7. CONCLUSÃO
Após seis anos de governo, uma reeleição, uma série de metas de crescimento, empréstimos contraídos, inúmeras privatizações de setores estratégicos, tais como o da telefonia fixa e móvel e o do setor energético, seria de se esperar que os governantes e seus auxiliares tivessem conhecimento da maioria dos problemas sociais e, sobretudo, infra-estruturais que o país possui. É indesculpável no estágio do atual mandato, a clara falha de previsão e de pronta mobilização em relação à provável escassez de energia elétrica que aflige nosso país. Não se trata, ainda, de questionamentos ao melindroso plano de racionamento de energia, engendrado pela Câmara de Gestão da Crise de Energia elétrica, a GCE. O que está em pauta é a responsabilidade do governo Fernando Henrique Cardoso diante da completa estagnação de investimentos, não apenas no setor de geração e distribuição de energia elétrica, mas em outros, como por exemplo de saneamento básico. Como foi possível implementar um plano de crescimento e expansão econômica intitulado "Avança Brasil", sem uma efetiva preocupação com este setor, não se restringindo a apenas criar uma agência regulamentadora e transferir para a iniciativa privada o ônus de investir em sua ampliação? É fato notório que o empresário, diferentemente do administrador público, antes de tudo, organiza a exploração de sua atividade econômica com o fim exclusivo de auferir lucro. Como esperar, portanto, que tais indivíduos deixem de lado estes objetivos para se dedicarem, de forma imediata e comprometida, à ampliação do parque gerador existente, suprindo a crescente e previsível demanda do setor?
Infelizmente, somos forçados a levantar três hipóteses para o fracasso atual: ou o governo FHC é ingênuo o suficiente para acreditar que compromissos registrados em contratos de cessão de serviços públicos essenciais serão cumpridos por seus signatários (fato, aliás, que em nenhum lugar do mundo realmente acontece); ou agiu conscientemente, mas em erro evidente, preferindo dedicar-se ao saneamento do mercado de investimentos e suporte a instituições financeiras sob intervenção, relegando a último plano as questões infraestruturais; ou, por fim, deixou-se influenciar por interesses financeiros escusos e não relevantes, pelo contrário, prejudiciais ao país. De qualquer forma, não há dúvidas de que o caos energético e a ameaça do "apagão", sem prejuízo da ineficiência das anteriores administrações, são o reflexo indiscutível da irresponsabilidade administrativa que perdura no atual governo.
Não bastasse a, já irremediável, crise interna instalada especificamente no setor energético, a comunidade jurídica assiste estupefata as recentes medidas e decisões da Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, transformadas posteriormente pelo Presidente da República em Medida Provisória. A criação das quotas de consumo e da "sobretaxa" (que não passa de uma pena pecuniária), por si só, já são objeto de questionável legalidade, quiçá constitucionalidade. A "gota d’água", por assim dizer, veio com a reedição da MP nº 2148 (agora 2148-1), que prevê, clara e expressamente no seu art. 25, a revogação temporária dos artigos 12, 14, 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor. Diz a MP: "art. 25. Não se aplica a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, em especial os seus arts. 12, 14, 22 e 42 , às situações decorrentes ou à execução do disposto nesta Medida Provisória e das normas e decisões da GCE".
O Código de Defesa do Consumidor, certamente, está entre os diplomas legais mais modernos do mundo em matéria de respeito aos direitos individuais e coletivos. É fruto não só de profundas discussões e estudos de conceituados e renomados juristas, mas também de décadas de batalhas jurídicas voltadas para a fixação dos direitos de consumidores, bem como dos deveres de fornecedores. Além disso, é a concretização da previsão constitucional do art. 5º, inciso XXXII: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Portanto, percebe-se que o legislador constituinte, com o respaldo do poder constituinte originário, elevou a defesa dos direitos do consumidor ao status de direito fundamental protegido pela Constituição, sendo dever do Estado a sua promoção e não a sua dilaceração como propõe a MP. Por estar presente entre os direitos e garantias individuais, não se permite nem ao menos discutir a possibilidade de se modificar este comando constitucional, nem por Emenda Constitucional, haja vista o § 4º do art. 60. da CF/88, que o prevê entre as cláusulas pétreas já citadas, quiçá indiretamente como está se procedendo via Medida Provisória.
Os arts. 12, 14, 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor que foram suspensos pela Medida Provisória, quando a matéria tratar de assuntos relativos às relações jurídicas originárias entre o consumidor e o fornecedor de serviços de energia elétrica, tratam respectivamente: a) do dever de indenizar o dano causado por acidentes de consumo; b) da responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços que causem dano aos consumidores por defeitos relativos à prestação, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição; c) da obrigação de serviços públicos adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos; e, por fim, d) da não exposição do consumidor ao ridículo pela cobrança de débitos, e a sua não submissão a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Enfim, diante de tantos atos impensados e medidas descabidas, conclui-se que, ou o governo federal está pessimamente assessorado, jurídica e administrativamente, ou não tem noção nenhuma dos reflexos que tais atos produzirão na questão da própria segurança do ordenamento jurídico existente.
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Notas
1 Michel TEMER, Elementos de Direito Constitucional, p.151.
2 Michel TEMER, Elementos de Direito Constitucional, p.153.
3 Michel TEMER, Elementos de Direito Constitucional, p.153.
4 Assim se manifesta José Afonso da SILVA: Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental é suprema do Estado brasileiro (...) O princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não satisfaz apenas com a atuação positiva de acordo coma constituição. Exige mais, pois omitir a aplicação de normas constitucionais, quando a Constituição assim a determina também constitui conduta inconstitucional (Curso de Direito Constitucional Positivo).
5 Código brasileiro de defesa do consumidor, p. 25.
6 Conforme James MARINS, Responsabilidade da empresa pelo fato do produto, p.64.
7 José CRETELLA JR. et all., Comentários ao código do consumidor, p. 07.
8 Neste sentido: Cláudia Lima MARQUES, Contratos no código de defesa do consumidor, p.141-153, José CRETELLA JR et all, Comentários ao código do consumidor, p.07.
9 Contratos no código de defesa do consumidor, p.142.
10 Contratos no código de defesa do consumidor, p.142.
11 Comentários ao código do consumidor, p. 08.
12 Manual de direitos do consumidor, p.27.
13 José Geraldo Britto FILOMENO, Manual de direitos do consumidor, p.27-28.
14 José Geraldo Brito FILOMENO, Código brasileiro de defesa do consumidor, p. 40.
15 José Geraldo Brito FILOMENO, Código brasileiro de defesa do consumidor, p. 40.
16 James MARINS et al, Código do consumidor comentado, p. 17-18.
17 Luis Gastão P. Barros LEÃES, A responsabilidade do fabricante pelo fato do produto, p. 13-14.
18 José Geraldo Brito FILOMENO, Código brasileiro de defesa do consumidor, p. 40-41.
19 Código do consumidor comentado, p. 79-80.
20 Código brasileiro de defesa do consumidor, p. 35.
21 Comentários ao Código do consumidor, p.
22 Esta é posição de James MARINS, A responsabilidade da empresa pelo fato do produto, p. 82-83.
23 Cabe lembrar aqui o ocorrido em fevereiro e março de 1999, referente a dois problemas que atingiram os serviços de energia elétrica. O primeiro ocorreu em 19 de fevereiro, chamado de "apagão", foi o desligamento automático de duas das quatro linhas de transmissão da energia gerada na Hidrelétrica de Itaipu para as Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, provocando entre 12 horas e 12h3O, interrupções parciais do fornecimento de eletricidade em várias localidades dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e do Distrito Federal. Os apagões, que tiveram uma duração média de 40 minutos, causaram vários transtornos, com pessoas presas em elevadores, semáforos desligados e até a interrupção da programação de emissoras de rádios e TVs. O segundo foi o blecaute que ocorreu no dia 11 de março, atingindo Estados das regiões Sul e Sudeste e Mato Grosso do Sul, que ficaram sem energia a partir das 22h1O em razão de uma falha na linha de transmissão em Itaipu. Oito Estados foram afetados pelo major blecaute já ocorrido no pais. São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul ficaram com regiões sem energia por volta das 22h1O. Apesar das empresas prestadoras desses serviços furtarem-se às responsabilidades´ devem responder pelos danos que causaram aos consumidores. Em 16 de maio de 1999, também ocorreu um outro blecaute que deixou parte da região Centro-Oeste sem energia elétrica por cerca de uma hora. O apagão começou às 1 8hO5 e afetou o Distrito Federal, Goiás e parte de Mato Grosso.
24 Em 01 de junho de 2001, a Medida Provisória nº 2.148-1 foi revogada pela Medida Provisória nº 2.152-2, a qual em seu art. 25. dispôs: "Às relações decorrentes desta Medida Provisória entre as pessoas jurídicas ou consumidores não residenciais e concessionárias aplicam-se as disposições do Código Civil e do Código de Processo Civil."
25 Essa é a lição de Zelmo DENARI, Código Brasileiro de defesa do Consumidor, p.190.
26 Assim leciona Zelmo DENARI: "A nosso aviso, essa exigência do art. 22. não pode ser subentendida: ‘os serviços essenciais devem ser contínuos no sentido de que não podem deixar de ser ofertados a todos os usuários, vale dizer, prestado no interesse coletivo" (Código Brasileiro de defesa do Consumidor, p.191).
27 Assim leciona Celso Antônio Bandeira de MELLO: "... aquele a quem for negado o serviço adequado (art. 7, I) ou que sofrer a interrupção pode, judicialmente, exigir em seu favor o cumprimento da obrigação do concessionário inadimplente, exercitando um direito subjetivo próprio..." (Curso de Direito Administrativo, p.533).
28 Código Brasileiro de defesa do Consumidor, p.170.