Sumário: 1. Introdução; 2. Pressupostos para uma verdadeira independência funcional; 3. O problema da não personalidade jurídica do ministério público; 4. Conseqüências pragmáticas no ordenamento jurídico vigente e sua necessária releitura constitucional de maneira a conferir eficácia ao mandamento constitucional que estabelece a independência funcional do ministério público; 5. Conclusões.
1. Introdução.
Como é sabido, desde a Constituição de 1988, o ministério público, além de ter se desvinculado institucionalmente do Poder Executivo, foi elevado à condição de órgão detentor de autonomia funcional e administrativa, sendo essa, aliás, a redação do artigo 127, parágrafo 2º (segundo), da referida Magna Carta, que assim dispõe: "Ao ministério público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no artigo 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento".
Dito isto, necessário será que se tenha a exata noção do que se deve entender por autonomia funcional, já que, no momento, não iremos tratar da autonomia administrativa. Vale dizer, mister será que se responda pelo menos as duas indagações a seguir: a) quais os pressupostos da verdadeira autonomia funcional? e b) quais as suas conseqüências na própria forma de atuação do ministério público?
Pois bem, este é o objeto de estudo e ênfase do presente texto, ou seja, tentar responder satisfatoriamente a estas duas indagações e, com isso, aproximar-se do verdadeiro significado e extensão da expressão autonomia funcional.
2. Pressupostos para uma verdadeira independência funcional.
Para que possamos admitir que um determinado ente (usamos a expressão ente porque entendemos que, ao contrário de da designação como órgão, denomina melhor a verdadeira natureza jurídica do ministério público), seja ele qual for, detenha autonomia funcional (autonomia para desempenhar a sua função institucional) é necessário que ele reuna, em torno de si, três pressupostos básicos, quais sejam, uma lei, conforme os ditames da Constituição, que o institua juridicamente; uma própria dotação orçamentária, que seja a ele designada; e uma função específica que seja por ele desempenhada, isto é, uma função peculiar.
Com efeito, o primeiro dos pressupostos e de todos o mais importante, pois lhe confere existência jurídica, é o de haver uma lei que o institua, obedecendo-se, por óbvio que é, aos princípios e regras do ordenamento jurídico. Caso contrário tal ente não teria qualquer significação para o mundo jurídico.
Insta salientar, consoante se nota na redação do parágrafo segundo, do artigo 127 da Constituição Federal, que tal lei será de iniciativa do ministério publico, podendo este propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de seus cargos e serviços auxiliares, estabelecer a política remuneratória e os planos de carreira, bem como disciplinar as suas organização e funcionamento.
Vê-se, portanto, que o espectro de atuação do Poder Legislativo é, neste caso, de natureza reduzida, não tendo tal Poder a discricionariedade para regular toda e qualquer matéria relativa acerca do parquet.
No que concerne à dotação orçamentária, quando a expusemos como um dos pressupostos, o fazemos não com a exigência de que seja criada e aprovada pelo próprio ente, mas que seja aprovada e criada em função de um determinado ente, de forma obrigatória, sem que, por qualquer razão, mesquinhas ou não, uma pessoa jurídica de direito público possa não direcionar uma determinada verba em prol de determinado ente. Vale dizer, a porção do orçamento destinada àquele determinado ente não poderá ser redirecionada para qualquer outro fim, de maneira a comprometer o desempenho das funções por parte deste, pois se o fizer não só restará configurada improbidade administrativa, como também desvio de finalidade.
Convém ressaltar que este segundo pressuposto também é deveras relevante, visto que, conquanto exista juridicamente um determinado ente, fundamental é para que desempenhe a função para qual foi concebido que tenha recursos para o fazer.
Aliás, a este respeito, cumpre destacar que a Constituição Federal, em seu artigo 127, parágrafo terceiro, determinou, expressamente, que o ministério público elaborará a sua proposta orçamentária. Desta forma, nota-se, de forma insofismável, que o espírito do legislador constituinte foi o de atribuir o máximo de liberdade possível a este órgão no que concerne à configuração de seu orçamento. Tanto é assim, que a Constituição impôs como único limite no ato de elaboração da proposta orçamentária a obediência, por parte do parquet, aos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.
Por fim, mas não menos importante, o terceiro pressuposto, como já expusemos há pouco, é o que estabelece como ente aquela figura jurídica que tem uma função peculiar, ou seja, uma função que lhe seja específica e que, por isso, o diferencie entre os demais órgãos e instituições. Vale dizer, se o Estado cria dois ou mais entes para desempenhar uma mesma função, o que não é, em princípio, impossível, temos um Estado certamente ocioso, que se presta a destinar recursos e criar normas que, além de redundantes, acabam por ser, também, inúteis.
3. O problema da não personalidade jurídica do ministério público.
Antes de adentrarmos propriamente nas conseqüências pragmáticas do princípio constitucional da independência funcional no ordenamento jurídico vigente, releva assentar, inicialmente, que o ministério público, como a doutrina nacional na sua totalidade assevera, não possui personalidade jurídica, cuidando-se, na realidade, de um órgão.
Todavia, interessante é notar que, apesar disso, tal órgão, não só pratica atos em nome próprio, seja fora ou dentro da relação processual, como os membros que compõe o mesmo, isto é, os promotores e procuradores de justiça (verdadeira personalização do ministério público), respondem, civil (CPC, art.85) penal e administrativamente (CF, art. 37, § 6º), por seus atos [1].
Diante disso, poderia parecer, à primeira vista, que o ordenamento jurídico criou uma situação inteiramente anômala no que tange ao Parquet, vez que, a um só tempo, não conferiu personalidade jurídica, mas lhe atribui responsabilidade. Em outras palavras, estabeleceu a conseqüência (responsabilidade pelos atos praticados) sem assentar seu pressuposto, qual seja, atribuir-lhe uma personalidade jurídica.
Não fosse isso suficiente, a Constituição de 1988 ainda lhe atribuiu autonomia funcional, ou seja, autonomia para que desempenhe a função para qual foi criado e instituído. Dito isto, para que possamos resolver esta aparente difícil equação jurídica, faz-se necessário ter em mente, os pressupostos, já mencionados, da verdadeira autonomia funcional, ao nosso ver.
Releva notar, inicialmente, que não há qualquer contradição no ordenamento jurídico pátrio ao definir um ente, o qual não é dotado de personalidade jurídica, mas pode ser responsabilizado juridicamente por seus atos (assim como os seus membros). Isto porque a idéia que marca a constituição do ministério público, é a de conceber o Estado um ente, mantido e criado por ele, mas que tivesse, ao mesmo tempo independência para atuar até mesmo, conforme o caso, contra ele.
Dentro desta concepção, tomando-se o ministério público tanto como um fiscal da lei quanto como parte em um processo, não poderia este se encontrar vinculado juridicamente a qualquer dos poderes do Estado, tanto para manter a igualdade de independência e autonomia entre esses (executivo, legislativo e judiciário [2]), quanto para garantir a máxima autonomia deste ente, tudo em prol da manutenção do ordenamento jurídico.
Sendo assim, optou o Estado por não conferir personalidade jurídica ao ministério público, como forma de não vinculá-lo juridicamente a si, pois, de outra modo, isto é, conferida tal personalidade jurídica ao ministério público, este seria, ao menos, uma pessoa jurídica de direito público (seja como autarquia, seja como fundação pública), ou, quando menos, estaria submetido a esta (considerado, neste caso, como órgão, em sentido estrito, submetido ao Estado) e, portanto, nesses casos, acabaria por restar, jurídica e institucionalmente, atrelado ao Estado.
Pensamos, assim, que o ministério público, apesar de ser considerado, pela maior parte da doutrina [3], como um órgão, ou seja, como um ente sem personalidade jurídica que se encontra submetido aos comandos da pessoa jurídica de direito público a qual está subordinado (numa visão essencialmente administrativa [4]), não se enquadra, a rigor, dentro desta moldura pré-fabricada do direito administrativo, vez que possui características peculiares, que o diferencia desse.
Servem de exemplo, para evidenciar tais características peculiares, o fato de o ministério público possuir um regime jurídico próprio [5], com uma lei orgânica própria [6], algo que não é comum, no ordenamento jurídico pátrio, à maioria dos órgãos.
Outra marca distintiva do parquet, é a própria independência funcional (princípio constitucional institucional [7]) e administrativa proclamada pela Constituição Federal, como já assinalado linhas atrás. Como se sabe, segundo a doutrina administrativista clássica [8], os órgãos, em geral, não possuem independência funcional nem, muito menos, uma independência elevada a um patamar constitucional. Estes, normalmente, são meras figuras auxiliares das pessoas jurídicas de direito público. Vale dizer, são corpos auxiliares que colaboram no exercício e desempenho das atividades essenciais ou de alguma forma relacionadas com os fins daquela pessoa jurídica de direito público. Em uma só palavra, os órgãos, tomados à luz do direito administrativo, são corpos sem vida própria, pois são acessórios que seguem o principal (a pessoa jurídica de direito público).
Sendo assim, resta evidente, por conseguinte, que o ministério público não se enquadra dentro da figura de órgão que o direito administrativo nos ensina. Desta forma, entendemos que a única solução para o deslinde desta problemática reside em considerarmos o ministério público como um órgão sui generis, um órgão especial, ou seja, como um órgão em sentido amplo, vez que este tanto não se enquadra no conceito clássico de órgão quanto não possui uma personalidade jurídica própria.
Note-se, a esse respeito, que defendemos este posicionamento doutrinário, pois se valendo do mecanismo da analogia [9] (método integrativo de aplicação do direito [10] utilizado quando não se encontra no ordenamento jurídico um instituto jurídico adequado para regulamentação de uma situação jurídica), o instituto jurídico existente mais próximo (ou melhor, menos distinto) do ministério público é exatamente o órgão.
Desta forma, então, é possível conceber o ministério público como um órgão (sui generis, é claro), e, ao mesmo tempo, contemplar uma solução para a pseudo contradição em que teria supostamente incorrido o ordenamento jurídico constitucional, pois, utilizando-se de tal explicação, podemos admitir, a um só tempo, um ente sem personalidade jurídica, mas dotado de responsabilidade jurídica. Diga-se, então, que, por meio de tal raciocínio, podemos encontrar uma solução que preserve a unidade e harmonia do sistema jurídico [11].
4. Conseqüências pragmáticas no ordenamento jurídico vigente e sua necessária releitura constitucional de maneira a conferir eficácia ao mandamento constitucional que estabelece a independência funcional do ministério público.
Estabelecidos os pressupostos básicos de constituição do ministério público e analisado o problema da sua falta de personalidade jurídica, cumpre assinalar, agora, quais são as suas conseqüências na própria forma de atuação do ministério público.
Assentadas estas premissas e dirimidas estas falsas problemáticas, passemos, então, a tratar de quais sejam as conseqüências da independência funcional na própria forma de atuação do ministério público [12].
A primeira das conseqüências pragmáticas decorrentes da aplicação do princípio constitucional da independência funcional consiste em ter o ministério público um melhor amparo, no que concerne a certas atividades secundárias que dam base ao desempenho de suas funções essenciais.
Vejamos o seguinte exemplo. Em um dado processo (ou inquérito policial, ou procedimento administrativo), vê-se o membro do parquet com a obrigação de emitir um parecer acerca de determinada perícia contábil, a qual se encontrava anexada aos autos de um processo que apura a possível prática do crime de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98) [13]. Poderá, realmente, diante desta situação, o membro do ministério público formular a sua opinio delicti com tal consciência dos fatos?
Parece-nos, certamente, que não. E o motivo é óbvio: falta ao membro do parquet capacidade técnica "real" para emitir o aludido parecer.
Ora, como se sabe, um promotor de justiça tem formação em letras jurídicas, não tendo nem sequer noção de conhecimentos básicos de contabilidade. Sendo assim, para que o ministério público possa, realmente, desempenhar com autonomia processual as suas funções constitucionais, mister se faz que o mesmo se encontre amparado por uma boa equipe de profissionais técnicos, com formação nas mais diversas áreas do conhecimento científico e que esta integre os quadros permanentes desta instituição, pois, somente desta forma, o membro do parquet poderá formar com segurança o seu juízo de convencimento em torno dos fatos que são apurados no processo.
Não se diga, por sinal, que esta última proposta é dispendiosa ou inovadora, pois na verdade não o é, uma vez que o próprio constituinte a previu ao se referir a serviços auxiliares no artigo 127, § 2º, da Constituição Federal, in verbis:
"Ao Ministério Público é assegurada a autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os panos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento" (grifo nosso).
A segunda conseqüência é a do estabelecimento de uma nova regra para eleição do procurador geral de justiça. Ao nosso ver, tal regra deve ser marcada pelo seguinte aspecto: elaboração de uma lista tríplice com força vinculante [14], além do voto de todos os membros do ministério público, sejam procuradores de justiça, sejam promotores, o que, aliás, já se encontra previsto pela lei orgânica nacional do ministério público (Lei nº8.625/93).
Estes novos aspectos certamente diminuirão em muito o grau de ingerência política do Poder Executivo no ministério público, credibilizando, desta forma, mais ainda, a função desempenhada pelos membros deste ente.
Note-se, por oportuno, que não partilhamos do entendimento que sustenta a possibilidade de o próprio ministério público, por meio do voto exclusivo de seus membros, eleger seu procurador-geral de justiça, vez que admitida tal possibilidade, a rigor, resta concretizada, no nosso entender, uma ofensa ao princípio constitucional da autonomia e independência dos Poderes [15] – CF, art. 2º -, já que se estaria conferindo ao ministério público o "status" de um órgão [16] que não estaria submetido à ingerência de quaisquer dos Poderes do Estado, ou seja, seria uma espécie de Quarto Poder [17], na medida que seria um Poder independente e autônomo.
Sendo assim, tal entendimento não merece prosperar, pois, além de o ministério público não ter sido alçado pela Constituição Federal de 1988 ao "status" de Quarto Poder, a própria Magna Carta permite ingerências por parte dos três Poderes do Estado, seja autorizando a escolha do procurador-geral de justiça por parte do Chefe do Poder [18] Executivo [19], seja submetendo o projeto de lei orgânica do ministério público à aprovação do Poder Legislativo, apesar desse ser de iniciativa do próprio órgão, seja, por fim, admitindo o controle deste "órgão", de seus membros e de seus atos processuais ou não por parte do Poder Judiciário.
Uma terceira conseqüência, ao nosso ver, é a mitigação do princípio da obrigatoriedade no processo penal. Afinal, parece-nos, no todo, incompatível a convivência do princípio da independência funcional (de patamar constitucional) com uma mordaça infraconstitucional (um limitador do pensamento e da livre consciência do promotor de justiça, o qual é considerado pelo ordenamento jurídico processual nacional, de origem fascista, como ser que não pensa, mas que cumpre ordens), erradamente confundida pela maior parte da doutrina processualista nacional com o princípio da legalidade.
Com efeito, não nos parece admissível que um princípio constitucional seja limitado e interpretado à luz de um princípio infraconstitucional, tanto por razões e hierarquia e harmonia do ordenamento jurídico quanto porque, no mundo moderno, marcado cada vez mais pela relatividade das definições, é impossível conviver com conceitos absolutos.
Ademais, conceber o princípio da obrigatoriedade conforme os moldes atuais é, como já tido, tomar o promotor de justiça, ou seja, o ser pensante, como um mero cumpridor automático de ordens.
Desta forma, segundo o nosso entendimento, com a Constituição Federal de 1988, o membro do ministério público não se encontra mais obrigado a ter que oferecer, de regra, a denúncia, ou a não poder desistir do recurso interposto (CPP, art. 576), pois tem independência funcional (a qual é diferente da independência administrativa).
Cumpre salientar, ainda a esse respeito, que não se deve confundir o princípio da obrigatoriedade, de índole infraconstitucional, com o princípio do sistema acusatório [20], de feição constitucional, pois o fato de o ministério público deter, com exclusividade, o poder de promover a persecutio criminis in juditio, ou seja, de propor a ação penal, não significa que deva fazer isso obrigatoriamente em todos casos. Nesse sentido, a justa causa, entendida como uma das condições gerais da ação penal – CPP, art. 43, deve ser entendida como uma decorrência do princípio constitucional da motivação das decisões – CF, art. 93, IX [21], na medida em que se deve exigir do promotor argumentos fáticos plausíveis para oferecer uma denúncia.
Aliás, é movido também por esse princípio, que já se identifica no ordenamento jurídico mitigações isoladas do princípio da obrigatoriedade (a exemplo dos artigos 72 a 76, da Lei nº9.099/95 [22]), como é o caso, por exemplo, da transação penal.
Note-se, contudo, que grande parte da doutrina nacional diverge deste entendimento por nós aqui defendido, sob o argumento de que se trata de hipótese de aplicação do princípio da oportunidade [23], ou da discricionariedade regulada ou regrada [24]. Mas o certo é que, qualquer seja o argumento, é indiscutível que o princípio da obrigatoriedade está por sofrer uma inicial e progressiva mitigação no campo processual penal.
Outra conseqüência da aplicação do princípio da independência funcional, desta feita exercendo suas influências no campo processual civil (CPC, arts. 81 a 85), é a flexibilização da intervenção do ministério público nas causas em que há interesse de incapazes (CPC, art. 82, I), isto porque não são todos os processos em que há interesse de incapaz que se pode identificar uma das finalidades constitucionais de atuação do ministério público (CF, art. 127, caput), ou seja, defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Tomemos o seguinte exemplo. Uma jovem de 17 (dezessete) anos presta concurso vestibular para faculdade de medicina de Alfenas (MG). Passados 03 (três) meses, esta impetra um mandado de segurança pleiteando a sua transferência para faculdade de medicina de Salvador (BA), alegando por motivos de ordem familiar e econômica. Pergunta-se: é realmente necessário, nesse caso, a intervenção do ministério público no processo, somente por se tratar a jovem de menor relativamente incapaz?
Decididamente, pensamos que não. Não há na presente hipótese qualquer interesse individual indisponível em jogo, mas apenas o interesse individual disponível exclusivo da jovem que deseja obter a transferência. Vê-se, então, que não é caso de atuação do ministério público. Esta é, aliás, uma conclusão que se pode chegar por meio da aplicação do princípio da proporcionalidade [25] ao caso concreto dado como exemplo, já que é necessário se fazer uma ponderação de todos os valores envolvidos na determinação legal de intervenção ou não do ministério público.
Outra conseqüência encontra-se na designação do segundo promotor de justiça pelo procurador geral de justiça para que aquele ofereça "obrigatoriamente" a denúncia, nos moldes do artigo 28 do CPP.
No que concerne especificamente a essa providência há uma acirrada discussão doutrinária. Senão vejamos.
Para a grande maioria da doutrina, a exemplo dos professores Vicente Greco Filho [26], Fernando da Costa Tourinho Filho [27], Eduardo Espínola Filho [28], Julio Fabbrini Mirabete [29], Damásio Evangelista de Jesus [30], Edgard Magalhães Noronha [31], Hélio Bastos Tornaghi [32], Bento de Faria [33], José Frederico Marques [34] e Basileu Garcia [35], não pode o promotor designado pelo procurador-geral de justiça recusar-se a oferecer a denúncia por este determinada em razão de um imperativo de hierarquia previsto em lei (Lei nº8.625/93, art. 10, inciso IX, d), bem como porque não há qualquer ofensa à consciência do promotor, vez que o mesmo age por delegação do chefe do ministério público.
Contudo, no nosso entender, e comparecem defender os professores Paulo Cláudio Tovo [36] e José Paganella Bosh [37], o promotor, apesar de designado pelo procurador-geral de justiça, não deve está obrigado a oferecer a denúncia, pois tal exigência, além de ofender o princípio da independência funcional (CF, art. 127, § 1º), é de todo desnecessária, vez que, se o procurador-geral de justiça está tão convicto do oferecimento da denúncia, nada impede que ele mesmo o faça.
Com efeito, releva notar que a própria denúncia fica, em muito comprometida, se o promotor que deve, em tese, oferecer a denúncia, não está convicto disso, pois, se o próprio está em dúvida acerca dos elementos que devem compor a exordial acusatória, como, por exemplo, a justa causa, em obediência ao princípio constitucional do in dubio pro reo (CF, art. 5º, LVII), como quer o professor Afrânio Silva Jardim [38], não deve ser oferecida denúncia, vez que, em razão do aludido princípio, cabe ao ministério público, no nosso entender, o ônus da prova, ou seja, o ônus de demonstrar que o acusado realmente é o autor de um determinado delito, na sua inteireza (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), como decorrência do princípio constitucional da presunção de inocência – CF, art. 5º, LVII [39].
Ademais, não há que se justificar tal exigência com base na hierarquia, vez que o promotor, no desempenho de sua função ministerial, não está submetido a qualquer ingerência do procurador–geral de justiça, pois, se assim fosse, força é convir que poderiam ocorrer situações que distorceriam a atividade do promotor, como, por exemplo, a de este membro do parquet, para conseguir gratificação ou remoção para uma comarca mais próxima da Capital, promover uma determinada ação penal para agradar o procurador-geral de justiça, que, seja por seu excesso de trabalho, seja por seu interesse pessoal no desfecho da ação penal, não queria promover, pessoalmente, a mesma.
Note-se, ainda, que só há falar em hierarquia, no que concerne ao desempenho das atividades do promotor na esfera interno-administrativista do ministério público, ou seja, interna corporis. Caso contrário, toda vez que o promotor fosse oferecer alguma denúncia, teria a "obrigação institucional" de consultar o procurador-geral de justiça, para obter desse a sua opinio delicti.
Por fim, sustentamos, ainda, que não assiste razão àqueles que defendem o posicionamento contrário sob o argumento de que se viesse a se permitir que o promotor designado pudesse divergir da instrução do procurador-geral de justiça, demorar-se-ia demasiadamente para se oferecer a denúncia, correndo-se, desta forma, o risco de vim a prescrever o delito. Contudo, isto não é verdade, pois, como já foi destacado, o próprio procurador-geral de justiça pode oferecer a denúncia, evitando, assim, uma possível prescrição.
Saliente-se, por fim, acerca das conseqüências pragmáticas, que as que foram por nós aqui lembradas não são e não devem ser as únicas vislumbradas no ordenamento jurídico, havendo, a esse respeito, muitas outras. Vale dizer, os casos aqui destacados devem ser tomados exemplificativamente.