A responsabilidade penal da pessoa jurídica

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15/04/2015 às 16:39
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Trata-se de artigo que aborda a possibilidade de se apontar responsabilidade penal a uma pessoa jurídica.

1 - INTRODUÇÃO

Há algum tempo, foi levantada a questão acerca da possibilidade de se apontar responsabilidade penal a uma pessoa jurídica, que então poderia ser considerada como sujeito ativo de determinado delito.

Tal entendimento ganhou relevância e gerou ainda mais polêmica com o advento da Constituição Federal de 1988, quando houve a positivação em dois artigos (art. 173, § 5º e art. 225, §3º) da possibilidade de se responsabilizar penalmente a pessoa jurídica que praticasse infração à ordem econômica, financeira e ao meio ambiente.

Atualmente, é possível perceber a importância desse tema, uma vez que a sociedade moderna é marcada pela globalização e pela massificação do consumo, estando em posição de destaque justamente as pessoas jurídicas, as quais poderão, no exercício de suas atividades, incidir em sérias infrações de repercussão no âmbito penal.

Com efeito, tal problemática alcança considerável proporção no âmbito da tutela dos chamados bens jurídicos supraindividuais, surgindo, portanto, a indagação se a legislação penal pátria estaria apta a atuar com eficácia, de forma preventiva e repressiva dentro dos parâmetros constitucionais.

O presente artigo visa desenvolver, por meio de conceitos e teorias, a responsabilidade ou não das pessoas jurídicas.

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas não restaram silentes quanto à responsabilidade da pessoa coletiva.

As primeiras menções à uma responsabilidade coletiva foram feitas pelo Código Criminal do Império (art. 80) e pelo Código Penal da República (art. 103, parágrafo único). Senão vejamos:

Art. 80, Código Criminal do Império.

“ Se este crime fôr commettido por Corporação, será esta dissolvida; e se os seus membros se tornarem a reunir debaixo da mesma ou diversa denominação com a mesma ou diversas regras.

Penas – aos chefes, de prisão por dous a oito annos; aos outros membros, de prisão por oito mezes a três annos.”

Art. 103, parágrafo único, Código Penal da República

“ Se este crime for comettido por corporação, será esta dissolvida; e, caso os seus membros se tornem a reunir debaixo da mesma, ou diversa denominação, com o mesmo ou diverso regimen:

Pena – aos chefes, de prisão cellular por um a seis annos; aos outros membros, por seis meses a um anno.”

Destaca-se o ensinamento de Sérgio Salomão Shecaira abaixo transcrito acerca da contradição entre os dois mencionados dispositivos com o art. 25[1], do Código de 1890:

“Em nosso entender, a menção feita à responsabilidade penal de corporações resulta muito mais de má redação do dispositivo citado do que propriamente da incorporação do princípio ao seu texto legal. Não se pode entender que, sob o influxo das idéias liberais então imperantes, o legislador pudesse pensar em responsabilidade das empresas e não de seus representantes.”[2]

Tal aparente contradição foi retomada em 1932 na Consolidação das Leis Penais do Des. Vicente Piragibe.

De acordo com Shecaira, até 1988 – quando surge no ordenamento jurídico pátrio a nova Constituição Federal, não se pode falar em responsabilidade penal da pessoa jurídica no direito brasileiro:

“tal conclusão decorre não só de um estudo sistemático das normas penais em vigor no Brasil, mas da própria análise contextual do sistema de produção de bens aqui predominante, a partir da segunda metade do século XIX, que consagrava o individualismo e as idéias libertárias trazidas ao mundo de forma mais enfática pela Revolução Francesa de 1789”.[3]

 Assim, foi a partir dos artigos 173, § 5º [4], e art. 225, § 3º [5], ambos da Constituição Federal de 1988 que a responsabilização penal da pessoa jurídica foi sentida pela primeira vez de forma expressa.

No âmbito da legislação especial, importante destacar a Lei n. 9.605/98 que estabelece normas e tipifica condutas lesivas ao meio ambiente, responsabilizando penalmente não só a pessoa física, mas também a pessoa jurídica infrator.

3. SUJEITO ATIVO, CAPACIDADE PENAL e PESSOA JURÍDICA

Inicialmente, pode-se conceituar sujeito ativo em âmbito penal como sendo aquele que pratica a figura típica descrita na lei.

Neste sentido, tem-se o seguinte ensinamento de E. Magalhães Noronha: 

“(...)É o homem, é a criatura isolada ou associada, isto é, por autoria singular ou co-autoria. Só pode ser agente ou autor do crime.”[6]

Damásio de Jesus, acerca da capacidade penal, traz o seguinte conceito baseado em Petrocelli:  

“segundo a lição de Petrocelli, capacidade penal é o conjunto das condições exigidas para que um sujeito possa tornar-se titular de direitos ou obrigações no campo de Direito Penal.”[7].

Assim, questiona-se: a pessoa jurídica possui capacidade penal e se pode efetivamente delinquir?

Para que possam ser dirimidas tais dúvidas, torna-se necessária a análise do próprio conceito de “pessoa jurídica”.

3.1 – Conceito de Pessoa Jurídica

Dentre as várias teorias que tratam do assunto, se faz necessária a análise da teoria da ficção e a da realidade (ou organicista),

3.1.1 – Teoria da Ficção

Elaborada por Savigny, tal teoria predomina nos países cujo direito tem origem romano-germânica.

A personalidade natural é uma criação do direito, sendo que este a recebe das mãos da natureza, já formada, e limita-se a reconhecê-la, enquanto a personalidade jurídica, somente existe por determinação da lei e dentro dos limites por esta fixados.

Faltam-lhe, pois, os requisitos psíquicos da imputabilidade. Não tem consciência e vontade próprios. É uma ficção legal.

Destarte, não tem capacidade penal e, por conseguinte, não pode cometer crimes. Quem poderia responder penalmente seriam aqueles que pela pessoa jurídica atuam (membros diretores, representantes, dentre outros).

Para muitos esta teoria estaria ultrapassada.

3.1.2 – Teoria da Realidade (ou organicista)

A maior referência de tal teoria foi Gierke, que entendeu existirem organismos sociais (pessoas jurídicas) que têm existência e vontade própria (distinta de seus membros) e que esta se direciona à realização do fim para a qual foi criada.

É, assim,  também chamada de Teoria Organicista, na qual se observa na pessoa jurídica um ser real, um verdadeiro organismo, tendo vontade que não é simplesmente, a soma das vontades dos associados, nem o querer dos administradores. De acordo com esta teoria, a pessoa jurídica pode plenamente delinquir.

Tal teoria é considerada como a que atende da melhor forma as pretensões acerca da responsabilização penal da pessoa jurídica.

4. A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA E A LEI 9.605/98

A Lei nº 9.605/98, pela primeira vez no Brasil, institui a responsabilidade da pessoa jurídica no âmbito de nossa legislação ordinária, tendo como referência o art. 225, § 3.°, da Constituição de 1988 que já previa a responsabilidade das empresas por danos ambientais.

Segundo artigo 3º da lei supracitada, as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente nos casos em que a infração venha a ser cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

De outro turno, a Lei em seu art. 4º trouxe a teoria da desconsideração da personalidade, visando evitar que a personalidade da empresa se constitua em obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

Com efeito, o legislador ambiental adotou 3 (três) modalidades de pena: a pena de multa, as restritivas de direitos e a prestação de serviços à comunidade.

No que concerne à multa não se chegou a estabelecer critérios claros para sua fixação em face das pessoas jurídicas.

Já as penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são:

a) a suspensão parcial ou total de atividades da empresa;

b) a interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade;

c) proibição de contratar como o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações.

Finalmente, no que concerne à prestação de serviços à comunidade novamente o legislador inovou, adotando 4 (quatro) modalidades, quais sejam:

a) custeio de programas e de projetos ambientais;

b) execução de obras de recuperação de áreas degradadas;

 c) manutenção de espaços públicos; d) contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.

Ressalta-se que as penas acima elencadas podem ser aplicadas isolada, cumulativa ou alternativamente às pessoas jurídicas de forma a permitir ao julgador um amplo leque de medidas punitivas adequadas às empresas e ao caso concreto das infrações ambientais.

Como se pode ver, foi a partir da citada lei ambiental que o ordenamento jurídico penal foi instrumentalizado para a responsabilização penal dos entes jurídicos.

Todavia, como se verá a seguir a Lei nº 9.605/98 deu origem a uma série de questionamentos, gerando cisão na doutrina penal.

5. A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA E A LEI 12.846/2013 [1]

A partir de uma análise crítica da Lei nº 12.846/2013, que trata da responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, busca-se desenhar um panorama geral do regime jurídico relativo à aplicação das sanções em face dos atos lesivos às licitações, a adoção do compliance pelas empresas, a desconsideração da personalidade jurídica, o acordo de leniência, a prescrição da punibilidade das infrações praticadas, e, principalmente, o regime de independência de instâncias para fins de punibilidade, conforme previsto nos artigos 3º, 18 e 30, o que possibilita a dupla sanção pelo mesmo fato ilícito.

A Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, também conhecida como Lei Anticorrupção Brasileira, dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. A Lei nº 12.846/2013 é expressa em afirmar que a responsabilidade imposta às pessoas jurídicas não exige prova de conduta culposa, sendo devida pela simples prática de ato contra a Administração Pública, configurando, assim, responsabilidade por culpa objetiva.

 A norma é aplicável às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos, praticados em seu interesse ou benefício, seja exclusivo ou não.

A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.

A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais. Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.

Como a Lei nº 12.846/2013 é recente, não houve tempo suficiente para que a doutrina e os Tribunais assentassem os temas mais relevantes – alguns deles acompanhados de certa controvérsia na interpretação e aplicação das normas de regência.

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Dessa forma, sem pretender esgotar o assunto, entendemos que, por ora, merece especial atenção a disciplina jurídica que a Lei adotou para os seguintes assuntos: a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas e a responsabilidade subjetiva das pessoas físicas; as sanções em face dos atos lesivos às licitações e a não extensão dos efeitos à disciplina da Lei nº 8.666/1993; o ‘compliance’ como medida a ser adotada pelas empresas a fim de atenuar as sanções eventualmente aplicáveis; a desconsideração da personalidade jurídica; o destacado papel conferido à CGU, notadamente quanto à aplicação da Lei no âmbito do Poder Executivo federal e em face de atos contra a Administração Pública estrangeira; o acordo de leniência como medida que beneficia exclusivamente as pessoas jurídicas; a prescrição da punibilidade das infrações e a imprescritibilidade das ações de ressarcimento (art. 37, § 5º, da Constituição Federal) e o regime de independência de instâncias para fins de punibilidade, previsto nos arts. 3º, 18 e 30, e a possibilidade de dupla sanção pelo mesmo fato.

A Lei nº 12.846/2013 definiu um regime de independências de instâncias para fins de punibilidade, utilizando como critérios diferenciadores a natureza do infrator, a esfera de responsabilização e norma sancionadora aplicável, conforme se depreende da leitura dos arts. 3º, 18 e 30, respectivamente, sendo possível elaborar a seguinte síntese:

 a) o art. 3º define que a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual dos dirigentes e administradores, nem de qualquer pessoa natural, autora, coatora ou partícipe do ato ilícito (critério da natureza do infrator);

b) o art. 18 afirma que a responsabilidade da pessoa jurídica na esfera administrativa não afasta a responsabilidade no âmbito do processo judicial (critério da esfera de responsabilização);

c) o art. 30 dispõe que a aplicação de sanções previstas na Lei nº 12.846/2013 não afeta a aplicação de penalidades decorrentes de ato de improbidade administrativa, nos termos da Lei nº 8.429/1992, e de atos ilícitos alcançados pela Lei nº 8.666/1993, ou outras normas de licitações e contratos da administração pú- blica, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contrata- ções Públicas (RDC), instituído pela Lei nº 12.462/2011 (critério da norma sancionadora aplicável).

 A primeira hipótese de independência de instâncias foi suficientemente abordada quando se fez um paralelo entre a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas e a responsabilidade subjetiva das pessoas físicas, nada mais sendo necessário acrescentar.

Em relação ao critério da esfera de responsabilização, que permite punição tanto no âmbito quanto judicial, cabem algumas ponderações sobre os seguintes aspectos:

a) impossibilidade de cumulação de uma mesma espécie de sanção punitiva;

b) natureza das sanções aplicáveis;

 c) competência concorrente do Ministério Público e do órgão de representação judicial para ajuizamento da responsabilização judicial;

 d) atuação subsidiária do Ministério Público.

A responsabilização em âmbito administrativo foi disciplinada no art. 6º da Lei nº 12.846/2013, sendo previstas como sanção às pessoas jurídicas consideradas responsáveis a aplicação de multa e a publicação extraordinária da decisão condenatória.

 No âmbito do processo judicial, conforme redação do art. 19, são cabíveis o perdimento dos bens, direitos e valores, a suspensão ou interdição parcial de suas atividades, a dissolução compulsória e a proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas.

Indubitavelmente, mesmo com a independência das instâncias administrativa e judicial, é impossível que uma mesma espécie sancionatória, uma multa, por exemplo, seja aplicada de forma dúplice, ou seja, pelo mesmo fato e em momentos e instâncias distintas (bis in idem).

Todavia, a possibilidade de dupla imputação pode ocorrer quando se permitir a incidência de norma diversa sobre os mesmos fatos, o que será analisado quando comentarmos a regra do art. 30. Curioso observar que as sanções administrativas têm nítido caráter civil (uma de natureza pecuniária e outra com natureza de obrigação de fazer), enquanto as sanções previstas no âmbito judicial, com exceção do perdimento de bens, direitos e valores, guardam nítida semelhança as punições normalmente aplicadas no exercício do poder de polícia administrativa.

Outra regra que chama atenção é do caput do art. 19, que estabelece competência concorrente entre o Ministério Público e os órgãos de representação judicial da Advocacia Pública federal para ajuizamento das ações de responsabilidade pelos atos lesivos à Administração Pública tipificados no art. 5º.

Ainda que se diga que previsão semelhante pode ser encontrada também no art. 5º da Lei nº 7.347/1985, em defesa dos direitos difusos e coletivos, e no art. 17 da Lei nº 8.429/1992, em defesa da probidade administrativa, a regra em questão cita de forma específica o órgão de representação judicial, sem adotar a menção genérica ao ente federado ou às pessoas jurídicas de sua Administração Indireta; ademais, no § 4º do mesmo art. 19 consta até mesmo a previsão de que o órgão da Advocacia Pública federal requeira a indisponibilidade cautelar de bens e direitos necessários à garantia do pagamento da multa ou da reparação integral do dano.

 Também é digno de registro que a Lei nº 12.846/2013 instituiu uma regra de atuação judicial subsidiária do Ministério Público na hipótese de omissão da autoridade administrativa, conforme redação do art. 20 daquela Lei. Segundo a norma citada, o Ministério Público fica autorizado a propor a aplicação conjunta das sanções previstas no art. 6º (que devem ser aplicadas no curso de um processo administrativo) com as do art. 19, sempre que a autoridade administrativa se mostrar inerte diante da ciência de atos que, em tese, se adequam às condutas descritas no art. 5º, hipótese em que também devem ser tomadas medidas contra o agente público omisso. Em caso de atuação subsidiária do Ministério Público nos casos em que não se instaurou processo administrativo, não cabe falar em desrespeito ao contraditório e à ampla defesa previstos no art. 8º, porque a defesa do acusado será oportunizada no curso do processo judicial. Todavia, em tal hipótese, mostra-se adequado colher a manifestação do órgão de representação judicial, que não teve a oportunidade de exercer a prerrogativa descrita no § 2º do art. 6º.

Por fim, a independência de instâncias para fins de punição prevista no art. 30 da Lei nº 12.846/2013, apoia-se no critério da norma sancionadora aplicável, permitindo a cumulação das sanções daquela Lei com as penalidades previstas nas Leis nº 8.429/1992 (improbidade administrativa), nº 8.666/1993 (licitações e contratos) e nº 12.462/2011 (RDC), caso o ato praticado represente ilícito tipificado em mais de uma norma.

Quanto ao regime jurídico previsto na Lei nº 8.429/1992, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito, não há a menor dúvida de que as sanções ali previstas podem ser cumuladas com as da Lei nº 12.846/2013, tendo em conta a notória diversidade de seus escopos de incidência, pois na primeira norma a sanção é prevista para o agente público ou para a pessoa física que induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma, enquanto na segunda as penalidades são dirigidas somente às pessoas jurídicas.

Entretanto, quanto à aplicação conjunta de sanções previstas nas Leis nº 12.846/2013 e nº 8.666/1993, é necessário conceder atenção especial a uma possível dupla punição em face do mesmo fato (bis in idem). Dentre as condutas descritas no art. 5º da Lei nº 12.846/2013, é preciso atentar para aquelas estampadas no inciso IV, que se relacionam particularmente às licitações públicas e aos contratos administrativos, conforme transcrição a seguir:

Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

 (...) IV - no tocante a licitações e contratos:

 a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

 c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

 g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;

 Analisando de forma mais acurada as sanções descritas no inciso IV do art. 5º da Lei nº 12.846/2013, é possível vislumbrar um aparente conflito com a disciplina das sanções contratuais estabelecidas na Lei nº 8.666/1993, notadamente as regras de seus arts. 87 e 88, a seguir reproduzidas:

Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:

 I - advertência;

 II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;

 III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;

IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a

Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.

§ 1º Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada,

além da perda desta, responderá o contratado pela sua

diferença, que será descontada dos pagamentos eventualmente

devidos pela Administração ou cobrada judicialmente.

§ 2º As sanções previstas nos incisos I, III e IV deste artigo poderão

ser aplicadas juntamente com a do inciso II, facultada a

defesa prévia do interessado, no respectivo processo, no prazo

de 5 (cinco) dias úteis.

§ 3º A sanção estabelecida no inciso IV deste artigo é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso, facultada a defesa do interessado no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista, podendo a reabilitação ser requerida após 2 (dois) anos de sua aplicação.

(grifos nossos)

Art. 88. As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior

poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais

que, em razão dos contratos regidos por esta Lei:

I - tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por

meios dolosos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tributos;

II - tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos

da licitação;

III - demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a

Administração em virtude de atos ilícitos praticados.

Não é preciso maior esforço interpretativo para se verificar que as condutas descritas no inciso IV do art. 5º da Lei nº 12.846/2013, amoldam-se às hipóteses previstas nos incisos II e III do art. 88 da Lei nº 8.666/1993.

No entanto, o aparente conflito de normas não resiste a uma observação simples: o âmbito de incidência e os destinatários da Lei nº 12.846/2013, no tocante às fraudes em licitações e contratos, são diversos daqueles descritos na Lei nº 8.666/1993. Enquanto aquele diploma legal trata de responsabilidade objetiva de pessoas jurídicas que, conforme o inciso IV de seu art. 5º, fraudaram procedimento licitatório ou contrato firmado com o poder público, a Lei de Licitações e Contratos, em seus arts. 87 e 88, cuida de responsabilidade contratual daqueles que já pactuaram avença com a Administração Pública (pessoas físicas ou jurídicas) e que, por esta razão, detém com este vínculo administrativo especial, ou relação especial de sujeição, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 811-816).

No caso das sanções motivadas pelas condutas do inciso IV do art. 5º da Lei nº 12.846/2013, a empresa não precisa sequer ter sido escolhida como vencedora no certame licitatório[2], ou seja, não precisa possuir qualquer vínculo especial com o poder público, tendo em conta que a punição não decorre de sua sujeição especial pela condição de contratada – o que exigiria ao menos culpa –, mas de uma conduta típica, apenada de forma objetiva, sem que se precise demonstrar qualquer grau de culpa[3].

Assim, mesmo que certa conduta atenda cumulativamente à tipificação feita nas duas normas em exame (Lei nº 12.846/2013 e Lei nº 8.666/1993), mostra-se possível a cumulação de sanções, tendo em conta a diversidade das naturezas jurídicas, sendo uma delas motivada por responsabilidade objetiva e outra por responsabilidade contratual por vínculo especial com a Administração Pública.

Em conclusão, não há que se falar em conflito de normas quando seu escopo de aplicação é diverso[4]. Não bastasse toda a argumentação expedida, existe ainda um argumento definitivo e suficiente para concluir que a aplicação das sanções da Lei nº 12.846/2013 e Lei nº 8.666/1993, pode (e deve) ocorrer de forma cumulativa: o comando normativo do art. 30 daquela Lei é claro em afirmar que as instâncias não se comunicam para fins de aplicação de sanção. Vejamos o teor do artigo citado:

Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de: I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e II - atos ilícitos alcançados pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC instituído pela Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.

Por oportuno, mostra-se relevante expor o regime jurídico da independência de instâncias no direito brasileiro, formado pela interpretação conjunta dos arts. 125 e 126 da Lei nº 8.112/1990, art. 935 do Código Civil e arts. 66 e 67 do Código de Processo Penal, a seguir colacionados:

Lei nº 8.112/1190: Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si. Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria. Código Civil: Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Código de Processo Penal Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato. Art. 67. Não impedirão igualmente a propositura da ação civil: I - o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação; II - a decisão que julgar extinta a punibilidade; III - a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.

A comparação das sanções previstas na Lei nº 12.846/2013 com as da Lei nº 12.462/2011, que trata do RDC, não traz maiores novidades a tudo o que já foi comentado, até porque o § 2º do art. 47 desta norma permite a aplicação de todas as sanções previstas na Lei nº 8.666. De importante a ser citado apenas a previsão de impedimento de licitar e contratar com os entes federativos em caso de ocorrência de algumas das hipóteses descritas no caput do art. 47, dentre as quais a ação de fraudar a licitação ou a execução do contrato.

6. ARGUMENTOS CONTRÁRIOS e FAVORÁVEIS À RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA

De acordo com João Cesar Barbieri Bedran de Castro[8], alguns doutrinadores contrários[9] repudiam a idéia com base na alegada violação a 3 (três) postulados da teoria do crime: conduta humana, culpabilidade e os fins da pena.

No que se refere à conduta, referidos doutrinadores entendem ser inviável a localização do tema (conduta da pessoa jurídica) nas teorias da ação (causalista, finalista e sociológica). Com efeito, para as teorias da cão, necessária a existência de uma conduta (ação ou omissão), que gere consequências no mundo exterior o que não é possível se atribuir à pessoa jurídica tendo em vista a existência abstrata.

Já no que tange à culpabilidade, esta não seria possível ser imputada a um ente coletivo, vez que a autodeterminação é característica exclusiva do homem. Da mesma forma, não são aplicáveis à pessoa jurídica as teorias regentes da culpabilidade: psicológica, psicológico-normativa e normativa pura.

Finalmente, quanto às penas, os doutrinadores contrários à responsabilidade penal da pessoa jurídica entendem que não seriam atingidas as finalidades da pena. Aos fins da pena se sujeitam somente os seres humanos, e como a pena deve conter uma finalidade e esta não é aplicável aos entes coletivos, não há razão para sua aplicação.

Desta forma, o entendimento que prevalece para aqueles que são contrários à mencionada responsabilização é o de que as sanções às pessoas jurídicas deveriam ficar adstritas no âmbito do direito administrativo e do direito civil. A responsabilidade penal, “in casu”, estaria reservada apenas às pessoas físicas que tivessem atuado em nome e pela pessoa jurídica.

Por outro lado, há doutrinadores e especialistas no assunto que são francamente favoráveis[10] à imputação de responsabilidade penal à pessoa jurídica.

Logo de início, o argumento oferecido mais relevante se refere à Constituição Federal de 1988, diploma que inovou neste tocante o ordenamento jurídico brasileiro.

Com efeito, sem dúvida a regra fornecida pela Carta Magna de 1988 é a responsabilização penal da pessoa física, mas nos já mencionados artigos 173, § 5º e 225, § 3º o legislador constituinte trouxe a exceção, admitindo que a pessoa jurídica responda penalmente quando agir em ofensa à ordem financeira, econômica e ao meio ambiente.

Destaque-se, pois, que a exceção relativa ao meio ambiente foi instrumentalizada com a norma infraconstitucional Lei nº 9.605/98.

Ademais, os adeptos da adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica indicam que com relação à ação e à culpabilidade, há uma responsabilização indireta, imputando-se aos entes coletivos as ações praticadas por seus órgãos, bem como a culpabilidade destes.

Já no que se refere à pena, apesar de difícil constatação da função retributiva com relação aos entes coletivos, verifica-se que esta não pode invalidar a aplicação da sanção, vez que são plenamente alcançados os fins preventivos.

Como se vê, inúmeros são os pontos atacados e defendidos pelos doutrinadores de ambas as posições, mas de fato é inegável que desde 1988 foi permitida a responsabilização penal da pessoa jurídica e cabe ao legislador definir da melhor forma possível a instrumentalização daquele ditame constitucional.  

   

7. CONCLUSÃO

Pode-se concluir, então, que mesmo com os mandamentos constitucionais (arts. 173,§5º e 225,§3º) e com previsão expressa na legislação infraconstitucional (Lei nº 9.605/98), a responsabilidade penal da pessoa jurídica ainda é um tema bastante árduo e conflitante no Direito Penal pátrio.

Com efeito, a sociedade atual é caracterizada principalmente pelo risco, pelo avanço tecnológico e pela globalização, constituindo-se as pessoas jurídicas em verdadeiros pilares que impulsionam as relações sociais individuais, contribuindo, inclusive, com o próprio Estado.

Como se vê, dentro deste importante papel social exercido pelos entes coletivos, motivados por interesses financeiros, também é possível notar que estes invariavelmente incorrerão em infrações que atentam contra bens jurídicos individuais, mas também e modernamente contra bens jurídicos supraindividuais.

Neste sentido, o Estado necessita de instrumentos capazes a fornecer uma rápida e eficaz resposta penal, com o intuito de proteger tais bens jurídicos, bem como de reprimir as pessoas jurídicas infratoras.

Outrossim, importante frisar que o legislador infraconstitucional deve buscar novos meios de estabelecer as formas de sanção às pessoas jurídicas e, principalmente, quais as condutas que deverão merecer a reprimenda penal, deixando as menos gravosas a cargo do Direito Administrativo e do Direito Civil.    

Feitas estas observações, conclui-se que a aplicação das sanções previstas na Lei de Licitações não fica impedida por apelação em virtude da Lei Anticorrupção, podendo as normas serem aplicadas cumulativamente até pelo mesmo fato, tendo em vista que a aplicação conjunta das sanções, além de permitida pela diversidade do escopo de responsabilização previsto naquelas normas, está assegurada pelo art. 30 da Lei nº 12.846/2013.

 Em suma, um mesmo fato ocorrido no curso de um processo de licitação ou na execução de um contrato pode ser caracterizado como conduta infracional pela Lei nº 8.666/1993 e como ato lesivo à Administração Pública, nos termos da Lei nº 12.846/2013, justamente pela independência de instâncias antes comentada, não cabendo falar em bis in idem.

Por último, e não se poderia deixar de registrar tal fato, a independência de instâncias punitivas e o variado rol de normas administrativas que impõem sanções aos ilícitos praticados no âmbito das licitações públicas, permite concluir que, segundo o arcabouço legal atualmente vigente, a fraude ou frustração a um procedimento licitatório poderá ensejar, inclusive de forma cumulativa, as seguintes sanções:

a) suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração por até 2 (dois) anos e declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública (art. 88, inciso II, da Lei nº 8.666/1993);

b) impedimento de licitar e contratar com os entes federativos por até 5 (cinco) anos, quando se tratar do Regime Diferenciado de Contratações (art. 47 da Lei nº 12.462/2011);

c) multa e publicação da decisão condenatória (art. 6º da Lei nº 12.846/2013);

d) ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, pagamento de multa civil de até 2 (duas) vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazode 5 (cinco) anos, no caso de pessoa física que, mesmo nãosendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta (art. 10, inciso VIII, c/c art. 12, inciso II, da Lei nº 8.429/1992).

Entretanto, faz-se necessário o aprofundamento dos estudos e das discussões sobre o tema, tendo em vista que ainda hoje o ordenamento jurídico penal carece de uma melhor instrumentalização, visando a harmonização da previsão constitucional com os institutos penais mais tradicionais.

         

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEDRAN DE CASTRO, João Cesar Barbieri. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Dissertação de Mestrado. PUC/SP. São Paulo. 2010.

JESUS, Damasio E. Direito Penal – Parte Geral  1º Volume.  Ed. Saraiva. 20ª edição. São Paulo. 1997.

NORONHA, E. Magalhães.Direito Penal Volume I – introdução e parte geral. Ed. Saraiva. 32ª edição. São Paulo. 1997

PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil; Ed. RT; 2ª edição; São Paulo; 2004.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica de acordo com a Lei 9.605/98.Ed. RT. 1998.

Revista – Série Pensando o Direito nº 18/2009Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Direito GV); Coord. Acad. Marta Rodriguez de Assis Machado.

Notas:

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Sobre o autor
Thiago Marini

Estudante de direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e estagiário em contencioso administrativo tributário.

Informações sobre o texto

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