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Sófocles e a Democracia em "Antígona&quot

01/03/2003 às 00:00
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Sófocles, na tragédia grega intitulada "Antígona", apresenta a oposição entre o Direito Natural (no caso da peça, Direito que provinha das crenças – deuses – e dos costumes) e o Direito Positivo (Direito imposto pelo representante do Estado). Este foi o aspecto destacado por Hegel, na sua interpretação da peça.

Acontece que o texto de "Antígona" apresenta outros aspectos de relevância para o estudo do Direito, além do que foi proposto por Hegel, mesmo que não estejam em primeiro plano.

Um desses aspectos relevantes é a questão da Democracia. Sófocles deixa evidente a importância da Democracia na Grécia Antiga, tirando-a do pequeno mundo político de Atenas e levando-a como necessidade para as outras cidades gregas; Tebas no caso.

A importância e a necessidade da Democracia no cenário político vivido por Antígona e Creonte vêm à tona nas falas de Hémon. Numa leitura superficial do texto, tem-se a sensação de que Hémon enfrenta seu pai, o rei Creonte, apenas para salvar a vida de sua prima e amada, Antígona; seria uma atitude meramente passional. Mas uma leitura mais atenta pode fazer com que o leitor tenha uma outra impressão.

Na história, os irmãos Etéocles e Polinices eram filhos do rei Édipo e, por isso, herdeiros do trono de Tebas. Polinices cerca a cidade para tomar o trono que está em poder de Etéocles e ambos morrem em combate, um pelas mãos do outro. Com a morte dos irmãos, quem assume o trono é Creonte, irmão de Jocasta - mãe e esposa de Édipo. O novo rei de Tebas faz o enterro de Etéocles com todas as honras devidas e acusa Polinices de traidor, proclamando um edito dizendo que quem o enterrasse seria morto. Por se tratar de um irmão, Antígona se rebela contra a lei positiva de Creonte e enterra o cadáver. É a partir daí que começa a disputa entre o Direito Natural e o Direito Positivo.

Creonte defende a sua posição dizendo que não poderia deixar de matar Antígona por ela ser sua sobrinha, pois as leis deveriam ser para todos. Caso contrário, ele pareceria um rei incorreto, mentiroso e injusto para a cidade. Antígona se defende dizendo que o edito está em desacordo com a vontade dos deuses e com os costumes. O profeta Tirésias tem um papel importante nesse debate pois, ao profetizar o trágico e próximo futuro de Creonte, mostra o Direito Natural sancionando o monarca por seu erro.

Mas Sófocles parece ampliar a discussão, até então restrita ao Direito Natural e Direito Positivo, quando coloca Hémon em cena. É no contexto das falas fortes do herdeiro do trono de Tebas que se encontra a importância da Democracia. No debate com Creonte, Hémon se baseia na razão. Mas, em que consiste essa razão? Consiste em ouvir outras opiniões arrazoadas, não tomar apenas a opinião própria como a única correta. Deve-se ouvir, principalmente, a opinião do povo. Creonte se apresenta numa posição de tirano, parecendo injusto para os tebanos. Hémon vem à presença de seu pai preocupado com a sorte de Antígona, mas também preocupado com a imagem do rei, que está começando a ser mal visto pela população. Em todo o seu discurso, o príncipe defende que a opinião do povo deve ser levada em consideração, não estando preocupado com a opinião dos deuses ou com os costumes.

Quando o dramaturgo grego apresenta Hémon tentando se impor perante Creonte, sem submissão, pode-se visualizar um debate entre Democracia e Tirania, no qual o príncipe apresenta argumentos mais fortes do que os do pai, mas não consegue vencer sua teimosia. Transcreve-se, aqui, alguns trechos do texto para uma melhor visualização:

"Creonte: - (...) Filho, acaso estais aqui para atacar o teu pai, sem prestares ouvido ao decreto fixado acerca de tua noiva?(...)

Hémon: - Pertenço-te meu pai. E tu, que tens nobres pensamentos, regulas os meus para eu os seguir. Na verdade, não há casamento algum que me pareça superior a ser por ti orientado.

Creonte: - Assim, meu filho, é que tu deves fazer - colocar a opinião paterna acima de tudo. (...) Por isso, meu filho, não sacudas o jugo da razão por causa do prazer com uma mulher, ciente de que se tornam frígidos amplexos, quando a companheira de leito que se tem em casa é perversa. (...) Em toda cidade, foi a ela só que eu apanhei em ato de flagrante desobediência. Não me farei passar por mentiroso perante o país. Antes vou matá-la. Sobre isto, ela bem pode invocar o deus da consangüinidade. Porque, na verdade, se eu educar os meus parentes por nascimento a serem desordeiros, mais ainda os serão os de fora. É que quem for firme com os de sua casa, parecerá justo também na cidade. (...) Mas aquele que transgredir e violar as leis ou pense mandar nos que detêm o poder, esse não alcançará elogios de minha parte. Não; aquele a quem a cidade elegeu, força é que o escutem em questões de pouca monta, nas justas como nas contrárias. Não há calamidade maior que a anarquia. (...) E aqueles que seguem caminho direito, é a obediência que salva a vida a maior parte das vezes. (...) Mais vale, quando é preciso, ser derrubado por um homem, do que sermos apodados mais fracos que mulheres.

(...)

Hémon: - Meu pai, de quantos bens os deuses outorgaram aos homens, o raciocínio é o mais excelente. Nem eu poderia nem saberia afirmar que não tens razão de falar assim. Contudo, também pode ocorrer a outro um pensamento aproveitável. Ora, é natural que eu vigie o quanto dizem ou fazem ou têm a censurar, porque teu aspecto é terrível para o homem do povo, ante aquele gênero de palavras que não te apraz ouvir. Mas a mim é-me dado escutar na sombra como a cidade lamenta essa jovem, porque, depois de ter praticado ações tão gloriosas, vai perecer de tal maneira, ela, que, de todas as mulheres, era quem menos o merecia. (...) Não tenhas pois um só modo de ver: nem só o que tu dizes está certo, e o resto não. Porque quem julga que é o único que pensa bem, ou que tem uma língua ou um espírito como mais ninguém, esse, quando posto a nu, vê-se que é oco. Se, portanto, eu posso, apesar de mais novo, apresentar uma opinião boa, direi certamente que mais vale aquele homem que por natureza é mais dotado de saber em tudo; se, porém, assim não for - pois é costume a balança não se inclinar para este lado - é belo aprender com aqueles que falam acertadamente.

(...)

Creonte: - Com que então devo aprender ter senso nesta idade, e com um homem de tão poucos anos?

Hémon: - Nada aprenderias que não fosse justo. E, se sou jovem, não são os anos, mas as ações que cumpre examinar.

Creonte: - ´As ações´ consistem então em honrar os desordeiros?

Hémon: - Nem aos outros eu mandaria ter respeito pelos perversos.

Creonte: - E então ela não foi atacada por esse mal?

Hémon: - Não é isso que afirma o povo unido de Tebas.

Creonte: - E a cidade é que vai prescrever-me o que devo ordenar?

Hémon: - Vês? Falas como se fosses uma criança.

Creonte: - É portanto a outro, e não a mim, que compete governar este país?

Hémon: - Não há Estado algum que seja pertença de um só homem.

Creonte: - Acaso não se deve entender que o Estado é de quem manda?

Hémon: - Mandarias muito bem sozinho numa terra que fosse deserta.

Creonte: - Este é um aliado da mulher ao que parece.

Hémon: - Se acaso tu és mulher, pois contigo me preocupo.

Creonte: - Pelo menos a tua argumentação era toda a favor dela.

Hémon : - E de ti e de mim, e dos deuses infernais.

(...)

Creonte: - Ah! Grande malvado! Entrando em questão com teu pai!

Hémon: - É que te vejo falhar no cumprimento da justiça.

Creonte: - É erro então ter respeito pelo meu soberano poder?

Hémon: - Não tens respeito por ele, quando calcas as honras devidas aos deuses.

(...)

Creonte: - Com lágrimas ganharás senso, tu que és oco de razão.

Hémon: - Queres falar, e, depois, não ter que ouvir.

Creonte: - Sim? Pois, pelo Olimpo, fica sabendo que não me ultrajarás com as tuas censuras impunemente. (Para os guardas) Tragam essa abjeta criatura, para que morra imediatamente diante dos olhos do noivo, e ao lado dele.

Hémon: - Não de mim com certeza, não o julgues jamais, nem ela perecerá perto de mim, nem de modo algum avistarás o meu rosto, vendo-o com os teus olhos. De forma que serás louco, sim, mas na companhia dos amigos que o queiram".

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Ora, a postura democrática de Hémon é evidente. Ele percebe que o poder não faz sentido se usado isoladamente ou em desacordo com aqueles em razão de quem o poder é exercido. A Cidade (o Estado) é bem de todos e não daquele que exerce o poder de mando.

Hans Kelsen, no seu livro Teoria Geral do Direito e do Estado (2ª edição, Martins Fontes, pág. 281), afirma que "a idéia de democracia é uma síntese das idéias de liberdade e igualdade". Raymond Aron, nos seus comentários sobre Alexis de Tocqueville no livro As Etapas do Pensamento Sociológico (4ª edição, Martins Fontes, pág. 211) diz: "O primeiro termo que constitui a noção de liberdade é a ausência de arbitrariedade. Quando o poder só é exercido de acordo com as leis, os indivíduos gozam de segurança. Mas é preciso desconfiar dos homens, e como ninguém tem a virtude necessária para exercer o poder absoluto sem se corromper, é preciso não dar o poder absoluto a ninguém (...). E como todos participam da soberania, é necessário que os que exerçam o poder sejam, de certo modo, os representantes ou os delegados dos governados. Em outras palavras, é necessário que o povo, tanto quanto lhe seja materialmente possível, se governe a si mesmo". Ambas as idéias já se encontram implícitas no texto. Hémon nada mais quer que, para que Tebas não seja um reino governado pela Tirania - e para que seu pai não seja tido como um tirano -, Creonte ouça o que o povo tem a dizer. Quer que seja acatada a decisão do povo no que diz respeito à sorte de Antígona, que a escolha do povo se sobreponha à lei outorgada pelo rei. Em suma, que os tebanos tenham o que Rousseau chamou de liberdade política, que é a liberdade de participar das decisões do Estado enquanto sociedade.

A posição de Hémon é sem dúvida uma posição democrática. É a busca da Democracia verdadeira, da qual estiveram perto Atenas e Roma e que foi almejada por Rousseau. Este sábio genebrino já dizia que as leis deveriam ser criadas pelo povo. Com a queda de Roma, a humanidade se afastou por um bom período dessa posição. Mas, a partir do século XVIII, aos poucos fomos retomando a busca pela democracia e, hoje em dia, já contamos com uma vantagem que não existia no tempo de Sófocles, uma das maiores conquistas do século XX: o voto universal. O que fica claro é que, se o Direito estiver calcado numa base democrática, então a discussão direito natural/direito positivo esvazia-se pois já estará de acordo com a religião, moral e costumes da sociedade e será um Direito instituído pelo povo para um determinado Estado.

Contudo, Hémon e Antígona morrem na peça. Creonte, por sofrer as punições dos deuses profetizadas pelo velho Tirésias, passa a temer o Direito Natural, aprendendo a conciliá-lo com o Positivo. No entanto, não dá o valor merecido às palavras de seu filho, não conseguindo entender a amplitude da importância da Democracia.

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Sobre o autor
Henrique Smidt Simon

mestrando em direito pela UnB, em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIMON, Henrique Smidt. Sófocles e a Democracia em "Antígona&quot. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3855. Acesso em: 22 dez. 2024.

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