulo: Saraiva 1993. v. 7

GIDI, Antônio. Coisa Julgada e Litispendência em Ações Coletivas, São paulo: Saraiva, 1995.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1997.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15 Ed. rev.,atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011.

RAMOS, André de Carvalho. A ação civil pública e o dano moral coletivo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 25, jan./mar. 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES Maria Manuel; PEDROSO João. Os Tribunais nas sociedades contemporâneas. Disponível em: <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm>. Acesso em: 10 fev. 2015.

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3 ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 1ª ed. Vol. Único. São Paulo:Editora Método, 2012.

ZANETI JR, Hermes. GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direitos Difusos e Coletivos. 3ª ed. Salvador: Editora juspodivm, 2011

[1] Conforme salienta o jurista Lênio Streck (2007, p. 23), o  Estado Moderno se estruturou das mais variadas formas, segundo as concepções políticas, filosóficas, sociais e econômicas de cada período. Para permitir uma compreensão mais abrangente, o estudo histórico estará centrado nos paradigmas de Estado Liberal e de Estado Social e a sua evolução para a concretização de direitos de massa, ou direitos de uma coletividade.

[2] A importância desta classificação pode ser percebida através do entendimento habermasiano de que “um paradigma de direito delineia um modelo de sociedade para explicar como direitos e princípios constitucionais devem ser concebidos e implementados para que cumpram naquele dado contexto as funções normativamente a eles atribuídas”.

[3] Como alerta Boaventura, essa evolução tem alguns pontos em comum nos diferentes países, mas, por outro lado, essas mesmas razões sugerem que a evolução varia significativamente de Estado para Estado, consoante a posição no sistema interestatal e da sociedade nacional a que respeita no sistema da economia-mundo. (SANTOS, 2010, p. 5)

[4] Quadra observar que existe uma critica ao uso do termo gerações, pois confere a ideia de que existe uma linha sucessória onde, a primeira geração é substituída pela segunda, e assim sucessivamente. Dimensão significa extensão em qualquer sentido. Ou seja, dimensão de direitos passa a idéia de continuidade, não mais de substitutividade, como o termo gerações passa.

[5] Ainda predominava a tutela individualista de direitos, marcada pela tradição patrimonialista, entretanto já era possível vislumbrar a tutela do patrimônio público por meio da ação popular e da ação civil pública para a decretação de nulidade dos atos lesivos ao patrimônio público, meio ambiente, consumidor, bens e direitos de valor histórico e artístico, estético, turístico e paisagístico. Assim, os direitos transindividuais engatinhavam no cenário normativo pátrio, pois, nesse momento, consolidavam-se aqui os direitos de segunda dimensão, os direitos sociais.

[6] A despeito da tentativa de criação de um Código Modelo de processos Coletivos para Íbero-América, aprovado nas jornadas do Instituto Íbero Americano de direito processual – na Venezuela, em 2004- nota-se que o Brasil, mesmo não tendo uma legislação que regule tais direitos, utiliza-se de um espírito interpretativo-constitucional para a sua aplicação.

[7] REsp 1.057.274, Rel Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2009, Dje 26/02/2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%201057274

[8] REsp 821.891/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/04/2008, DJe 12/05/2008 Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=%28dano+moral+coletivo%29+E+%28%22Primeira+Turma%22%29.org.&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=17#DOC17

[9] Tema este que, a despeito de sua importância não se pretende aprofundar neste artigo.

[10] Nas lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, configura-se dano moral pela simples e objetiva violação a um dos direitos da personalidade, é o dano ínsito ao fato (in re ipsa) caracterizada pela violação da dignidade da pessoa humana (CHAVES E ROSENVAL, 2011, p. 201).

[11] No que diz respeito aos novos danos indenizáveis, existe ainda uma diferenciação entre os danos sociais e os danos morais coletivos. Aqueles são decorrentes de lesão a bens jurídicos de pessoas indeterminadas, toda a sociedade é vítima da conduta, portanto dizem respeito á violação de direitos difusos; enquanto que nos danos morais coletivos restringem-se á proteção dos direitos coletivos strito sensu e dos individuais homogêneos.

[12] REsp 1.328.753-MG, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/5/2013. Disponível em: www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=microssistema&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=37#DOC37

[13] Nesse mesmo sentido, a 3ª turma já havia decidido, em 2012, REsp 1.221.756-RJ que um banco pode ser condenado a pagar reparação por dano moral coletivo, em ação civil pública, pelo fato de oferecer, em sua agência, atendimento inadequado aos consumidores idosos, deficientes físicos e com dificuldade de locomoção.

[14] Resp 636.021/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/10/2008,

Dje 06/03/2009. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%20636021

[15] AgRg no REsp 1305977/MG, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09/04/2013, DJe 16/04/2013. Disponível em:<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=%28dano+moral+coletivo%29+E+%28%22Primeira+Turma%22%29.org.&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=3#DOC3

[16] REsp 971.844/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/12/2009, DJe 12/02/2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=%28dano+moral+coletivo%29+E+%28%22Primeira+Turma%22%29.org.&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=11#DOC11

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Sobre a autora
Daniela Vieira de Melo

Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Anhaguera.Graduada pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Advogada.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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