Direito penal, controle social e mecanismos de assujeitamento: em breve ensaio a partir de Foucault

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Breve ensaio a respeito do poder do Estado, especificamente do poder na esfera penal, como mecanismo de assujeitamento e de docilização a parir de Michel Foucault

Um dos modos de compreender a problemática do sistema jurídico no Brasil contemporâneo como uma dinâmica assujeitadora ou objetificante de controle social por parte do estado encontra-se na leitura de Foucault, especialmente a partir das obras Vigiar e Punir e Microfísica do Poder. Nelas encontra-se na ideia de o controle social ser exercido, em grande parte, pelas agências sancionadoras com a função de normalização, ou seja, de trazer o sujeito ao comportamento “normal”, desejado pelo Estado.

A pena, além de agir de forma normalizadora, (re)conduzindo o indivíduo ao padrão comportamental objetificado por construções genéricas e abstratas, tem caráter seletivo, atingindo apenas àqueles que devem ser normalizados, com um claro caráter de gestão diferenciada da criminalidade[1] ao excluir as classes dominantes de suas consequências e afetar os dominados, como medida de sujeição[2].

Acompanhando as sanções, Foucault vai além, partindo dos suplícios até o abrandamento das penas no século XVIII, sob promessas de humanização, reconhe que esse processo acaba por exercer uma função dualista, mitigando, sim, o sofrimento, mas prolongando também a subserviência.

Com a perda da função de expiação da pena, e superado o momento do suplício, a nova justiça criminal do século XVIII “... só se justifica por essa perpétua referência à outra coisa que não seja ela mesma...”[3]. Assim, busca sempre referências a outras áreas do saber humano, como causas do delinquir e a cura delas, como a atividade de recuperar ou normalizar, para trazer de volta ao normal aquele que se comporta de forma anômala.

O poder normalizador do Direito, particularmente do Direito Penal, assume contornos que extrapolam a aplicação da lei, tendo nos mecanismos de sanção instrumentos de formatação acordados conforme a conveniência dos produtores da norma, ancorados em “saberes científicos”, próprios da racionalidade moderna.

Nesse sentido afirma Ferrajoli que

...se a história das penas é vergonhosa, não o é menos a história do pensamento jurídico e filosófico em matéria das penas, que leva grande parte da responsabilidade pelos horrores cometidos: por omissão, por jamais ter levantado seriamente sua voz, até o século das luzes, contra a falta de humanidade das penas; e por ação, na medida em que tem expressado quase sempre adesão e apoio à pena de morte.[4]

O sistema de produção, colocado em funcionamento no Estado Moderno, precisa de mão-de-obra pronta, barata e submissa, com indivíduos facilmente sujeitáveis, sem que, contudo, sejam servos, mas sim aliados da burguesia na Revolução Francesa.

O retorno ao sistema de sujeição, por meio da aplicação de castigos e suplícios e do temor reverencial, por certo, é um risco que a burguesia não se pode dar ao luxo, mas, no entanto, um novo mecanismo deve ser criado para normalizar os anormais, sujeitando-os aos padrões sociais, que não têm uma gênese social, e sim um interesse estatal disfarçado, aceitando resguardar alguns valores comuns ao povo e outros tantos interesses estranhos a ele.

O saber/poder estatal age em um nível microfísico, já que as articulações surgem de forma quase imperceptível, gerando batalha em um campo que não pode ser visto claramente por olhares mais desatentos, mas apresenta-se uma grande luta para que haja o controle social, em busca da harmonia e não de domínio, objetivando a manutenção de poder.

Enquanto o soberano, representante de Deus na terra, vinga-se irado e de forma tirânica, o Estado Moderno, detentor legítimo do poder, vale-se da Justiça Penal, que pode atingir ao homem, somente até um certo ponto, pois, além disso, ofende ao Princípio iluminista da humanidade, devendo a pena ser “...suavizada (...): com uma (...) medida e humanidade...”[5].

Em contrapartida aos excessos do monarca, surgem as falhas dos juízes, que trabalham diretamente com as classes menos providas e, naturalmente, menos esclarecidas tanto àquela época como atualmente, mantendo a justiça tão distante antes como hoje. Seus labirintos são tão complexos que, para aqueles que bem os conhecem, o toque das sanções é praticamente impossível. Vale ressaltar que, assim como há aqueles que não sabem operar as normas jurídicas, há os que o fazem de forma a manipular o sistema, sendo pegos ou escapando dos estigmas sociais respectivamente.

Do castigo para a reforma da sistemática sancionadora há que se passar pela ideia de reinserção ao meio social, desprezando assim o discurso de sujeitar, rotular e devolver a mercadoria humana, outrora bem-vinda pela burguesia, enquanto aliada à Revolução Francesa, à Revolução Industrial e à mão-de-obra explorada, porém indesejável na condição de movimento campesino ou ameaça ao patrimônio acumulado nos portos e armazéns[6].

A perspectiva da microfísica foucaultiana[7], da punição à necessidade da proposição de penas mais brandas, mesmo que acobertada por um discurso humanizador, traz em seu bojo uma grande parcela de proposta reformadora, o que nos remete ao normalizar, ou ao inserir. Inserir ou reinserir no meio de produção de corpos produtivos e submissos[8].

Extraído o conceito de Direito de Boaventura, pode-se afirmar que “O direito é um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados justificáveis num dado grupo social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a sua resolução através de um discurso argumentativo, articulado com a ameaça de força”[9].

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A partir da perspectiva foucaultiana de poder, abordada em Vigiar e punir, percebe-se que Pena, Direito Penal e Ciências Humanas assumem dois rumos distintos. Quanto à sanção de ordem penal é simplesmente uma forma de controle de poder observado por uma “perspectiva de tática política”[10]. Conclui-se, então, que a criminologia ortodoxa, de índole positivista, deve ser superada.

Devemos, assim, entender poder como mecanismo de controle de grupos sociais, já que não se deve “tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, mas sim de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras (...) não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhes são submetidos”[11].

É necessária uma visão arqueológica, genealógica do poder, afirma Foucault, para que ele seja compreendido como mecanismo de sujeição, e não como um simples instrumento de regulamentação administrativa, reinserção social ou de adequação do indivíduo, sujeito aos cuidados do Estado a qualquer título que seja. Aqui encontramos uma nova perspectiva ligada à legitimidade do controle social exercido por parte do estado: o limite entre um controle libertário ou assujeitador.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Editora Atlas S/A.

FOUCAULT, Michel.  Vigiar e punir. 25 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad.de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. 21 ed. In: MACHADO, R. (Org.). São Paulo: Graal, 2005.


[1] SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 57.

[2] Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Editora Atlas S/A, 2002b.

[3] FOUCAULT, Michel.  Vigiar e punir. 25 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. p. 23.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad.de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.  p. 311.

[5] FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. 21 ed. In: MACHADO, R. (Org.). São Paulo: Graal, 2005. p. 64.

[6] Idem. Microfísica do poder. p. 27.

[7] Devemos deixar claro que a análise foucaultina de poder serve, em um primeiro momento de nosso trabalho, para demonstrar a falta de legitimidade nas razões fundantes do exercício do poder sancionador pelo Estado, quando o faz com a clara finalidade de sujeitar indivíduos por razões incompatíveis com os fundamentos do Estado democrático de direito.

[8] FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. 21 ed. In: MACHADO, R. (Org.). São Paulo: Graal, 2005.   p. 26.

[9] Ibidem.  p. 290.

[10] Ibidem.  p. 24.

[11] Ibidem.  p. 183.

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Sobre os autores
Edson Vieira da Silva Filho

Pós Doutor em Direito pela Unisinos (2012). Doutor em Direito pela Unesa (2012), na linha Direitos Fundamentais e Novos Direitos. Mestre pela Universidade São Francisco (2002). Mestre pela Universidade Federal do Paraná (2006). Graduado em Direito pela PUC Belo Horizonte – MG (1986). Delegado de Polícia Classe Geral, aposentado – Polícia Civil do Estado de Minas Gerais. Gestor do Núcleo de Atividades Complementares da Faculdade de Direito do Sul de Minas, professor auxiliar da Faculdade de Direito do Sul de Minas e membro do Núcleo Docente Estruturante. Vice-presidente da Fundação Sul Mineira de Ensino.

Francisco José de Oliveira

Defensor público estadual em Pouso Alegre, Professor à Faculdade de Direito do Sul de Minas, Mestra em direito pela Ufpr

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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