5. Conclusão.
Ante o exposto, torna-se imprescindível uma releitura de toda a legislação infraconstitucional relativa à atuação do ministério público com espeque nos novos princípios e finalidades estipulados pela Constituição Federal de 1988 e, mais notadamente, com base no princípio da independência funcional.
Vale dizer, é necessário pensarmos o ministério público conforme a Constituição, pois é ela que deve constituir a sua ação [40].
Se o ministério público foi reinventado, regenerado e fortalecido pela atual Magna Carta para que tenha uma atuação muito mais eficaz na sociedade [41], força é convir que esta mesma Magna Carta deve pautar e orientar todas as suas atividades intra e extraprocessuais, pois, somente desta forma, poderá alcançar a defesa do ordenamento jurídico pátrio, e do Estado Democrático de Direito, ainda que, dessa maneira, não se desvincule da manutenção da ordem constituída e, por conseqüência, da defesa, direta ou indireta, dos interesses da classe social predominante, servindo assim como instrumento jurídico de controle [42] sócio-econômico [43] e político- cultural [44], impregnado pelo seu "poder simbólico" [45][46].
Sendo assim, é necessário que tenhamos claro dois aspectos ao vislumbrarmos uma verdadeira independência funcional do ministério público, são eles: a) primeiro, que o ministério público é também mecanismo de controle social, político e econômico; b) e segundo, que o ministério público, ao desempenhar a sua função com independência funcional, exerce sobre a sociedade, em quase toda a sua extensão, o seu poder simbólico, dentro da sua área de atuação.
Mas cabe, ainda, aqui, a seguinte reflexão de natureza política: a quem ou a que setor ou classe da sociedade interessa não ter um ministério público com uma verdadeira independência funcional? Quais as verdadeiras razões que motivam esse processo gradativo, impulsionado e defendido por alguns setores da doutrina e da sociedade, de desvalorização, mitigação e, porque não dizer, de desrespeito da norma constitucional?
É necessário que tenhamos em mente, se pretendemos realmente responder a cada uma dessas questões, que o Direito é um dos diversos instrumentos de controle social (ainda que, ao nosso ver, não seja dos mais eficazes) e que se encontra, por conseqüência, mui fortemente influenciado por aspectos políticos, servindo, por isso, muitas vezes de meio para alcançar os fins [47] de determinado seguimento social.
Desta forma, interessa a classe social dominante manter um ministério público ocioso e alienado às suas primordiais funções de defesa dos interesses coletivos e individuais indisponíveis, para que, assim, este órgão não lhe crie problemas, não venha promover prisões de grandes empresários envolvidos com atividades ilícitas (crime organizado, lavagem de capitais, crimes tributários, crimes contra o sistema financeiro nacional...), não venha a apurar desvios de grandes somas de dinheiro público e não venha a causar grandes perdas financeiras com o pronunciamento de algum de seus membros (tome-se como exemplo a volatividade e insegurança do mercado de ações, que ao sinal de apuração de qualquer crime econômico, sob o rótulo da "insegurança do mercado", desvia suas aplicações financeiras para outros nichos, perdendo-se assim vultosas somas de dinheiro).
Como se vê, é a esta classe social, a qual tem muito a perder como um ministério público com uma real independência funcional, que não interessa a mencionada independência, salvo quando for apurar algum fato que seja do seu interesse e aí, então, nesses casos, vem à tona todo o discurso de um direito penal da "lei e da ordem". Fica nítido, então, como o ministério público e, mais ainda, como o Direito fica, em todos os momentos, servindo de joguete nas mãos dos detentores dos meios de produção, dos que determinam, controlam e orientam os fatores reais de poder.
Diante disso, cabe ao jurista do terceiro milênio, antes de se envolver em alienadas incursões dogmático-jurídicas, ter em conta que o Direito é que se presta para o homem e não o homem que deve ser condicionado pelo Direito.
Notas
01. FACHIN, Zulmar. Responsabilidade Patrimonial do Estado por Ato Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 1ª ed., 2001.
02. MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Note-se que não há na doutrina um posicionamento pacífico quanto à divisão de poderes, havendo entendimentos que defendem dois poderes ou funções (administrativa e jurisdicional, conforme Oswaldo Aranha Bandeira de Mello – Princípios Gerais do Direito Administrativo, Forense, v. I, 2ª, 1979, pp. 24 a 33, ou de criar o direito e executar o direito, consoante Hans Kelsen – Teoria General Del Derecho y Del Estado, Imprensa Universitária, México, 1950, tradução de Eduardo García Maynez, pp. 268-269) e outros que defendem quatro "atividades" (executiva, legislativa, judicial e de governo, de acordo com Otto Mayer, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello em seu "Curso de Direito Administrativo", na sua 14ªedição, pp.17-18).
03. MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao ministério público. São Paulo. Saraiva. 3ª ed., 2000.
04. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros, São Paulo, 2002; DE PIETRO, Maria Sílvia Zanella, Curso de Direito Adminitrativo, Atlas, São Paulo, 2002.
05. MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do ministério público. São Paulo. Saraiva. 5ª ed., 2001.
06. Lei nº8.625 de 12 de fevereiro de 93, a qual deve ser analisada com o auxílio da lei complementar nº 75/93 modificada pela lei complementar nº88/97.
07. PINHO, Humberto Dalla. Princípios institucionais do ministério público. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.
08. BANDEIRA DE MELLO, Osvaldo Aranha. Princípios básicos do direito administrativo. Rio de Janeiro, Forense, 1959.
09. ATIENZA RODRÍGUEZ, Manuel. Sobre la analogía en ele derecho, Madri, 1986, ed. Cívitas.
10. LACOMBE CAMARGO, Margarida Maria. Hermenêutica e argumentação. Rio de Janeiro, Renovar, 2ª, 2001; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, Forense, Rio de Janeiro, 1999; STRECK, Lênio Luiz. A hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
11. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
12. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência – aspestos da cultura popular do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
13. Poderia se lembrar ainda, o exemplo das desapropriações com fins de reforma agrária, nas quais o ministério público federal vê-se às voltas com o problema de como opinar com independência funcional em torno de qual seja, realmente, o laudo técnico de avaliação das terras que se encontra perfeitamente correto, ou seja, se é aquele elaborado pelo perito do Juízo ou, se é o confeccionado pelo perito contratado pelo INCRA.
14. Nesse sentido, aliás, é a lei orgânica do ministério público de São Paulo.
15. SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação dos poderes. São Paulo: Saraiva, 1987; BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 16-17; BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, 5ª, Belo Horizonte: Del Rey Editora, 1993, p. 27.
16. Saliente-se que tal vocábulo deve ser entendido conforme os esclarecimentos desenvolvidos no terceiro tópico.
17. Nesse passo, por oportuno que é, é mister deixar registrado a nossa inquietude em torno do assunto, pois ainda não estamos completamente convencidos deste último posicionamento, na medida que, desta forma, estaremos admitindo que o Poder Executivo desempenha frente ao ministério público uma função meramente simbólica.
18. Observe-se, a esse respeito, as considerações feitas anteriormente.
19. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório no processo penal, Lúmen Júris, 2000.
20. Apesar de termos citado dispositivo constitucional relativo ao Poder Judiciário, ressalte-se que, assim o fizemos, com o escopo de nos valermos de um recurso de analogia processual, expressamente permitido pelo artigo 2º do CPP.
21. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance e GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: RT, 4ª, 2002.
22. JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
23. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance e GOMES, Luiz Flávio..., p. 97.
24. Acerca do princípio da proporcionalidade é salutar o estudo dos seus subprincípios: a) subprincípio da adequação, b) subprincípio da necessidade e c) subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Sobre o assunto consulte-se BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Malheiros, 10ª, pp. 356 a 397.
25. GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal, São Paulo: Saraiva, 1999.
26. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. vol. 02. São Paulo: Saraiva.
27. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, vol. 1º, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960.
28. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo, Atlas, 1999.
29. JESUS, Damásio Evangelista. Código de Processo Penal interpretado, São Paulo: Saraiva, 2000.
30. NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 1996.
31. TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de Processo Penal, vol. 02. São Paulo: Saraiva, 1977.
32. BENTO DE FARIA. Código de processo penal. vol. 02, 1942.
33. MARQUES, José Frederico. Elementos de Processo Penal, vol. 02, São Paulo: Bookseller, 1999.
34. GARCIA, Basileu, Comentário ao Código de Processo Penal, vol. 03, Rio de Janeiro: Forense, 1945.
35. TOVO, Paulo Cláudio.Apontamento e guia prático sobre a denúncia no processo penal brasileiro, Porto Alegra, Sérgio Fabris, 1986.
36. BOSCHI, José Paganella. Processo penal, Porto Alegre, Aide, 1995.
37. JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 9ª ed., 2000.
38. Sobre o assunto é de grande importância a leitura do terceiro capítulo – "Sobre o conteúdo processual tridimensional do princípio da presunção de inocência" – da obra "Estudos de Direito Penal e Processual Penal", São Paulo: RT, 1ª edição, 2ª tiragem, 1999, de autoria do professor Luiz Flávio Gomes. Note-se, por oportuno, que o aludido autor diverge do posicionamento por nós defendido no presente artigo, sustentando que da aplicação deste princípio não resulta tal conseqüência, ver páginas 110 a 114.
39. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3ª edição. Portugal-Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp.439-517.
40. PASUKANIS, Eugeni B. Teoría general Del derecho y marxismo, trad. Virgílio Zapatero, Barcelona, 1976, ed. Labor.
41. MARX, Karl. Manuscritos Econômicos – Filosóficos. Trad. Artur Morão. Portugal – Lisboa: Textos filosóficos, edições 70, 1964; LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância. Trad. João da Silva Gama. Portugal – Lisboa: Textos filosóficos, edições 70, 1965; NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Trad. Artur Morão. Portugal – Lisboa: Textos filosóficos, edições 70, 1964.
42. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal – Introdução à Sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos, Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999; ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da reação social, Trad. E. Kosowski, Rio de Janeiro, 1983, ed. Forense; BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revan.
43. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Trd. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição, Rio de Janeiro: Revan, 1991.
44. SANTANA, Heron José de. "Ministério Público e Poder Simbólico", in Revista do Ministério Público do Estado da Bahia, Salvador, v. 06, nº08, jan-dez, 1997. Nesse sentido, vale transcrever o seguinte trecho: "O que importa ressaltar é que o Ministério Público, enquanto defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais, detém uma enorme gama de poderes, já que: a) como um delegado de polícia investiga ilimitadamente qualquer ofensa ao direito (por exemplo, instaura e preside o inquérito civil); b) como um juiz, homologa a conciliação dos interesses ou decide pelo arquivamento das investigações, independentemente de pronunciamento do Poder Judiciário; c) ou como um advogado da sociedade, é legitimado, com relatividade exclusividade, a propor ações civis ou penais públicas, perante o judiciário, visando a condenação de qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada a submeter-se às sanções previstas na lei, nos casos de ilegalidade". Com efeito, "é este papel amplo e diversificado, aliado a um concurso público tradicionalmente sério e difícil (trazendo para os seus quadros boa parte dos melhores advogados do país) que, nos parece, determina o prestígio (status, poder simbólico) de que gozam os agentes do Ministério Público no campo jurídico, a despeito do relativo desconhecimento do seu papel pelo senso comum".
45. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979.
46. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1999.