O artigo[1] ora em análise discute, em síntese, a possibilidade de se cobrar IPTU daqueles que irregularmente ocupam patrimônio público.
Em que pese a baixa arrecadação e dificuldade de racionalização dos tributos incidentes sobre o patrimônio, os fiscos estaduais não estão autorizados a alargar o seu âmbito de aplicação sem o devido embasamento legal e constitucional. É preciso que haja rigor no tocante ao princípio da legalidade estrita, que se coloca como sustentáculo do direito tributário constitucional.
O argumento de que a Constituição Federal não institui tributos, apenas define a forma como deve ser a repartição de competências, entre os outros entes políticos, deve ser visto com ressalva. Quando a Carta Magna definiu o tipo de imposto que compete a cada ente, como se pode depreender do nome que foi dado a cada um deles, com estrita conexão com o seu significado nuclear, e portanto, o âmbito de atuação, aduziu, ainda que se considere que de modo mais implícito que explícito, sobre qual situação ele deve ser instituído, ofertando ao legislador estadual apenas a prerrogativa de regulamentar o restante. Dito isso, passa-se a análise dos pontos seguintes.
Analisando apenas a Constituição Federal não restam dúvidas de que o IPTU somente pode ser destinado a quem efetivamente se encontra na condição de proprietário, o que não oferece margem para divagações. Além disso, é também a Constituição que veda o usucapião de imóvel público. Apenas essas duas barreiras, escritas pelo legislador constituinte, estariam aptas a impedir o avançar da discussão sobre a cobrança de IPTU ao particular que ilegalmente se apossa de bem público.
Não obstante esse fato, atenta também contra o ordenamento jurídico brasileiro a tentativa do Estado de se enriquecer ilicitamente com a própria torpeza. Em direito civil, de modo similar, isso é denominado de venire contra factum proprium. Também no ramo do direito público, por atentar contra os preceitos da boa-fé objetiva, não se admite que o ente estatal, ao invés de se utilizar legitimamente do seu poder de polícia para expulsar os moradores irregulares do local, possa de certa forma legalizar a sua inércia sob o argumento do “Estado Arrecadador”.
Apesar da Constituição frisar que a definição do tributo, os seus respectivos responsáveis sob a óptica passiva e ativa, além de todos os outros desdobramentos consequentes, sejam regulados por lei complementar; e que o CTN, por sua vez, afirme que constitui elemento conglobante ao fato gerador do IPTU o mero domínio, ou posse, a qualquer título, parece precipitado, do ponto de vista constitucional, adotar tal interpretação sem refletir e de certa forma relativizar a norma, tendo em visto a sua finalidade teleológica.
É sabido que, dentro da pirâmide de Kelsen, leis, sejam elas ordinárias ou complementares, são hierarquicamente inferiores à Constituição. Sabe-se também que, em que pese não haver hierarquia entre normas e princípios constitucionais, há uma sobreposição entre poder constituinte originário e derivado reformador. Partindo dessas duas premissas, pode-se firmar uma hipótese: quando a Carta Magna de 1988 definiu que haveria, no âmbito municipal, a incidência de imposto sobre a propriedade territorial urbana e rural, o mandamento principal, nuclear, do fato gerador, tinha ficado definido; um limite basilar e intransponível havia sido posto.
Abranger como sujeito passivo do imposto o mero detentor ou possuidor do imóvel é desvirtuar a finalidade do imposto, extirpando os limites estabelecidos na Carta Maior. Isso se deve não só ao princípio da estrita legalidade que rege o ordenamento tributário constitucional, mas também a vedação ao emprego de analogia para se cobrar ou deixar de cobrar tributo. Dentro da legalidade em sentido estrito não é possível extrair significados fantasmas, ou seja, significados que não se encontram, de fato, presentes, em seu comando normativo.
Os conceitos de propriedade, posse e detenção são originariamente estabelecidos pelo Código Civil, tendo o direito público pegado de empréstimo, e não criado o seu.
Independentemente então da ocupação do imóvel público ser regular – por prerrogativa de função, seja ela política ou não –, ou irregular – como no caso de invasões de boa ou má-fé –, a situação jurídica em sentido técnico é a mesma. Ambos não são passíveis de serem acionados pelos fiscos estaduais como corresponsáveis ao pagamento do tributo, pois ainda que quisessem, não poderiam adquirir a posse ad usucapionem, tendo em vista que doutrina e jurisprudência, de maneira unânime, não admitem tal possibilidade para imóvel público.
Quanto ao tema da imunidade é preciso lembrar que esta, segundo a linha de entendimento do Supremo Tribunal Federal, deve ser interpretada em sentido amplo. A imunidade recíproca se mostra como obstáculo para a cobrança de IPTU em face de imóvel público ocupado ilegalmente por particular porque a omissão estatal na gestão do bem não pode, automaticamente, gerar tal hipótese de incidência, sem antes serem avaliados requisitos subjetivos como a questão orçamentária – dificuldade financeira para dar ao local a finalidade devida – e, principalmente, temporal – o imóvel possuir pouco tempo de desocupação. Mesmo porque, brigas judiciais visando à reintegração de posse são longas, então pode não haver omissão estatal na tentativa de recuperar a posse do bem para passar a atender sua finalidade precípua.
Conclui-se, portanto, que, cobrar IPTU do particular que ocupe bem imóvel público, legal ou ilegalmente, atenta contra os princípios e regras insculpidos na Constituição Federal, não podendo ser objeto de supressão ou desvirtuamento teleológico pela Administração Tributária, quiçá a estadual. O limite constitucional de atendimento ao requisito principal caracterizador da cobrança do IPTU é a propriedade, e não a posse. A suposta controvérsia trata em verdade de uma frágil tentativa de distorcer um limite constitucional explícito, que tem toda a razão de ser, até por uma simples questão de justiça fiscal, afinal, não se pode onerar proprietário, possuidor e detentor da mesma maneira.
[1] Hable, Jose. Publicado na Revista Fórum de Direito Tribuário RFDT, doutrina e jurisprudência selecionada. Belo Horizonte: Editora Forum. Ano 12- nº 69, maio/junho 2014, pp. 71 a 90.