O acesso ao patrimônio genético do empregado: limites à sua utilização e consequências no âmbito laboral

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O avanço da genética humana gera reflexos no ambiente laboral. O patrimônio genético é direito integrante da personalidade do empregado. O artigo procura traçar parâmetros que tenta conciliar o poder diretivo do empregador com o direito do empregado.

Sumário: 1. O avanço da genética humana e seus reflexos no ambiente laboral. 2. O patrimônio genético como direito integrante da personalidade: os dados sensíveis e o “empregado de cristal”. 3. Classificação dos testes genéticos nas relações de trabalho. 4. Argumentos favoráveis e desfavoráveis pelo acesso aos dados genéticos do empregado 4.1. Pela utilização dos dados genéticos nas relações de trabalho. 4.2. Pela não utilização dos dados genéticos nas relações de trabalho. 5. A proibição de discriminação com base em características genéticas: fixação de critérios para o acesso à informação genética seleção genética no âmbito laboral e a proibição de discriminação com base em características genéticas. 6. A insuficiência da legislação brasileira e a experiência no direito comparado. 7. Brevíssimos apontamentos sobre os Aspectos Processuais e a Responsabilidade Civil por Atos de Discriminação Genética do Empregado. 8. Considerações Finais. Referências.


1. O avanço da genética humana e seus reflexos no ambiente laboral

O tema não é futurista, pelo contrário, é deveras antigo. Em 1938 foram utilizados exames médicos para detectar transtornos genéticos, com o objetivo de selecionar os empregados em função de sua sensibilidade a respeito dos riscos profissionais; essa exigência implicou discriminação de pessoas, negando-lhes o acesso ao emprego baseada em critérios genéticos.1 Outrossim, a doutrina relata que várias formas de testes genéticos têm sido utilizadas no local de trabalho desde a década de 1970.2 Nesse período, a Academia da Força Aérea dos Estados Unidos não permitiu portadores do gene para anemia falciforme participar de treinamento de pilotos. Posteriormente, os tribunais americanos entenderam que os testes genéticos para identificação do traço falciforme geravam um impacto desproporcional sobre os afro-americanos3 e muitos Estados já proíbem os empregadores de teste para a doença.4

Mais recentemente, testes genéticos têm como alvo as variantes genéticas que contribuem para a descoberta de susceptibilidade a alguma doença, como por exemplo, a beriliose, que se desenvolve em trabalhadores que se submetem a exposição ao berílio.5

Com a realização do sequenciamento do genoma humano, somados a desenvolvimentos científicos recentes ligados à aplicação da informação genética, questões éticas e legais jamais discutidas emergiram. Nas últimas décadas, a engenharia genética alcançou níveis extremos de avanço, possibilitando aos seres humanos conhecerem os aspectos mais diversos relativos ao perfil genético de seus pares, permitindo, inclusive, detectar as propensões dos sujeitos ao desenvolvimento de determinadas patologias. Com isso, fala-se numa nova espécie de objeto material de tutela jurídica, a informação genética6, que atualmente carece de devida proteção legal.

A análise dos dados genéticos é um instrumento útil para realização de estudos sobre pessoas ou grupos que apresentam risco de desenvolver enfermidades condicionadas geneticamente ou tem, ao menos, uma predisposição a sofrer uma enfermidade, antes mesmo que tenham expressado algum sintoma. Seus resultados podem prever a certeza do futuro desenvolvimento da doença, descartar por completo sua aparição, confirmar a existência de um risco superior do que em outras pessoas e, finalmente, que se tem um risco semelhante ao resto da população.7

Referido avanço, inegavelmente, traz consigo um leque de benefícios para a humanidade, inclusive no tocante à possibilidade de cura de eventuais enfermidades. De outro flanco, vem acompanhado de consequências funestas, rendendo ensejo, muitas vezes, a práticas discriminatórias e, portanto, ofensivas aos direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos. Com efeito, a informação que se pode obter como consequência da realização da análise genética traz vários problemas relativos a essa mesma informação, seu acesso e sua utilização, pois pode entrar em conflito com os interesses do próprio sujeito afetado. Assim, o acesso aos dados genéticos dará a conhecer aspectos muito importantes da pessoa a que se referem, pois, ao mesmo tempo em que será de grande utilidade para proteger sua saúde e sua descendência, afetará diretamente sua esfera íntima e de terceiros.

Nesse cenário, a relação contratual trabalhista sofre influxos diretos do desenvolvimento biotecnológico. Testes genéticos em âmbito laboral têm o potencial de oferecer maior segurança no local de trabalho e proteger a saúde dos trabalhadores, auxiliar o empresário na sua decisão de contratar ou não contratar determinado trabalhador, investindo aquele de faculdades divinatórias sem precedentes.8 Por outro lado, pode gestar um ambiente propício ao desenvolvimento do risco de discriminação genética, incluindo a perda do posto de trabalho, o empecilho a uma promoção, dentre outros malefícios. Salvaguardas legais se fazem necessárias, se os benefícios são para compensar as consequências adversas de genética no local de trabalho.

Nessa linha de raciocínio, pode-se afirmar que o acesso à informação genética no ambiente de trabalho tem sido, muitas vezes, caracterizada como uma espada de dois gumes. Ela carrega o potencial para reduzir a incapacidade do trabalhador, melhorar a saúde dos funcionários, minorar custos econômicos e incrementar a produtividade, todavia representa uma ameaça à dignidade humana do empregado, já que pode implicar na discriminação genética e na estigmatização do indivíduo.

Estas inquietudes se concentram em saber sob quais circunstâncias e com quais objetivos pré-fixados poderão ser realizados exames genéticos; quem terá acesso a essa informação; quais as medidas de proteção para o uso indevido; em quais casos ocorrerão conflitos com interesses de terceiras pessoas; e, por fim, como enfrentar a prática discriminatória no uso da informação genética. Sendo certo que a revolução genética interpela o Direito em múltiplos domínios, a questão fundamental a que o ordenamento juslaboral terá de dar resposta é, seguramente, a da (in)admissibilidade de acesso patronal à informação genética em matéria de emprego (máxime através da feitura de testes genéticos), designadamente em sede de processo formativo do contrato de trabalho.9

Diante da escassez legal e jurisprudencial pátria acerca do tema, é preciso que a doutrina trabalhista enfrente o problema mais a fundo, buscando soluções legais no direito comparado, de modo a traçar limites à obtenção e utilização dos dados genéticos dos empregados em âmbito laboral. O objetivo deste estudo é traçar considerações sobre como os avanços da tecnologia genética estão plasmando as relações de trabalho e qual o papel do Direito do Trabalho nesse contexto. A atualidade e importância da temática proposta dispensam maiores elucubrações. Com efeito, ao final do estudo, propõe-se um conjunto de propostas práticas para questões que já têm procurado solução perante o Poder Judiciário.


2. O patrimônio genético como direito integrante da personalidade: os dados sensíveis e o “empregado de cristal”

Viu-se que o desenvolvimento da genética humana propiciou o surgimento de um novo e peculiar objeto material de tutela jurídica, qual seja, o patrimônio genético. Defende-se a classificação do patrimônio genético nos direitos de quarta geração ou dimensão, pois se tratam dos direitos relacionados à engenharia genética.10

Com efeito, a composição genética de cada indivíduo representa um tipo especial de propriedade, um conjunto de dados exclusivo, que se distingue de todos os outros tipos de informação, razão pela qual merece especiais formas de garantia.11

Na esteira da doutrina, entende-se por patrimônio genético do indivíduo

o universo de componentes físicos, psíquicos e culturais que começam no antepassado remoto, permanecem constantes, embora com mutações ao longo das gerações, e em conjugação com fatores ambientais e num processo permanente de interação, passa a constituir a própria identidade da pessoa, e por isso tem-se o direito de guardar, defender e posteriormente transmitir às próximas gerações.12

Vê-se, pois, que o patrimônio genético do empregado é formado não apenas pelo seu conjunto de genes, mas destes a partir de sua interação com o meio ambiente, ou seja, abarca a influência de todos os fatores externos que contribuíram para a formação do indivíduo.

Nesse sentido, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da UNESCO afirma que não se pode reduzir a identidade de uma pessoa a características genéticas, uma vez que ela é constituída pela intervenção de complexos fatores educativos, ambientais e pessoais, bem como de relações afetivas, sociais, espirituais e culturais com outros indivíduos, e implica um elemento de liberdade (art. 3º).

Ainda pela Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da UNESCO, os dados genéticos humanos podem ser definidos como as informações relativas às características hereditárias dos indivíduos, obtidas pela análise de ácidos nucleicos ou por outras análises científicas (art. 2º, item i).

Individualmente, o patrimônio genético humano deve ser considerado como direito da personalidade do indivíduo. As características genéticas de um indivíduo formam o seu “patrimônio” que será transferido a seus descendentes a título de “herança”.13

Goffredo Telles Junior define personalidade como o conjunto dos caracteres próprios de um ser humano. É o conjunto dos elementos distintivos, que permitem, primeiro, o reconhecimento de um indivíduo como pessoa e, depois, como uma certa e determinada pessoa.14

Para Miguel Reale, os direitos da personalidade

são todos aqueles que constituem elementos componentes intangíveis da pessoa, de conformidade com as conquistas do processo histórico-cultural que assinala o progresso da sociedade civil, em constante correlação complementar com a instituição estatal.15

Desse modo, o patrimônio genético humano, como direito da personalidade, é integrante da categoria dos direitos fundamentais, devendo ser tutelado, assim como o direito à vida, à liberdade, à imagem, à privacidade, ao nome, dentre outros.

Para que se evite qualquer tipo de confusão, imperioso exortar que a informação genética do empregado não se confunde com seus dados médicos (coletados nos exames admissionais, periódicos e demissionais), que possuem disciplina legal maleável e de menor proteção, localizando-se em outra esfera da intimidade, mais suscetível ao acesso e utilização, sendo previstos no art. 168. da CLT.16

Em razão da natureza jurídica do patrimônio genético, exige-se atenção especial na sua tutela. Na atualidade, diz-se que a ciência médica possibilita a exibição de nossos mais recônditos segredos biológicos.17 A Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da UNESCO, em seu artigo 4º, exorta que é necessário prestar a devida atenção ao carácter sensível dos dados genéticos humanos e garantir um nível de proteção adequado a esses dados. Assim, referida Declaração afirma que os dados genéticos humanos têm como característica, a sensibilidade.

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Dados sensíveis são aqueles que se enquadram em uma categoria especial de informações pessoais e referem-se a informações que, caso conhecidas e em poder de terceiros, podem ensejar a prática de atos discriminatórios e servir de instrumento de pressão, tais como as opiniões políticas, convicções religiosas e filosóficas, vida sexual, passado criminal do empregado.18 No contexto da relação de trabalho, esse risco é majorado, face ao grande prejuízo que os empregados podem sofrer se tiverem informações desse tipo em poder do empregador. Somente se admite sua coleta e processamento em alguns casos excepcionais, justificados por lei, em função de requisitos ocupacionais especiais, como adiante se verá. Nesses casos excepcionais, a lei deve prover os limites do processamento, estabelecendo as salvaguardas apropriadas.

No plano internacional, a Diretiva19 95/46/EC aponta os dados genéticos (genetic testing data) como categoria especial de dados sensíveis, a exigir regulamentação mais estrita e uma maior proteção que os dados médicos. São os provenientes de testes e exames da estrutura genética de uma pessoa. A proteção especial se justifica porque o risco de invasão à privacidade é muito maior, pois pode atingir não somente a pessoa de quem é coletada a informação, mas outras integrantes de sua família e linha genética. Além disso, como podem revelar suscetibilidades e predisposições a doenças, o risco de preconceito e discriminação individual também aumenta consideravelmente, particularmente no setor de trabalho.

Como dito, o acesso a estas informações dará a conhecer aspectos muito importantes da pessoa a qual se referem e, apesar de serem de grande utilizada para proteger sua saúde e descendência, afetará ao mesmo tempo de forma muito direta sua esfera íntima. Por conseguinte, a difusão incontrolada constituirá um grave perigo. Em primeiro lugar, pelo risco de converter o ser humano em “cidadão transparente” ou “de cristal”, é dizer, de que se conheça absolutamente tudo sobre ele.20

Assim, o empregado de cristal é aquele a respeito de quem se pode obter informação sobre aspectos genéticos da sua personalidade, condições de saúde e habilidades potenciais, ou seja, a respeito de quem se pode obter os chamados dados sensíveis, quais sejam, aqueles que afetam a intimidade da pessoa. É imagem de um homem marcado pelo que os seus genes dizem que ele pode ser e não por aquilo que ele livremente escolheu ser.21


3. Classificações dos testes genéticos nas relações de trabalho

Teste genético significa o uso de um teste científico para obter informação sobre alguns aspectos da condição genética de uma pessoa, indicativo de um médio, presente ou futuro problema.22 No contexto das relações laborais, o acesso ao patrimônio genético, por meio de testes, pode ocorrer de duas maneiras distintas: genetic monitoring (monitorização genética) e genetic screening (seleção ou rastreio genético).

A seleção ou rastreio genético diz respeito à análise de forma ampla das características hereditárias dos trabalhadores ou candidatos a emprego, não se restringe a verificar as modificações ocasionadas pelo ambiente de trabalho, pelo contrário, examina toda a estrutura genética da pessoa na busca de qualquer sinal que possa sinalizar propensão à manifestação de uma afecção.

o monitoramento ou verificação genética refere-se aos exames periódicos com o objetivo de verificar se o material genético do trabalhador sofreu alguma alteração ao longo do tempo devido à exposição a substâncias perigosas no local de trabalho. Tem como finalidade evitar ou reduzir o risco de doenças causadas por mutações genéticas relacionadas com o ambiente laboral. 23

O primeiro se refere ao uso de um teste científico para determinar se uma pessoa possui determinadas formas variantes de um ou mais genes em seu genoma. Já o segundo cuida da verificação, em intervalos regulares, para anormalidades cromossómicas em amostras de células a partir de uma pessoa que pode estar em risco, no seu emprego, em razão de exposição a agentes que causam danos genéticos.

A doutrina ainda informa que a seleção ou o rastreio genético dos trabalhadores pode se dar de duas formas, ou seja, com dois objetivos distintos: primeiro, analisar trabalhadores ou candidatos a emprego para detectar a presença de características geneticamente determinadas que os tornem suscetíveis a um efeito patológico se expostos a algum agente no ambiente laboral (seleção genética para predisposições associadas ao ambiente laboral – doenças – relacionados a doenças multifatoriais24); segundo, examinar trabalhadores ou candidatos a emprego para detectar condições hereditárias não associadas à exposição a atmosfera de trabalho, mas que influenciam na execução do contrato de trabalho (seleção genética para características não associadas ao ambiente laboral – relacionados a doenças monogênicas25)26.

Nesse prumo, evidencia-se que no ambiente de trabalho a informação genética ganha relevo em dois momentos distintos: a) na identificação de características específicas e pré-disposições genéticas na seleção para o emprego; e b) no monitoramento do material genético dos empregados em virtude da exposição à material nocivo.

Nesses dois momentos é possível que a informação obtida seja utilizada para discriminar empregados. No primeiro momento temos uma seleção dos “geneticamente mais aptos” e no segundo, temos uma “exclusão dos geneticamente danificados”, como adiante se verá.


4. Argumentos favoráveis e desfavoráveis pelo acesso aos dados genéticos do empregado

4.1. Pela utilização dos dados genéticos nas relações de trabalho

Dentre as razões para utilização da informação genética no ambiente laboral comumente se invoca não só o interesse do empregador, mas também do próprio empregado. Além disso, invoca-se o interesse de terceiros, da sociedade e do próprio Estado.

Nesta senta, o conhecimento dos riscos genéticos no âmbito laboral apresenta diversos pontos de interesse, a depender da ótica que se parta: a) para o próprio trabalhador, com o fim de se prevenir, tratar-se ou trocar de emprego ou renunciar às expectativas de promoção de um novo, o qual é incompatível com sua condição genética; b) para o empregador, de forma a reduzir os custos derivados de enfermidades potenciais futuras de seus trabalhadores, para excluir os que apresentam riscos mais elevados; c) para os outros trabalhadores, pois assim se garantirá sua segurança e se podem prevenir acidentes que os podem lesionar (não o contágio de enfermidades transmissíveis, pois este não é o caso), originados por companheiros com predisposição; d) para terceiros relacionados com a empresa (clientes, por exemplo), de modo que se evitem acidentes derivados da manifestação da enfermidade do empregado que apresenta predisposição (por exemplo, condutores de meios de transporte de passageiros, em especial pilotos de aeronaves); e) para o Estado, com o fim de poder cumprir de modo mais eficaz suas funções de prevenção de acidentes e de proteção da saúde dos trabalhadores.

O processamento de informações pessoais dos empregados é feito não somente em benefício do empregador, mas também em proveito dos próprios empregados, como ocorre em muitas situações em que seus dados são coletados para efeito de planejamento de políticas de saúde e segurança nas empresas.

Uma vantagem na coleta de dados genéticos do empregado é possibilitar o diagnóstico antes que surjam os sintomas da futura enfermidade. A medicina preditiva busca a detecção de um gene ou grupo de genes cuja presença indica o risco de uma enfermidade futura, permitindo dizer que é provável que o indivíduo contraia tal enfermidade. Provável, pois em muitos casos a enfermidade não se desenvolverá, a não ser que se somem aos aspectos genéticos outros fatores detonadores, como o meio ambiente, a dieta ou o stress. Uma pessoa com predisposição hereditária sempre pode alterar as condições ambientais na qual se desenvolve para evitar o desenvolvimento da enfermidade ou ao menos retardá-lo, mudando sua alimentação, etc.

Desse modo, invoca-se, então, em defesa dos testes genéticos no âmbito da relação de trabalho, a proposição de sua viabilidade para uma eficaz proteção da saúde do indivíduo, conquanto os benefícios que podem trazer ao trabalhador ou candidato a emprego que os realiza.27

Invoca-se, por vezes, a conveniência de a entidade empregadora promover a realização de testes genéticos, tendo em vista a proteção da saúde do próprio trabalhador (assim, por exemplo, os testes revelariam uma predisposição particular do trabalhador para vir a sofrer de certa doença profissional, em função de uma especial susceptibilidade a determinados produtos e matérias primas existentes na empresa), pelo que a realização dos aludidos testes justificar-se-ia, não em nome dos interesses do empregador, mas em nome da salvaguarda da saúde do próprio trabalhador, a médio/longo prazo ameaçada por aquele emprego. Ainda aqui se trata, porém, de um argumento discutível, revelando-se mesmo algo falacioso e paternalista.28

Por outro lado, o setor econômico invoca a necessidade de um maior aproveitamento da força de trabalho de seus obreiros e, por conseguinte, o aumento da eficiência, logrando maior rentabilidade e com isto, maximização dos lucros. Para isto, necessitam de trabalhadores que gozem de boa saúde. Nessa linha, é altamente desejável ao setor empresário, ter uma via livre para poder proceder com testes genéticos, para saber se aquele que se apresenta para uma vaga, não será no amanha um futuro enfermo.

Ademais, o interesse da entidade patronal em conhecer o genoma do trabalhador ou do candidato a emprego tem como finalidade evitar indenizações, reduzir os encargos financeiros, impedir que o ambiente de trabalho seja o responsável pelo agravamento de uma predisposição genética, justificar determinadas discriminações no momento da seleção e, além disso, ter a possibilidade de transferir o empregado para outro local, caso a doença se agrave com o ambiente de trabalho.29

Em relação ao interesse de terceiros e também em relação aos outros trabalhadores diz-se que os testes genéticos seriam aptos a evitar os riscos a terceiros resultantes da atividade desempenhada por uma pessoa potencialmente inapta ou perigosa, em virtude de seus caracteres genéticos. Com efeito, em certos empregos, a segurança de terceiros depende não só da perícia do trabalhador, como, ainda, do seu estado de saúde. Tal argumento se refere aos postos de trabalho sensíveis em termos de segurança, tais como o caso dos pilotos de avião, dos motoristas de transporte público, dos agentes de segurança de instalações perigosas, como usina nuclear, entre outros.30

Por fim, em relação ao próprio Estado e à sociedade, argumenta-se que existe um interesse geral em assegurar a prevenção e proteção da saúde laboral, sendo que os exames genéticos serão utilizados com a finalidade de reduzir a incidência de doenças ocupacionais. Assim, exames genéticos permitiriam ao Estado o alcance de seus objetivos no tocante o fim de poder cumprir de modo mais eficaz suas funções de prevenção de acidentes e de proteção da saúde dos trabalhadores.

4.2. Pela não utilização dos dados genéticos nas relações de trabalho

Existem fortes e sérios fundamentos pelos quais se defende a impossibilidade de submissão do trabalhador a testes genéticos. Levanta-se o caráter meramente probalístico das predisposições genéticas, o direito à intimidade genética, o direito a não saber e, por fim, a temerosa possibilidade de discriminação genética.

No que se refere ao caráter meramente probabilístico das predisposições genéticas, tem-se que não há a certeza absoluta de que a doença irá se manifestar.31 O fator genético é importante, mas não absolutamente determinante, já que se faz necessária a conjugação de diversos elementos para produzir-se o resultado da afecção. Com efeito, a informação genética apenas pode indicar a probabilidade de que o indivíduo venha a sofrer de certa doença. A possibilidade de esta nunca ocorrer é real, pois parece depender igualmente de fatores ambientais para sua manifestação.

Nesse aspecto, a doutrina especializada assevera que

A realização de teste genético como requisito de contratação laboral pode levar a exclusão de indivíduos que são, no momento, capacitados e que podem conservar-se assim por toda a vida profissional. O fato de possuir a predisposição genética não é garantia de que a doença se desenvolverá, e mesmo que ela se manifeste, não significa que gere a incapacidade laboral do trabalhador. Assim, não parece defensável negar emprego a pessoas portadores de genes deficientes que poderão nunca chegar a se revelar.32

Contrariamente à realização de testes genéticos se levanta ainda a questão da intimidade genética. Isso porque o risco de invasão à privacidade é muito maior, pois pode atingir não somente a pessoa de quem são coletados, mas outras integrantes de sua família e linha genética. O conhecimento da informação genética do empregado pode ter um impacto significativo sobre sua família, incluindo a descendência, ao longo de várias gerações.

Com efeito, o trabalhador tem direito a preservar sua intimidade e a de seus familiares perante o empregador. Logo, as pessoas que podem ser afetadas pela utilização dos testes genéticos no âmbito do contrato de trabalho não se restringem aos trabalhadores ou candidatos ao emprego, mas abrange também seus familiares, cuja intimidade é atingida.

Soma-se também que, desfavoravelmente ao uso de testes genéticos, que é o “direito de não saber” (right not to know). Como os testes genéticos podem revelar doenças (ou predisposição a elas) cuja cura a ciência ainda não tenha encontrado, para a pessoa pode ser preferível não ter conhecimento do resultado deles. A tensão psicológica implicada nos prognósticos genéticos, particularmente no caso de doenças graves para as quais não exista tratamento disponível na atualidade, é uma circunstância que não pode ser desprezada.

Nesse aspecto

julgo que a proteção da liberdade pessoal do trabalhador requer que este goze do direito de não saber qual é o seu património genético (o chamado direito à ignorância genética) e que usufrua do correspondente direito de viver em paz, sem a angústia resultante de uma qualquer doença anunciada e, porventura, incurável. Acresce que o trabalhador goza, decerto, de um direito à saúde, mas já é duvidoso que recaia sobre ele qualquer dever de saúde. E, caso pretenda efetuar testes genéticos, o trabalhador sempre poderá realizá-los particular e autonomamente, para seu próprio consumo e benefício, sem que tal lhe seja imposto pelo empregador. O mais frequente, nos dias que correm, será mesmo que o (candidato a) trabalhador não conheça nem queira conhecer o seu património genético, até para que os demais (sobretudo o potencial empregador) também o não conheçam...[...]33

Com efeito, o trabalhador tem direito a uma certa “opacidade genética” perante o empregador, seja por razões ligadas à tutela do direito ao trabalho, seja em virtude da proibição de discriminação baseada no património genético, seja pela necessidade de preservar a liberdade pessoal do trabalhador, a sua dignidade, a sua integridade física e a sua intimidade.34

O interesse patronal em saber tudo sobre a outra parte, sendo lógico e compreensível (pela minimização de riscos/redução de custos envolvida, pela maximização de benefícios/aumento das margens de lucro permitida), terá de ceder face aos direitos fundamentais de que, nesta sede, o candidato é titular, enquanto pessoa e enquanto potencial trabalhador.

Por fim, contrariamente ao acesso das informações genéticas, está a possibilidade de práticas discriminatórias em razão do acesso aos dados sensíveis do empregado, o que será tratada em tópico apartado, dada a relevância do argumento e das consequências daí advindas.

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Sobre os autores
Raphael Miziara

Professor Universitário e em cursos de Pós-Graduação em Direito. Advogado. Mestrando em Bioética e Aspectos Jurídicos da Saúde. Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho. Presidente do Instituto Piauiense de Direito Processual – IPDP. Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Editor do site www.informativostst.com.br

Alexandre Valle Piovesan

Advogado. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Faculdade Damásio de Jesus. Aprovado em 4º lugar no IV Concurso Público para provimento de cargos de Juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Professor no curso GEMT – Grupo de Estudos da Magistratura do Trabalho – e em cursos de Pós-Graduação em Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo originalmente publicado na obra "Temas atuais de direito e processo do trabalho", Salvador: JusPodivm, 2014.

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