O acesso ao patrimônio genético do empregado: limites à sua utilização e consequências no âmbito laboral

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5. A proibição de discriminação com base em características genéticas: fixação de critérios para o acesso a informação genética

Em 1997 um empregador em Hong Kong optou por não contratar dois saudáveis candidatos a emprego porque eles relataram a existência de doenças mentais no histórico familiar. Nos Estados Unidos, no início do ano de 2000, um empregador recolheu dados genéticos de seus empregados, sem o consentimento dos mesmos, em busca de suscetibilidade, entre os mesmos, para Síndrome do Túnel do Carpo, numa tentativa de evitar futuros problemas financeiros em face de reivindicações de trabalhadores acidentados.

Ambas as ações foram identificadas nos tribunais esses países como discriminatória, e ambos ocorreram na última década. Legislação para proteger quase 3 milhões de trabalhadores federais nos EUA foi aprovada em 2000.

Segundo a Convenção 111 da OIT, sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, o termo “discriminação” compreende: a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados.

Segundo a mesma Convenção, as distinções, exclusões ou preferências fundadas em qualificações exigidas para um determinado emprego não são consideradas como discriminação. (grifamos)

Provavelmente o maior risco que pode derivar do conhecimento dos dados genéticos de um empregado é o de ele ser objeto de práticas discriminatórias. No âmbito laboral, as empresas se mostram interessadas em submeter empregados e candidatos a testes genéticos, de modo que, a depender dos resultados, decidir excluí-los de determinados cargos ou, inclusive, evitar sua contratação – posto que são livres em negar sem ter que alegar qualquer motivo. Apesar de não estarem inaptos no momento da solicitude do emprego, por não apresentarem nenhum sintoma de alguma enfermidade, e, em alguns casos, apesar de não existir vinculação entre a aparição futura da enfermidade e a atividade laboral, são excluídos, no que, a toda vista, caracterizara uma prática discriminatória.

O fato é que o recolhimento de dados pessoais dos empregados é uma constante no ambiente de trabalho, e isso gera um grande risco de afronta a direitos fundamentais, em especial os direitos ligados à privacidade. Esse risco tem aumentado na medida em que as novas tecnologias facilitam a coleta de dados.

Por outro lado, encontramos o futuro empregado, que se coloca na busca do emprego. O mínimo que se pode pedir é ser contemplado com a possibilidade de aspirar ao emprego em igualdade de oportunidades com os demais candidatos. Por isso é que se deve impedir que se trave o acesso ao emprego por outras circunstâncias e considerações que não aquelas que surgem exclusivamente das aptidões relacionadas com as características específicas de idoneidade para este posto de trabalho.

Na lição de Manoel Jorge e Silva Neto, a discriminação genética ilegítima consiste em toda e qualquer prática discriminatória ilícita que tem por base a codificação genética do indivíduo.35

Estevão Mallet, sempre atento aos temas mais atuais, faz menção à discriminação genética, como sendo aquela propiciada pelo avanço científico, a permitir, a partir de exame do DNA, antecipar a tendência de certas pessoas para o desenvolvimento de algumas doenças, o que possibilitaria preteri-las não somente no campo do trabalho como, outrossim, em outros setores, inclusive em matéria de acesso a serviços de saúde, especialmente aqueles propiciados por planos de assistência médica.36

Jürgen Habermas afirma que não se pode excluir o fato de que o conhecimento de uma programação eugênica do próprio patrimônio hereditário limita a configuração autônoma da vida do indivíduo e mina as relações fundamentalmente simétricas entre pessoas livres e iguais.37 Caso contrário, parafraseando o citado filósofo, estar-se-ia a caminho de uma “eugenia laboral liberal”.

De fato, uma escolha baseada em um teste que denote uma predisposição, ou seja, uma eventual enfermidade futura que talvez jamais se produza, implica uma discriminação fundamentada em uma probabilidade, que prejudica claramente suas chances ante a outras pessoas, talvez menos preparada tecnicamente, mas sem essa predisposição. É evidente que se a possível enfermidade não o faz inidôneo para o posto de trabalho, é injusto e discriminatório impedir chegar a esse trabalho por somente uma probabilidade.

Com efeito, os testes genéticos podem facilmente conduzir a despedimentos injustificados ou à recusa de uma admissão. Tomar uma decisão de admissão com base na probabilidade de desenvolvimento de uma certa doença por parte de uma pessoa, e não tanto a sua efetiva capacidade para realizar o trabalho, constitui discriminação. Além disso, o teste pode indicar que uma pessoa pode ser susceptível a desenvolver uma certa doença, mas não diz quando isso poderá acontecer ou com que gravidade.

A questão que se coloca é: o que pode buscar um empregador ao realizar um teste genético em um empregado ou aspirante a empregado e sob quais circunstâncias?

A regra geral deve ser a proibição do acesso à informação genética do empregado. No entanto, em determinadas situações concretas, a realização de testes genéticos estaria justificada.

São vários os motivos e hipóteses que explicam os objetivos perseguidos com a realização de testes genéticos em empregados. O objetivo perseguido pelo empregador pode ter um fim duplo, acumulado ou alternativo: proceder a uma seleção negativa com o propósito de não contratar os candidatos que fossem diagnosticados com qualquer anomalia que seguramente aparecerá no futuro (enfermidades de origem monogênica de transmissão hereditária mendeliana); ou, uma seleção com critérios positivos, para selecionar os trabalhadores mais aptos para aquele determinado trabalho, de acordo com suas características genéticas. Nesses casos, se constata que os testes atenderiam aos exclusivos interesses do empregador, em detrimento dos candidatos aos postos de trabalho, o que deve ser afastado.

É comum dizer que a engenharia genética ameaça a dignidade humana. Isso é verdade. O desafio, porém, é identificar como essas práticas reduzem a nossa humanidade – ou seja, quais aspectos da liberdade humana ou do florescimento humano se veem ameaçados.38

A utilização abusiva da informação obtida contra o candidato a emprego poderá dar lugar a grupos de pessoas excluídos do acesso ao mercado de trabalho, uma nova classe de marginalizados, incluindo os familiares dos sujeitos analisados.

Em geral, o uso legítimo da informação é determinado pela necessidade de certas escolhas de carreira, e abusivo de controle destinado a colocar o empregado em situação de desamparo ou discriminação.

Há, portanto, a possibilidade de discriminação legítima no âmbito das relações laborais, de modo que pode ser considerada legítima a discriminação, e, portanto, não ofensiva ao direito à igualdade, quando o critério de diferenciação adotado se encontra plenamente justificado pela situação fática. Nas palavras de Manoel Jorge e Silva Neto

[...] dentro da multitudinária realidade das relações de trabalho, presenciamos circunstâncias permissivas do uso de dados genéticos do trabalhador pela empresa sem que o procedimento descambe para a ilegitimidade, como, por exemplo, na situação em que realizado exame genético, tenha sido constatada a probabilidade de o empregado ser, no futuro, acometido de leucopenia, que é enfermidade relacionada à redução dos leucócitos no sangue. Tratando-se de empresa cuja atividade esteja vinculada ao ramo químico e que se utilize do benzeno no processo produtivo ou como matéria prima, é absolutamente legítimo o comportamento empresarial destinado a afastar o trabalhador de qualquer contato com a substância, posto que é causa eficiente de instalação da doença indicada como probabilidade de ser contraída pelo trabalhador, mais inda porque dados estatísticos e científicos comprovam, de forma objetiva, que há inegável correlação entre exposição ao benzeno e a redução de glóbulos brancos no sangue.39

Sendo assim, embora aqui se defenda e se ressalte a relevância da não discriminação do trabalhador, bem como da adequação das empresas às necessidades de seus empregados, inclusive no tocante à menor nocividade do meio ambiente de trabalho, o fato é que não se há com negar a existência de situações em que o trabalhador, realmente, não apresenta condições de se colocar em um determinado posto de trabalho.

A proteção contra a discriminação laboral não pode vir a trazer impactos ao empregador ou ao contratante de serviços, a ponto de tornar inviável sua atividade produtiva, nem provocar riscos de danos de ordem significativa a terceiros, colocando em risco seus direitos da maior importância como, por exemplo, a vida ou sua integridade física. De fato, o respeito incondicional do direito de igualdade não pode causar danos ao patrimônio jurídico de outros.40

Tal situação ocorre, por exemplo, quando se verifica que a propensão genética e o meio ambiente de trabalho, de forma combinada, determinam a instalação da doença, de modo que a imposição da contratação daquele trabalhador acarretaria a necessidade de atendimento a tamanhas exigências que acabariam por inviabilizar a atividade a ser desenvolvida pelo contratado ou tornar inviável o próprio negócio, sendo que, em uma hipótese como essa, a utilização dos dados genéticos serviriam à proteção do próprio trabalhador e da coletividade de trabalhadores, que depende dos empregos gerados por aquele empreendimento.41

A própria OIT admite a submissão a testes genéticos em situações excepcionais:

Nalgumas situações raras, os empregadores podem justificar o despiste por razões de segurança e saúde, especialmente quando os trabalhadores possam estar expostos a substâncias perigosas, como a radiação ou produtos químicos, estando assim mais sujeitos a sofrer riscos e danos consequentes.42

Com efeito, devem existir boas razões para que um empregador venha a estabelecer um tratamento diferenciado baseado em um requisito para um trabalho específico. Os critérios para uma boa razão devem ser bem restritos, que somente podem ser qualificados como necessidades empresariais, mas nunca como conveniências empresariais.43 O que se proíbe são atos de discriminação arbitrária, ou seja, aqueles para os quais não sejam apresentadas razões objetivas que os justifiquem.

O que não se pode, todavia, é deixar de controlar tal utilização de dados genéticos, para que não se permita a banalização de algo que deve ocorrer de forma excepcional, uma vez que, certamente, os empregadores, caso não houvesse um controle dessa discriminação genética, seriam tentados a sempre realizar testes genéticos ao invés de buscar investir em segurança e qualidade do meio ambiente de trabalho, principalmente no intuito de reduzir os custos que tais investimentos representam.44

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Nas palavras de João Leal Amado

A revolução genética (e, em particular, a sequenciação do genoma humano) poderá, assim, colocar nas mãos dos empregadores uma autêntica “bola de cristal”. Quando tal suceda, a mão anónima e invisível do mercado, guiada por preocupações de produtividade e de competitividade, encarregar-se-á de tudo o resto: pedigree cromossómico, triagem genocrática, “carimbos de exclusão genética”, “listas negras de trabalha dores incontratáveis”, “desempregados genéticos”, etc. 45

Em relação ao consentimento informado, este também se mostra insuficiente, isoladamente considerado. Mesmo quando o empregado voluntariamente participa de programas de monitoramento genético, a sua situação de subordinação diante do patrão pode influenciar em sua decisão.

Um programa de coleta de informações genéticas no ambiente de trabalho não apenas deve ter o consentimento informado do empregado, mas a participação efetiva de sindicatos e órgãos do governo, para cercar os trabalhadores de todas as garantias legais e jurídicas quanto aos usos dessas informações.46

Como a monitoração genética pode servir para a proteção da saúde e segurança dos empregados, particularmente em trabalhos que envolvam alto risco de contaminação ambiental, é preciso se encontrar um perfeito equilíbrio entre seus direitos fundamentais, os interesses do empregador e do público relacionado. Nesse sentido, alguns princípios foram alinhavados como parte de uma futura regulação europeia em matéria de proteção a dados genéticos. O princípio maior é de que o processamento de dados genéticos que possam indicar a predisposição a certas doenças (predictive genetic data) somente se justifica em face de uma necessidade excepcional, com propósitos de proteção da saúde e segurança do trabalhador ou de terceiros, e desde que seja autorizado por lei nacional que preveja as seguintes salvaguardas:

  • a) respeito estrito ao princípio da proporcionalidade, significando, em cada hipótese concreta, a inexistência de outros meios menos invasivos para se alcançar o mesmo resultado do teste genético;

  • b) a implementação de melhores condições de trabalho por meio dos testes genéticos não deve resultar em preconceito individual;

  • c) supervisão prévia dos testes por autoridade governamental deve ser considerada e deve abranger a qualidade dos testes, as circunstâncias particulares de cada caso e a acuidade dos resultados;

  • d) a lei e a atuação dos agentes governamentais deve ter como diretriz o essencial balanceamento entre os direitos fundamentais do empregado, de um lado, e os interesses da sociedade, de outro, em função da potencialidade de riscos à saúde e segurança de terceiros (companheiros de trabalho e o público em geral), notadamente em atividades de alta periculosidade;

  • e) deve ser considerado o direito da pessoa objeto do teste de não ter conhecimento de seu resultado ("right not to know"), particularmente no caso de doenças sérias e para as quais ainda não exista tratamento.47

A Lei n.º 12/2005 de 26 de Janeiro de 2005, da República de Portugal, que dispõe sobre informação genética pessoal e informação de saúde, nos traz critérios razoáveis acerca do tema:

Artigo 13º Testes genéticos no emprego

1 - A contratação de novos trabalhadores não pode depender de selecção assente no pedido, realização ou resultados prévios de testes genéticos.

2 - Às empresas e outras entidades patronais não é permitido exigir aos seus trabalhadores, mesmo que com o seu consentimento, a realização de testes genéticos ou a divulgação de resultados previamente obtidos.

3 - Nos casos em que o ambiente de trabalho possa colocar riscos específicos para um trabalhador com uma dada doença ou susceptibilidade, ou afectar a sua capacidade de desempenhar com segurança uma dada tarefa, pode ser usada a informação genética relevante para benefício do trabalhador e nunca em seu prejuízo, desde que tenha em vista a protecção da saúde da pessoa, a sua segurança e a dos restantes trabalhadores, que o teste genético seja efectuado após consentimento informado e no seguimento do aconselhamento genético apropriado, que os resultados sejam entregues exclusivamente ao próprio e ainda desde que não seja nunca posta em causa a sua situação laboral.

4 - As situações particulares que impliquem riscos graves para a segurança ou a saúde pública podem constituir uma excepção ao anteriormente estipulado, observando-se no entanto a restrição imposta no número seguinte.

5 - Nas situações previstas nos números anteriores os testes genéticos, dirigidos apenas a riscos muito graves e se relevantes para a saúde actual do trabalhador, devem ser seleccionados, oferecidos e supervisionados por uma agência ou entidade independente e não pelo empregador.

6 - Os encargos da realização de testes genéticos a pedido ou por interesse directo de entidades patronais são por estas suportados.

Assim, testes genéticos em empregados se justificam quando se busca a proteção da saúde do próprio empregado ou de terceiros, em razão da natureza especialíssima da atividade desenvolvida e desde que a procedimentalização do acesso e utilização dos dados seja regulado por lei e complementado por negociação coletiva, ficando expressamente vedada a hipótese de mero consentimento informado do trabalhador, face à flagrante vulnerabilidade deste face ao empregador.

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Sobre os autores
Raphael Miziara

Professor Universitário e em cursos de Pós-Graduação em Direito. Advogado. Mestrando em Bioética e Aspectos Jurídicos da Saúde. Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho. Presidente do Instituto Piauiense de Direito Processual – IPDP. Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Editor do site www.informativostst.com.br

Alexandre Valle Piovesan

Advogado. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Faculdade Damásio de Jesus. Aprovado em 4º lugar no IV Concurso Público para provimento de cargos de Juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Professor no curso GEMT – Grupo de Estudos da Magistratura do Trabalho – e em cursos de Pós-Graduação em Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo originalmente publicado na obra "Temas atuais de direito e processo do trabalho", Salvador: JusPodivm, 2014.

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