Sumário: 1. Introdução: colocação do problema. 2. O processo de celebração dos tratados. 3. Os tratados e o direito interno. 3.1. As doutrinas monista e pluralista na visão kelseniana. 4. A jurisprudência do STJ e STF. 5. Considerações Finais. 6.Notas.7. Referências Bibliográficas. 7..1. Livros. 7.2. Periódicos Eletrônicos.
1.Introdução: Colocação do Problema
A preocupação com a forma de introdução do chamado direito alienígena no ordenamento jurídico interno vem sendo constantemente tema de debates em meio acadêmico e, como se verá, jurisprudencial também, o que com certeza denuncia a importância do estudo da temática na seara tributária.
No presente artigo, intitulado Os Tratados Internacionais em Matéria Tributária, será prefacialmente analisado o processo de celebração e ratificação dos tratados, passando-se, em seguida, ainda que perfunctoriamente, e por intermédio da doutrina kelseniana, ao exame das disciplinas monista e pluralista que tratam da sistemática de introdução dos acordos internacionais no plano intestinal dos países.
Em seguida, após a classificação do arquétipo escolhido pelo constituinte e legislador nacional, far-se-á um exame mais detido em torno do contestado artigo 98 do Código Tributário Nacional, cotejando-o com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, em abordagem crítica sobre a opção do Judiciário brasileiro. Nesta importante passagem, o enfoque maior será conferido às isenções tributárias heterômas e à forma como vêm decidindo os referidos órgãos judiciais.
Ao final, tecer-se-ão algumas considerações finais tópicas, esperando-se, deste modo, e sem a pretensão de exaurir a questão, tornar um pouco mais evidente a problemática objeto do presente artigo.
2.O Processo de Celebração dos Tratados:
O Tratado, conforme Luis Ivani de Amorim Araújo, "[...] é um ato jurídico segundo o qual os Estados e Organizações Internacionais que obtiveram personalidade por acordo entre diversos Estados criam, modificam ou extinguem uma relação de direito existente entre eles." [1]
Todavia, para que se tornem eficazes, necessitam passar por um processo de negociação, celebração e ratificação descrito em lei, onde o Congresso e Presidência da República estarão dotados de competências diversas, mas voltados para a mesma finalidade (nos países de língua inglesa, é utilizada a expressão treaty-making power para designar o conjunto de poderes para a celebração dos tratados).
Em termos constitucionais, disciplina nossa Magna Carta, no Título III (Organização do Estado), Capítulo II, art. 21, I, que compete à União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais. O art. 84, VII (Capítulo II, Seção II), por seu turno, elenca como uma das atribuições privativas do Presidente da República a manutenção de relações com Estados estrangeiros.
Esta competência, dada pela Constituição, faz com que a União, por intermédio do Presidente da República, no plano externo, seja a representante de toda a República Federativa do Brasil, aí incluídos os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Ao agir perante os demais países, portanto, a União não estará falando apenas em seu nome, mas também em nome dos demais entes federativos, perante a ordem internacional.
Apesar de o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66), em seu Livro Segundo (Normas Gerais de Direito Tributário), dispor do tratado como uma das fontes do Direito Tributário, e lhes dar especial força em seu art. 98, o certo é que a Constituição Federal de 1988, ao disciplinar a forma de introdução destes acordos internacionais no ordenamento interno tratou de impor certo limite interpretativo aos mencionados dispositivos legais, porquanto, para que seja o tratado considerado como fonte do direito, necessário se faz que antes seja observado o seu especial trâmite de celebração, aprovação e ratificação. [2]
Nesse passo, seguindo-se a disciplina constitucional, destacamos mais uma vez o art. 84 da Constituição, o qual disciplina a competência única e exclusiva do chefe do Poder Executivo Nacional para celebrar tratados, convenções e atos internacionais, estando tais instrumentos, entretanto, sujeitos ao referendo do Congresso Nacional.
Diante deste quadro, temos então que: a) somente o Presidente da República poderá celebrar tratados internacionais; e b) apesar de celebrados, há a necessidade de referendo pelo Congresso Nacional para que seja operada a ratificação. Trata-se, portanto, de ato extremamente complexo, envolvendo os Poderes Executivo e Legislativo. Estes atos, segundo a lição de Alberto Xavier, compõem a fase de celebração dos Tratados. [3]
Antecedendo esta fase, há uma outra, designada pelo referido autor português como fase das negociações, a qual inicia-se com a intervenção de agentes do Poder Executivo e termina com a autenticação, isto é, com a declaração das partes envolvidas que o processo de formulação do acordo foi concluso, fixando-se o texto que será submetido a ratificação. O término desta fase, entretanto, não gera para o Estado signatário a obrigação de cumpri-lo, refletindo apenas, ainda segundo o magistério de Xavier, "[...] a mera intenção do Governo de prosseguir no procedimento de celebração do tratado." [4]
Há, desta feita, após a fase das negociações, uma série de atos que podem ou não culminar na adoção do tratado pelo direito interno brasileiro. Primeiro o Presidente da República celebra o acordo. Depois, este tratado é submetido ao Congresso Nacional, que oferece ou não o referendo, por meio de Decreto Legislativo. Após, retorna o referendo novamente ao chefe do Executivo para que este o ratifique, depositanto o instrumento. Somente após a ratificação e o depósito do documento com as assinaturas das respectivas autoridades governantes, portanto, é que poder-se-á dizer que o tratado internacional se transformou em fonte de nosso direito, pois apenas neste instante é que passará o acordo a viger no plano interno.
Percebe-se, então, que, mesmo finalizadas todas as fases, restando apenas a ratificação, se esta não for efetivada, não poderá o tratado ser exigido, porquanto ainda não foi inserido em nossa ordem jurídica. Neste sentido, aliás, é a opinião de Luis Ivani de Amorim Araújo:
Mas, se o tratado aprovado pelo Congresso Nacional não tiver seus trâmites subseqüentes ultimados, jamais entrará em vigor, pois se a aprovação de um tratado pelo Legislativo é condição essencial para a sua ratificação, não a torna obrigatória, não gerando efeitos sem essa exigência.
Não ratificado o tratado, tem-se que o mesmo foi recusado, pois a anuência de ratificação é ato inerente à soberania do Estado e, por conseguinte, constitui o exercício normal de um direito, não transgredindo nenhum preceito internacional; [5]
Alberto Xavier cita ainda, além da ratificação e troca dos instrumentos, uma terceira fase integrante do procedimento de celebração dos tratados, denominando-a de fase integrativa da eficácia [6]. Esta fase, segundo o professor lusitano, compreende a promulgação do tratado por decreto executivo e sua publicação no Diário Oficial. Tratam-se procedimentos envolvendo apenas questões de forma, pois, afinal de contas, a vigência do tratado se dá a partir do depósito dos instrumentos.
Em linhas gerais, este é o formato adotado pelo Brasil para a incorporação do tratado no âmbito interno.
3.Os Tratados e o Direito Interno:
A celeuma em torno da introdução dos tratados no direito interno de cada Estado possui raiz fincada na querela entre os doutrinadores que adotam o modelo monista e aqueles que preconizam o pluralista, contraposto ao primeiro.
A revisitação destas categorias será feita tomando-se por base a obra do alemão Hans Kelsen, intitulada Teoria Geral do Direito e do Estado. [7].
3.1.As Doutrinas Monista e Pluralista na Visão Kelseniana:
Na parte final do Capítulo VI (Direito Nacional e Internacional) de sua obra, Kelsen inicia demostrando estar ciente de que a doutrina pluralista [8] é maioria no campo prático e acadêmico, procurando, todavia, explicar as razões pelas quais entende mais correta a visão monista da relação entre o Direito Interno e Internacional.
Para Valerio de Oliveira Mazzuoli, justificando a importância do estudo destas doutrinas, "[...] a dificuldade está em saber se o direito internacional público e o direito interno são dois ordenamentos independentes um do outro, estanques, ou se são dois ramos de um mesmo sistema jurídico." [9]
Os dualistas (ou pluralistas), representados por Alfred Von Verdross (responsável pelo batismo da doutrina como dualismo, ainda em 1914), defendem a independência e distinção entre o direito interno de cada Estado e o direito internacional, com o primeiro regulando a conduta dos indivíduos na ordem interna e o segundo preocupando-se com a ordem externa, ou seja, com o relacionamento entre as nações. Assim é que, para o dualismo, as duas ordens são distintas, necessitando-se de uma espécie de transmutação do tratado em lei interna para que sejam seus preceitos aplicáveis na esfera nacional.
Neste mesmo sentido, encontra-se na doutrina nacional interessante entendimento exposto por Arnaldo Süssekind:
Para a teoria dualista, as duas ordens jurídicas - internacional e nacional - são independentes e não se comisturam. A ratificação do tratado importa no compromisso de legislar na conformidade do diploma ratificado, sob pena de responsabilidade do Estado na esfera internacional; mas a complementação ou modificação do sistema jurídico interno exige um ato formal por parte do legislador nacional. [10]
Vê-se, portanto, que, para esta doutrina, as normas de direito internacional têm eficácia apenas na seara estrangeira, ao passo que as normas de direito interno somente possuem eficácia na ordem jurídica intestina.
No que concerce ao dualismo, Kelsen tece pesadas críticas. Para ele, "[...] é impossível distinguir os chamados "negócios nacionais" dos "negócios estrangeiros" do Estado como duas matérias diversas de regulamentação jurídica." [11] Segundo ainda o referido autor, "[...] cada um dos chamados negócios nacionais pode ser tema de um tratado internacional e, portanto, ser transformado num negócio estrangeiro." [12] Mais adiante, conclui o seu raciocínio com um exemplo, contrapondo-se definitivamente aos pluralistas:
A relação entre empregadores e empregados, por exemplo, é, com certeza, uma relação "interna" dentro do Estado, e a sua regulamentação jurídica é um típico assunto "nacional". Mas, tão logo um Estado conclui um tratado com outros Estados referente à regulamentação dessa relação, ela se torna um assunto estrangeiro. Se descatarmos a metáfora espacial, descobrimos, desse modo, que a distinção tentada entre as matérias do Direito nacional e do Direito internacional é uma mera tautologia. Os chamados "negócios nacionais" de um Estado são, por definição, os regulamentados pelo Direito internacional. A asserção de que o Direito nacional regulamenta assuntos nacionais, e o Direito internacional assuntos estrangeiros, reduz-se ao truísmo de que o Direito nacional regulamenta o que é regulamentado pelo Direito nacional, e o Direito internacional, o que é regulamentado pelo Direito internacional. [13]
Fixadas estas premissas e conhecida a doutrina dualista, passa-se agora ao desvendar do monismo e suas subcategorias.
Para os monistas, segundo Mazzuoli, "[...]o direito internacional e o direito interno formam, em conjunto, uma unidade jurídica, que não pode ser afastada em detrimento dos compromissos assumidos pelo Estado no âmbito internacional." [14] Inexistem, portanto, ordens jurídicas isoladas (dualismo), mas sim um direito único e coordenado, regendo tanto a ordem nacional como internacional.
No exterior, são defensores do monismo, entre outros, Kelsen, Verdross, Mirkine-Guerzévitch e Lauterpacht. Já no Brasil encontramos como favoráveis, constituindo a parte majoritária da doutrina, Haroldo Valladão, Oscar Tenório, Hildebrando Accioly, Celso D. de Albuquerque Mello, Vicente Marotta Rangel e Mirtô Fraga.
Entre os monistas, o punctum saliens situa-se na divergência sobre qual ordem irá prevalecer: a internacional (monismo internacionalista) ou nacional (monismo nacionalista).
Para o monismo internacional, baseado notadamente em Kelsen, o direito interno é derivado do direito internacional, neste encontrando sua subordinação e fundamento de validade, devendo a ele se ajustar (a conhecida pirâmide kelseniana de hierarquia das normas). Em caso de conflito, prevalecerá o direito internacional. Esta é a corrente seguida pela maior parte dos autores nacionais, havendo registros de que o Supremo Tribunal Federal por um longo período de tempo assumiu por completo esta subcategoria do monismo. [15]
O monismo nacionalista (rechaçado por Kelsen), por seu turno, prega a supremacia do direito nacional sobre o direito internacional, sendo a adesão às normas estrangeiras mera faculdade discricionária do Estado soberano. Esta doutrina, conforme se observa, é marcada fortemente pela filosofia de Hegel, cuja visão de Estado é calcada principalmente na idéia de soberania absoluta. Esta corrente, além de não ser a mais aceita, vem sendo fortemente mitigada. A própria legislação internacional que trata dos tratados, qual seja, o chamado Pacto de Viena de 1969 (do qual o Brasil é signatário), em sua Parte III (Observância, Aplicação e Interpretação dos Tratados), Seção Primeira, artigos 26 e 27, diz, respectivamente, que todo tratado em vigor obriga às partes acordantes, devendo ser cumprido por elas de boa-fé (Pacta sunt servanda), não podendo ser invocadas as disposições de direito interno como justificativa para o descumprimento do tratado.
Estas, portanto, em suma, são as tradicionais definições dos sistemas dualista e monista (nacional e internacional), as quais servirão como base teorética para o entendimento dos caminhos trilhados pela jurisprudência pátria nos casos práticos postos em discussão, como será visto nos tópicos que se seguem.
4.A Jurisprudência do STJ e STF:
Há algum tempo a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem discutindo a questão do alcance dos tratados internacionais em matéria tributária.
Sob a égide da Constituição anterior, o Supremo Tribunal Federal entendia que ao produto importado deveria ser estendida a isenção do antigo ICM concedida ao similar nacional, isto por força do acordo internacional denominado GATT, do qual o Brasil foi signatário. Tal entendimento decorria principalmente do art. 20, inciso III, da Constituição Federal de 1969, que dispunha:
Art 21 - É vedado:
III - aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens de qualquer natureza, em razão da sua procedência ou do seu destino.
De tão discutida, a questão findou sendo sumulada na Corte Suprema, em decisão de 15.12.1976, publicada no DJU de 03.01.1977, página 04, verbis:
Súmula 575. A mercadoria importada de país signatário do GATT, ou membro da ALALC, estende-se a isenção do imposto sobre circulação de mercadorias concedida a similar nacional.
Reitere-se, que tal súmula foi editada com base nas disposições constantes da Lei Maior de 1969, cuja disciplina, acerca da matéria, diverge em relação à atual Constituição.
No Superior Tribunal de Justiça, também após intensos debates, foi firmada orientação em tudo idêntica à do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que à mercadoria incluída no acordo do GATT aplica-se a isenção imposta pela legislação interna ao produto similar nacional. A respeito, foram editadas duas súmulas, do seguinte teor:
Súmula 20. A mercadoria importada de país signatário do GATT é isenta do ICM, quando contemplado com esse favor o similar nacional. (julgado em 04.12.1990)
Súmula 71. O bacalhau importado de país signatário do GATT é isento do ICM. (julgado em 15.12.1992)
Todavia, em julgado posterior, mais precisamente no Recurso Especial nº 90.871/PE, relatado pelo Ministro José Delgado, entendeu a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça que, em face do atual ordenamento constitucional, a União não tem competência para, mediante tratado, conceder isenção de ICMS, tributo da competência dos Estados-membros e do Distrito Federal, a determinados fatos geradores por meio de tratado internacional. Na referida decisão, julgada em 17.06.1997, restou assentado que o art. 98 do Código Tributário Nacional deve ser interpretado em consonância com o atual ordenamento constitucional, especialmente no que se refere à repartição das competências tributárias. Nesse caso, se o ICMS é imposto da competência dos Estados-membros, não poderia a União conceder isenção do referido tributo por meio de tratado internacional.
O acórdão também discutiu a questão das isenções autonômicas e heterônomas, abordada por Sacha Calmon Navarro Coelho [16]. Para o autor, isenções autonômicas são as concedidas pelo Poder Legislativo do ente público dotado pela Constituição de competência para instituir o tributo. Por seu turno, isenções heterônomas são concedidas por pessoa jurídica de direito público diversa daquela com competência constitucional para instituir o tributo. A respeito, o art. 151, inciso III, da Lei Maior, veda a isenção heterônoma da União em tributos estaduais e municipais nos seguintes termos:
Art. 151. É vedado à União:
(...)
III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.
Trata-se de clara expressão do princípio federativo, no escopo de preservar a união harmônica entre os seus componentes, de forma que um não interfira na autonomia conferida pela Lei Maior aos demais. Este, aliás, foi um dos fortes argumentos utilizados no corpo do acórdão do Superior Tribunal de Justiça para justificar o posicionamento contrário à isenção.
Todavia, não se observou que a regra das isenções heterônomas não é absoluta. Tanto que, a própria Constituição Federal, no art. 155, parágrafo 2º, inciso XII, e, autoriza a União a excluir da incidência do ICMS a seguinte hipótese:
§ 2º
O imposto previsto no inciso II, atenderá ao seguinte:XII - cabe à lei complementar:
(...)
e) excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, "a";
Regra idêntica se encontra no art. 156, parágrafo 3º, inciso II, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 37, de 12.06.2002:
§ 3º Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:
(...)
II - excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior.
Ora, se cabe à lei complementar excluir da incidência do ICMS e do ISS determinados serviços e produtos nas exportações para o exterior, fica evidente que a Constituição Federal autoriza, expressamente, uma isenção heterônoma, pois compete justamente à União editar a lei complementar que virá a definir quais serão as hipóteses de isenção. Verifica-se, desse modo, que o argumento das isenções heterônomas não parece ser tão consistente.
Além disso, não se pode afirmar que a Constituição Federal previu apenas estas duas hipóteses como exceções ao princípio estabelecido no art. 151, inciso III, que veda as isenções heterônomas. A questão parece ser mais complexa.
Na verdade, parece que a Lei Maior quis distinguir a União enquanto ente componente do Estado Federal, hipótese em que não poderia conceder isenções heterônomas – salvo as exceções constitucionais – a fim de manter equilibrado o pacto federativo; da União na condição de ente representante do Estado brasileiro nas suas relações internacionais. Neste último caso, por força dos valores que se encontram em jogo, a União poderia conceder, por força de tratados internacionais, isenção não só dos seus tributos, mas também dos tributos de competência dos Estados e dos Municípios. Aqui, teria aplicação o art. 21, inciso I, da Constituição Federal, nos termos do qual:
Art. 21. Compete à União:
I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;
Nesta hipótese, a União não atuaria de modo isolado e sem qualquer consideração com os demais entes que formam a federação. Atuaria, sim, na condição de representante desses mesmos entes, pois a Carta Magna outorgou a si a competência para representá-los nas relações internacionais. Nesse caso, nas relações com outros Estados soberanos, por estar representando os demais entes que compõem a federação, a União pode celebrar acordos que importem em isenção de tributo que não seja da sua competência, pois, repita-se, em tal situação atua como representante do Estado Federal como um todo. Em outros termos, a Constituição Federal conferiu à União o poder de representar o Estado brasileiro, ao passo que aos demais integrantes da federação (Estados, Distrito Federal e Municípios) restou apenas autonomia para lidar com suas próprias questões.
No plano interno, a União convive em pé de igualdade com os demais entes que compõem a federação, integrando o que se convencionou chamar de uma de suas "ordens jurídicas parciais", que, juntamente com as demais ordens jurídicas dos outros entes federados, irão formar a "ordem jurídica total", que simboliza a República Federativa do Brasil. Este aspecto veio bem definido pelo art. 18 da Constituição Federal da seguinte forma:
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
A situação é outra no que se refere às relações internacionais, quando a União deixa de ser mero ente autônomo e passa a ser dotado de soberania, no escopo de representar a República Federativa do Brasil, por força do mandamento do art. 21, inciso I, da Lei Maior. Em sendo assim, há que lhe ser permitida a possibilidade de celebrar acordos internacionais que importem inclusive na isenção de tributos da competência dos demais entes da federação.
Tal assunto foi bem abordado por Daniela Ribeiro de Gusmão, no trecho abaixo transcrito do artigo A concessão pela União de isenções relativas a tributos estaduais e municipais. Possibilidade no âmbito dos tratados internacionais [17]:
No plano do Direito das Gentes, a União é a verdadeira representante dos demais entes participantes do sistema federativo. Se assim não fosse, não haveria outra forma dos Estados-membros e dos Municípios concederem isenções de impostos seus no âmbito internacional. Isto porque, por não serem dotados da soberania necessária para ratificar tratados internacionais, necessitam de um ente que os representem perante o Direito Internacional.
Sobre o tema, Valéria Gutjahr [18] também defende que a União, em sede de relações internacionais,
[...] não atua como ente federado parcial, como componente da federação brasileira, mas congrega todos os demais entes federados para representar a República Federativa do Brasil. Configura-se, assim, no dizer de José Souto Maior Borges, o ‘caráter bifronte da União’, que ora atua como ordem jurídica global, representando o Estado brasileiro, ora como ente federado, como pessoa jurídica de direito público interno.
Pertinente, também, para a situação em exame, é a discussão acerca da existência de leis federais e nacionais. Segundo os defensores desta dicotomia, leis federais seriam aquelas cujo conteúdo se refere a assuntos específicos da União enquanto ente integrante do estado federal. Como exemplo, poderia ser citado o diploma legal que disciplina o regime jurídico de seus servidores, aplicável somente à esfera federal. Por seu turno, leis nacionais são as que, embora aprovadas pelo Poder Legislativo da União, aplicam-se a todos os demais entes federados, por envolver matéria de interesse da federação como um todo. A título de ilustração, cite-se a Lei nº 5.869, de 11.01.1973, que instituiu o Código de Processo Civil, cuja eficácia estende-se a todos os componentes do Estado Federal.
Portanto, além das leis federais, o Poder Legislativo da União pode aprovar leis nacionais, aplicáveis à toda federação. Dentre estas, estariam inseridos os tratados internacionais que, apesar de celebrados pela União, seriam recepcionados como leis nacionais, extensivas aos demais entes. Dessa forma, nada impede que a União, ao celebrar acordos com os demais Estados, conceda isenção de tributo que não está inserido dentro de sua competência impositiva, pois, quando o faz, utiliza-se de instrumento recepcionado como lei nacional, que pode perfeitamente ser aplicada aos Estados, Distrito Federal e Municípios.
Assim também entendeu, no artigo antes citado, Daniela Ribeiro de Gusmão, como se observa do seguinte trecho:
No sistema tributário nacional da Constituição Federal de 1988, as isenções de quaisquer tributos podem ser decorrentes de tratados internacionais. Se concedidas antes da nova Constituição Federal, foram por ela recepcionadas. Isto porque o tratado devidamente promulgado é lei interna do Estado brasileiro, e não simplesmente da União, obrigando a esta da mesma forma que obriga aos demais entes que formam a República Federativa do Brasil.
Como se não bastasse, o entendimento contrário parece colidir com a norma programática do parágrafo único, do art. 4º, da Constituição Federal, para quem:
Art. 4º. (...)
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
De fato, a se entender que a União não pode, através de tratados internacionais, conceder isenção de tributos pertencentes aos outros entes federados, estar-se-ia comprometendo um dos objetivos da República Federativa do Brasil no plano das relações internacionais, que é justamente a integração com os demais povos da América Latina através do Mercosul, e, para a efetivação dessa integração, é evidente que se faz necessário o estabelecimento de acordos multilaterais em questões tributárias, a fim de facilitar o intercâmbio comercial entre os países integrantes do "bloco econômico". Nesse caso, se à União fosse vedado celebrar tais acordos, seria difícil, ou quase impossível, concretizar o comando da norma constitucional, pois os demais entes federados, mesmo em relação aos seus próprios tributos, não poderiam fazê-lo em nome da União, por força do art. 21, inciso I, da Constituição Federal.
Este parece ser o entendimento que melhor se aproxima de uma análise sistemática da Constituição Federal.