A superação do absurdo rumo a uma revolta medida:pressupostos para a moral em Albert Camus

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14/05/2015 às 20:40

Resumo:


  • Albert Camus foi um pensador argelino nascido em 1913, conhecido por obras como "O Estrangeiro" e "A Peste", que abordam a condição absurda do homem diante de um mundo que nem sempre corresponde aos seus anseios.

  • Em sua obra "O Mito de Sísifo", Camus explora o tema do suicídio como questão filosófica séria, refletindo sobre o sentido da vida e a legitimidade de viver diante do absurdo existencial.

  • O conceito de absurdo em Camus é apresentado como o sentimento que priva o homem do sono necessário para a vida, resultando da contradição entre o desejo de conhecer o mundo e a realidade que se apresenta, especialmente diante da certeza da morte.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Uma breve análise sobre a reflexão acerca da moral na obra de Albert Camus.

1. INTRODUÇÃO

Como se orientar diante da vida sem Deus ou a razão servindo de lastro? Cortado Deus do céu humano e imposto à razão um limite, o que resta ao homem para se fundamentar? Se nada faz sentido e viver consiste numa mera e inútil esperara da morte, e esta morte nada significa, o que pode impedir moralmente o suicídio ou o assassinato?

É numa Europa dilacerada por essas questões e, em certa medida, respondendo-as com suas duas grande guerras, regimes totalitários, atentados terroristas e o desprezo pela vida, que se insere a obra de Albert Camus, pensador argelino, nascido em Mondovi, no dia 7 de novembro de 1913. De origem humilde, Camus perde o pai em 1914, vítima da Primeira Guerra mundial; muda-se então com a mãe e um irmão para a casa da avó materna, onde todos são analfabetos. Quase se torna tanoeiro, como um tio seu, não fosse a proteção de um professor. Convivendo entre a pobreza, as belas praias argelinas e o universo das letras, escreve e publica seu primeiro livro de contos já aos 22 anos de idade.

 Mais conhecido por seu livro O estrangeiro, de 1942, foi agraciado com o prêmio Nobel de literatura em 1957, por A peste, e morre aos 46 anos, no dia 4 de janeiro de 1960, num acidente automobilístico, deixando para trás uma vasta obra literária que vai de ensaios filosóficos a peças de teatro, passando por livros de contos e romances.

Em suas obras, sejam elas filosóficas, teatrais ou romanescas, temos sempre presente o tema da condição absurda do homem diante de um mundo que nem sempre atende a seus anseios e do qual ele mal pode compreender. Se não se pode afirmar a existência de Deus, e tudo o que podemos afirmar com certeza depende de uma razão que se sabe de possibilidades finitas, como podemos nos posicionar firmemente no mundo? Olivier Todd, comentador de Camus, em sua obra Albert Camus: uma vida, ao se referir a Camus, diz que somente uma questão o apaixona, é ela: “Como devemos nos conduzir, em geral e durante esses anos obscuros, quando não acreditamos nem em Deus nem na razão?” (TODD, 1998, p. 308).

Este trabalho pretende esboçar uma resposta a esta questão, partindo dos conceitos camusianos de absurdo e de revolta, e as implicações que ambos trazem para a vida do homem. Iremos analisar também como Camus identifica a Europa do século XX como sendo fruto direto do niilismo e do fato de se tomar o absurdo como um fim de raciocínio. Veremos também como Camus propõe a superação do niilismo sem amparar-se em nenhum pressuposto metafísico – divino ou racional – propondo em seu lugar as concepções presentes no pensamento mediterrâneo, onde o pensador argelino encontra uma concepção de homem, de natureza e de vida que permitem o embasamento para uma posição moral.

2. O ABSURDO CAMUSIANO E SUAS IMPLICAÇÕES

2.1 A preocupação camusiana com o problema do suicídio

Em O Mito de Sísifo, Camus afirma que: "só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio (CAMUS, 17)". Este problema reflete sobre o sentido da vida, já que, em outras palavras, pergunta se a vida vale ou não a pena ser vivida. Como explica o autor: “Se eu me pergunto porque julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete” (Id., ibid., p.17).

            O problema do suicídio surge como uma questão moral, já que implica numa atitude perante a vida. Terá algum sentido que nos forneça a base para sentir que a vida vale a pena ser vivida? Esta questão se torna mais premente quando analisarmos o conceito de “revolta” e o questionamento acerca da legitimidade do assassinato, no terceiro capítulo deste trabalho. Já que se for possível afirmar que não há um sentido para a vida e, portanto, o suicídio ser uma resposta plausível, como será possível negar plausibilidade ao assassinato?

Antes de entrarmos nesta análise, é preciso entender a reflexão camusiana sobre o suicídio, e como ela se dá. Discorrendo sobre as possíveis causas e implicações do suicídio, Camus se pergunta por que alguém desejaria a morte e não a vida. Esta não é uma questão de resposta irrelevante, já que seu “porquê” implica, literalmente, num sentido vital.

A vida tem seu valor e sua força, e a história mostra como, mesmo diante de verdades importantes, muitos homens já abdicaram de suas idéias em prol da própria vida; como Galileu que apesar de ter sustentado uma verdade científica importante, nas palavras de Camus, “abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo” (Id., ibid., p. 17).

Portanto se o homem escolhe o suicídio, é porque este ato significa algo. E algo importante, já que este “algo”, para o suicida, tem um valor maior do que a própria vida. O suicida abandona a vida em nome deste “algo”. Para Camus, em certo sentido, suicidar-se é fazer uma confissão. “Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos” (Id., ibid., p.19). Ou, mais especificamente:

Trata-se apenas de confessar que isso “não vale a pena”. Viver, naturalmente, nunca é fácil. Continuamos fazendo os gestos que a existência impõe por muitos motivos, o primeiro dos quais é o costume. Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu, mesmo instintivamente, o caráter ridículo desse costume, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento. (Id., ibid., p.19)

A que se deve este reconhecimento do “caráter ridículo” da vida? Camus afirma que este reconhecimento se dá através do que ele chama de “absurdo”. Ele identifica este sentimento como sendo o “sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário para a vida (2004, p. 20)”.

A pergunta inaugurada por Camus ao tratar do suicídio e que corre ao longo da obra o Mito de Sísifo é - mais do que se vale a pena viver em tais condições absurdas - se seria possível viver sem se valer de nada que não fosse o “caráter ridículo” da vida. Antes desta reflexão, torna-se necessário analisarmos o que Camus entende por “absurdo”.

2.2 O absurdo

O absurdo, como definiu Camus, é o sentimento que priva ao homem o sono necessário para a vida. Mas em quê especificamente consiste este absurdo, e em que sentido este “sono” é necessário ao homem? Camus explica que o absurdo se apresenta diante da razão humana como uma contradição. Contradição que deve ser analisada através de um raciocínio lógico implacável. Tal “raciocínio lógico” em Camus é severo e não se contenta com argumentos falhos, nem saltos lógicos. E é este raciocínio claro que impõe à vida um caráter trágico ou, como escreve Camus, absurdo.

O absurdo, sucintamente, é o resultado do meu desejo de conhecer o mundo versus o que o mundo me apresenta na realidade[1]. Vale lembrar que o absurdo não está no mundo, nem está no homem; ele é fruto da interação de ambos. Da idéia que o homem tem e que é diferida pela realidade. Isto fica evidente na constatação da morte, como veremos adiante.

Voltando à contradição que suscita o absurdo, ela é constatada como a interação entre dois elementos constituintes de um único problema, que é perscrutado de forma lógica. Essa contradição, como já explicitamos, se manifesta como um tipo de divórcio entre o mundo e nosso desejo de conhecer, como “ruptura entre o ator e seu cenário”, nas palavras do próprio Camus.

Olivier Todd, explicitando o caráter de “divórcio” e prevendo a conseqüência lógica do absurdo constado por Camus, nos diz que:

O universo não é absurdo em si mesmo, assim como não é amarelo, ou açucarado: ele é. A vida e o mundo têm um sentido para o crente que dispõe de um código de conduta, o evangelho baseado na palavra de Cristo. A angústia de Camus provém do fato de nenhuma moral ser imposta pelo mundo ateu ou do agnóstico; em lógica, de uma proposição do tipo A é B, não se pode deduzir outra proposição do tipo C deve ser D. Do que é não podemos deduzir o que deve ser. (TODD, 1998, p.311)

E Camus está interessado em saber “o que é”. Em busca deste principio indubitável, ele só consegue encontrar uma resposta: a mortalidade. É a única certeza absoluta, indubitável, que o homem é capaz de ter sem pestanejar: um dia irá morrer. Este acontecimento é certo, mas ao homem é impossível saber quando ocorrerá, ou como. Só sabe que irá morrer e, nesta perspectiva, seus esforços serão sempre vãos, terão como fim último a morte. E, esta morte, sem data marcada. É isto que justifica o fato do “sono” que permite ao homem viver, ser necessário. Todos se sabem mortais, mas diz-nos Camus que:

Contam-se nos dedos os espíritos que extraíram disto as conclusões extremas. É preciso considerar [...] a defasagem constante entre o que imaginamos saber e o que realmente sabemos, a aceitação prática e a ignorância simulada que faz com que vivamos com idéias que, se as sentíssemos de verdade, deveriam transtornar toda a nossa vida (CAMUS, 2004, p.32)

Não há verdade que transtorna mais a nossa vida do que a morte. Mas, apesar de nos sabermos mortais, vivemos pelo amanhã. Vivemos nisto chamado por Camus de “ignorância simulada” que nos permite o sono, o fechar os olhos para a morte. Mas, sem esperar, um dia nos deparamos com o sentimento de absurdo. Com cinqüenta anos de idade, compramos uma lâmpada com a vida útil de dez anos e, num relance, percebemos que só vamos poder trocar essa lâmpada mais três, quatro ou no máximo cinco vezes. Depois é o fim. O sentimento absurdo, nascido de situações banais e corriqueiras, ao ser sentido, abre os olhos para a verdade indiscutível que é a morte e, além disso, nos faz pensar sobre o que existiria após a vida. Camus, refletindo sobre o absurdo, afirma que:

Este lado elementar e definitivo da aventura é o conteúdo do sentimento absurdo. Sob a iluminação mortal desse destino aparece a inutilidade. Nenhuma moral, nenhum esforço são justificáveis a priori diante das matemáticas sangrentas que ordenam nossa condição (Id., ibid., p.30)

Se a morte estivesse marcada para amanhã, que utilidade teria em se cuidar da higiene pessoal, ser gentil com o vizinho, trabalhar com afinco, etc? Vivemos diante da realidade da morte, mas ignoramos esta realidade. Diante disso, tomemos a análise extremamente breve feita por Camus sobre Heidegger.

Para Heidegger, segundo nos diz Camus, a única realidade possível ao homem é o “cuidado” (Sorge). Este cuidado, para o homem distraído em suas preocupações mundanas – para o homem “com sono”, como nos disse Camus – é apenas um breve e fugidio medo. Mas quando esse medo toma consciência de si mesmo, torna-se angústia. E a angústia se dá, justamente, diante da morte. É neste “ambiente perpétuo do homem lúcido” (Id., ibid., p. 37), que o homem reencontra sua existência. Heidegger, citado por Camus, afirma ainda que “o caráter finito e limitado da existência humana é mais primordial que o próprio homem”, e diz, ainda, que “o mundo nada mais pode oferecer ao homem angustiado” (Id. ibid., p.37) já que, diante da morte, o homem é completamente impotente. Este “cuidado” parece ser tão caro a Heidegger que, nas palavras de Camus, “ele não pára de pensar nisso e só fala disso”, enumerando suas diversas faces. Assim sendo, “a consciência da morte é apelo do cuidado” e “a existência se lança então um apelo próprio por intermédio da consciência”. Ela é a própria voz da angústia e exorta a existência “a voltar a ser ela mesma depois de sua perda no Se anônimo”. (Id., ibid., p.38)

Longe da ilusão, Heidegger também julga que é preciso não dormir, ele quer “ficar insone até a consumação”, mantendo-se no mundo absurdo e denunciando seu caráter efêmero. Ele não responde, como os existencialistas cristãos, ao mundo absurdo; segundo Camus, ele diante disso “procura seu caminho no meio dos escombros”.   

Outros filósofos também se posicionaram diante do problema da morte e seus mistérios. Camus, buscando alguma resposta satisfatória para o problema do absurdo, também trata de alguns destes filósofos, mostrando a que conclusões chegaram. De acordo com sua análise, ele mostra que a tradição filosófica de seu tempo não soube responder satisfatoriamente ao absurdo, pois se desviou do problema. Esta análise sobre as filosofias de seu tempo é assunto para o próximo tópico. 

2.3 O fracasso das posições filosóficas diante do absurdo

Como vimos, o absurdo se encontra no cerne da existência humana e, como tal, foi tratado por algumas correntes filosóficas contemporâneas a Camus. Em O Mito de Sísifo, ele identifica a temática absurda em duas posições filosóficas distintas: no chamado existencialismo cristão e na fenomenologia, mais especificamente, em Husserl.

Camus encontra nas duas o que chama de “suicídio filosófico” e explica, referindo-se especificamente ao existencialismo:

Tomo aqui a liberdade de chamar de suicídio filosófico a atitude existencial. Mas isto não implica julgamento. É uma maneira cômoda de designar o movimento pelo qual um pensamento nega a si mesmo e tende a superar-se no que diz respeito à sua negação. (Id., ibid., p.54-55)

           

O conceito de “suicídio filosófico” refere-se, então, a uma manobra intelectual. Manobra graças a qual uma idéia que é negada no começo de um raciocínio acaba se tornando, num segundo momento, embasamento e a própria possibilidade de existência do mesmo enunciado que inicialmente lhe negava. Nas palavras de Camus:

Por um raciocínio singular, partindo do absurdo sobre os escombros da razão, num universo fechado e limitado ao humano, elas [as filosofias existenciais cristãs] divinizam aquilo que as oprime e encontram uma razão para ter esperança dentro do que as desguarnece. (Id., ibid., p.46)

Para ocorrer o “suicídio filosófico”, Camus afirma ser necessário o "salto". Para entendermos melhor no que consiste este "salto" e, de modo geral, de que modo se dá o "suicídio filosófico", devemos nos ater à análise feita por ele acerca da filosofia de seu tempo.

O filósofo argelino refere-se brevemente a alguns filósofos existencialistas cristãos, mostrando a distância entre seu próprio pensamento e as idéias propostas pelo movimento existencialista; apesar de aceitar abertamente algumas das teses existenciais, como foi mostrado no tópico anterior, no que concerne a Heidegger. Ao se referir aos autores do existencialismo cristão, Camus quer mostrar como eles realizam o "salto" e acabam abandonando a rigidez de suas reflexões ontológicas, terminando por colocar, no lugar da Deidade que buscavam, aquilo que, por razões metodológicas do próprio pensamento, negava a possibilidade de certeza acerca da própria Deidade. 

Portanto, para Camus, as filosofias da existência, partindo de uma crítica ao racionalismo, que não mais atendia às exigências existenciais do homem, acabam se deparando com o ambiente absurdo, mas nele não permanecem. Analisaremos agora como isso se dá.

Jaspers ilustra bem essa atitude. Segundo o autor argelino, Jaspers mostra-se “impotente para realizar o transcendente, incapaz de sondar a profundidade da experiência e consciente desse universo perturbado pelo fracasso” (Id., ibid., p.47). Mas, apesar disso e contrariando a lógica, sem nenhum pretexto para inferir qualquer princípio satisfatório, Jaspers afirma que é o próprio fracasso que, em suas próprias palavras, “além de qualquer explicação e de qualquer interpretação possível”, mostra “não o nada, mas o ser da transcendência” (Id., ibid., p.47). O próprio fracasso, a impotência de se chegar ao transcendente, enfim, o absurdo, diviniza-se. Por um ato cego da confiança humana, a impotência para compreender torna-se justamente a luz que tudo ilumina. Aqui Camus identifica que, neste raciocínio, só há confiança humana, mas não há nada que o guie no campo da lógica[2].  Para Jaspers, a transcendência torna-se precisamente aquilo que é inapreensível para a razão; e é justamente o fato de ser inapreensível o que o caracteriza como transcendente. Assim, Jaspers transforma o seu fracasso em apreender o transcendente como sendo o próprio apreender, proclamando que é precisamente este fracasso o que revela não a ausência, mas sim a presença do transcendente.

Temos então o “salto”. E é por isso que:

Entende-se a insistência, a paciência infinita de Jaspers em tornar irrealizável a experiência do transcendente. Pois quanto mais fugaz é a aproximação, mais vã se revela essa definição e mais essa transcendência lhe é real, porque a paixão que ele emprega em afirmá-la é justamente proporcional à distância entre seu poder de explicação e a irracionalidade do mundo e da experiência (Id., ibid., p.47).

Outro exemplo de "suicídio filosófico" através de um mesmo "salto", identificado por Camus, encontra-se na filosofia de Chestov.  “A única saída verdadeira é precisamente onde não há saída no juízo humano”, diz Chestov, citado por Camus. E Chestov mesmo explica-nos que isso se dá assim “senão, para que precisaríamos de Deus? As pessoas só se dirigem a Deus para obter o impossível. Para o possível, os homens bastam” (Id., ibid., p.48). Deste modo, para Camus, está resumida a filosofia de Chestov. Sendo assim, na constatação chestoviana do absurdo, diante do “impossível”, é onde se encontra Deus. O racional, o possível, é a dimensão do homem; diante do impossível, nas palavras de Chestov, citado por Camus: “eis Deus: devemos remeter-nos a ele, mesmo que não corresponda a nenhuma das nossas categorias racionais” (Id., ibid., 48). E o "salto" ocorre justamente por conta desse “mesmo que”, já que Deus não corresponde a nenhuma das nossas categorias racionais. Deus então é encontrado além da capacidade humana.

            Tal salto pressupõe que Chestov constate o absurdo, já que reconhece algo que não corresponde a nenhuma categoria racional. Mas nega o absurdo em sua própria afirmação, já que o coloca como resposta a si mesmo. O absurdo torna-se, então, a própria condição de divindade, ele mesmo acaba se confundindo com Deus. A filosofia de Chestov perde então seu “rosto verdadeiro, seu caráter humano e relativo, para entrar numa eternidade ao mesmo tempo incompreensível e satisfatória” (Id., ibid., p.48). Por um movimento estranho à lógica, sua filosofia passa a não corresponder a nenhuma das nossas categorias racionais.

            A partir desta análise, o absurdo, antes característica da vida humana, agora se torna transcendente, integra-se ao “impossível”. Mas devemos nos lembrar que o absurdo nasce da lucidez humana, é fruto de seu universo. Fruto da lucidez humana, não pode, para Camus, acabar servindo para justificar o que não for lúcido. Ao transformar-se no que Camus chama de “trampolim para a eternidade”, o absurdo deixa de ser aquela evidência que o homem constata, mas reluta em admitir. Diz-nos que no existencialismo, “a luta é evitada. O homem integra o absurdo e nessa comunhão faz desaparecer seu caráter essencial que é oposição, dilaceramento e divórcio” (Id., ibid., p.49). E sentencia: “Este salto é uma escapatória. [...] Para Chestov, a razão é vã, mas existe alguma coisa além da razão. Para um espírito absurdo, a razão é vã e não existe nada além da razão” (Id., ibid.,  p.  50). 

Até Kierkegaard realiza seu salto. Para o pensador dinamarquês, também o paradoxo e o inteligível são critérios religiosos. Ele, já no final de sua vida, retoma o cristianismo de sua infância e "reza" pelo sacrifício de Inácio de Loyola: o sacrifício do intelecto. Kierkegaard atribui a aparência de divino ao absurdo e ressalta em Deus seus atributos absurdos: ele é injusto, incoerente e incompreensível. Ao explicar seu conceito de desespero, identifica-o como um estado: o estado de pecado, ou seja, de separação de Deus. E termina descrevendo o efeito sobre a alma humana imersa num universo regido pelo azar, que termina em um vazio sem fundo, fruto do desespero. Kierkegaard, citado por Camus, diz que:

Se o homem não tivesse uma consciência eterna, se, no fundo de todas as coisas, só tivesse um poder selvagem e fervente, produzindo todas as coisas, o grande e o fútil, no turbilhão de paixões obscuras, se o vazio sem fundo que nada pode preencher se ocultasse sob as coisas, o que seria então a vida, senão o desespero? (Id., ibid., p.54)

É esta fuga do desespero descrita por Kierkegaard o que leva estes autores ao "suicídio filosófico". Esta pequena análise mostra os passos mentais que foram necessários para se cometer tal suicídio. Sem nenhum amparo lógico, estes autores partem de uma filosofia da falta de significado do mundo, e acabam por encontrar, na própria falta de significado, um mundo que contém um sentido e uma profundidade.

A lista dos pensadores que se contradizem neste sentido, fugindo do absurdo e do raciocínio através do "salto" e do "suicídio filosófico", abandonando a rigidez de suas reflexões ontológicas, não se restringe apenas aos existencialistas cristãos. Camus identifica este movimento também em Husserl, cuja proposta metodológica, a fenomenologia, na análise feita por Camus, se nega a explicar o mundo e limita-se apenas a contemplá-lo. Neste sentido e à primeira vista, isto não contradiz a condição imposta por Camus, já que isto demonstra uma atitude de pensamento que apenas “quer enumerar o que não consegue transcender”. E, completamente de acordo com a proposta de se seguir um raciocínio que não se trai, “apenas afirma que, na ausência de qualquer princípio de unidade, o pensamento ainda pode encontrar suas alegrias descrevendo e compreendendo cada faceta da experiência” (Id., ibid., p.57).

Mas é preciso lembrar qual é o objetivo da fenomenologia de Husserl: ela pretende descobrir a essência de cada objeto do conhecimento. Então, “já não há uma única idéia que explica tudo”, como nos existencialistas cristãos, “mas uma infinidade de essências que dão sentido a uma infinidade de objetos” (Id., ibid., p.58). O que se pretendia ser uma base para ciência, sem traição à lógica, usando as palavras de Camus, “se lança num politeísmo abstrato”. E, além disso, Husserl ainda se refere também à "essências extratemporais"[3], trazidas à luz graças à intencionalidade, com um discurso, segundo Camus, parecido ao de Platão.

Deste modo, Camus mostra como o falseamento da razão fornece à angústia de seu tempo os meios para se acalmar, utilizando-se para isso os cenários familiares do eterno, dê-se o eterno como for. Mas este falseamento da razão não satisfaz aqueles que pretendem saber se a vida vale ou não a pena ser vivida, mesmo sendo absurda. O que estas filosofias fizeram foi fugir à questão absurda. Camus, usando o termo de Kierkegaard, quer saber se é possível ao homem viver no “desespero”, sem nada que o ampare nesta terra e tendo como conseqüência última apenas a morte.

O espírito absurdo, que para Camus é o equivalente a “alguém que aceitou o absurdo”, não consente com o “salto” de raciocínio. Para ele o mundo não é nem tão racionalizável, como quer a fenomenologia, nem é tão irracional como pretendem os existencialistas. O mundo, diz-nos Camus, “é irracionável, nada mais que isso” (Id., ibid., p.61).

Em Husserl, a razão termina não tendo limites. O absurdo, pelo contrário, fixa seus limites, porque é impotente para acalmar sua angústia. Kierkegaard, por seu lado, afirma que um único limite basta para negá-la. Mas o absurdo não chega tão longe. Esse limite, para ele, só visa às ambições da razão. O tema do irracional, tal como é concebido pelos existencialistas, é a razão que se enreda e se liberta ao se negar. O absurdo é a razão lúcida que constata seus limites. (Id. ibid., p.61)

O raciocínio proposto por Camus, não deseja abandonar a evidência que o despertou: o absurdo. Este divórcio entre “o espírito que deseja e o mundo que decepciona”; a nostalgia de unidade[4] presente no homem, o universo disperso, efêmero, e a contradição que os enlaça. Camus afirma que “Kierkegaard suprime a minha nostalgia e Husserl reúne esse universo”, e não é isso que esperávamos. A questão primeira é se seria possível viver neste dilaceramento, se, diante do absurdo, a vida vale a pena ser vivida. É preciso saber se é possível viver mergulhado no sentimento do absurdo ou se a própria lógica justifica que devamos morrer por ele. Os pensamentos filosóficos apresentados neste tópico se desviaram da pergunta; portanto, ainda não alcançamos uma resposta satisfatória.

“Não me interesso pelo suicídio filosófico, mas pelo suicídio, simplesmente. Só quero purgá-lo do seu conteúdo de emoções e conhecer sua lógica e sua honestidade” (Id., ibid., p.62).  Passemos, então, à análise da lógica do suicídio e sua “honestidade” de raciocínio.

2.4 A revolta como resposta ao suicídio e à questão do sentido da vida

Ainda não nos foi possível saber se tem a vida um sentido suficiente para que não nos matemos. A análise das filosofias feitas por Camus em O Mito de Sísifo indica que aparentemente não há este sentido suficiente; pelo menos não um sentido que atenda às exigências de clareza humana, tão caras ao autor.

Para Camus, não faltou quem apregoasse um sentido, mesmo que este ultrapassasse a capacidade e o desejo de clareza; por fim estes raciocínios sempre exigiram o “salto”. Salto este que, como foi explicitado, é obscuro, sem clareza de raciocínio. O sentimento de absurdo nasceu na obra camusiana justamente do desejo de clareza humana diante do caráter irracionável – obscuro – do mundo. Por isso o homem, imbuído do sentimento de absurdo, exige de si mesmo viver somente com aquilo que ele sabe e não pretende admitir nada que não seja comprovadamente certo. Por hora, diz Camus: “não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço esse sentido e que [...] me é impossível conhecê-lo” (Id. ibid., p.62).

O homem imbuído do sentimento de absurdo quer apenas viver com o que é certo, se for possível, ou não viver. Talvez, argumenta Camus, podem responder-lhe “que nada é certo. Mas isto, pelo menos, é uma certeza. É com ela que tem que lidar: quer saber se é possível viver sem apelação” (Id., ibid., p.65). Ou seja, Camus quer saber se é possível sem apelação, sem ter que “saltar”, ter uma resposta diante da questão a respeito de se a vida vale a pena ser vivida. Diante do que já abordamos, temos ao menos uma certeza e a partir dela podemos esboçar uma resposta.

Já vimos que o absurdo é fruto da lucidez humana, de seu desejo de clareza confrontado com o caráter irracional e ininteligível do mundo. Por que viver se teremos como fim a morte? Ou, mais profundo que essa questão, o que explica que haja a vida se ela foi feita para se acabar? Sendo assim, não se pode negar um dos termos dessa tensão ao se buscar uma resposta. Aceitando que nada podemos saber sobre o sentido da vida, sem negar o desejo, impossibilitado pelo caráter irracional do mundo, de conhecê-lo, nasce o que Camus chama de “revolta”. Sobre ela, ele nos diz: “essa revolta é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la” (Id., ibid., p.66).

            O destino esmagador é este: vivemos com todas as alegrias e dificuldades da vida, iremos morrer e não sabemos se algo justifica o fato de vivermos, já que a vida tem um fim. Neste sentido, pode-se pensar que o suicídio é fruto dessa revolta, que o responde, já que se suicidar é, em certo sentido, admitir a certeza de um destino esmagador. Porém, suicidar-se é também se resignar a este destino esmagador. Tal como ocorre nas filosofias tratadas por Camus, o suicídio é também um salto – admite-se, sem nenhuma certeza, que a vida não vale a pena ser vivida. Explicando esta afirmação, o filósofo argumenta que:

Aqui se vê como a experiência absurda se afasta do suicídio. Pode-se pensar que o suicídio se segue à revolta. Mas é um engano. Porque ele não representa seu desenlace lógico. É exatamente o seu contrário, pela admissão que supõe. O suicídio, como o salto, é a aceitação em seu limite máximo. Tudo se consumou, o homem retorna à sua história essencial. Divisa seu futuro, seu único e terrível futuro, e se precipita nele. À sua maneira, o suicídio resolve o absurdo. Ele o arrasta para a própria morte. Mas eu sei que, para manter-se, o absurdo não pode ser resolvido. Recusa o suicídio na medida em que é ao mesmo tempo consciência e recusa da morte.(Id., ibid., p.66)

Essa revolta, mais do que precipitar o homem à morte e ao desespero, valoriza a vida. A revolta não aceita que se resigne nem a um destino superior, mas incerto, nem ao mundo e sua irracionalidade esmagadora. A revolta põe o homem e sua inteligência “às voltas com uma realidade que o supera”, sem nenhuma muleta metafísica. Devolve o peso da vida ao ombro do homem, e se este peso é tão grande, mostra também a grandeza do ombro que o carrega. A consciência e a revolta recusam qualquer sentido transcendente à vida, mas, nem por isso, são renúncias à vida. Como explica Camus, “trata-se de morrer irreconciliado, não de bom grado” (Id., ibid., p.67).

Neste sentido, o “fundamento” da vida não interessa mais, nem conta como essencial para agirmos enquanto existentes. A vida torna-se um fim em si mesmo, a revolta dá, cotidianamente, o testemunho da única certeza possível para um espírito imbuído de absurdo: a vida, apesar da morte.

A revolta não é o fundamento último da vida, nem seu sentido. É apenas um sentimento que, sentido sem concessões, desperta um valor indubitável. Valor este que pode servir como pilar para orientar as atitudes humanas. Diante da explanação sobre o absurdo, agora estamos capacitados a analisar com mais profundidade o que é a revolta e como ela se expressa na vida concreta do homem.

3. REVOLTA, NIILISMO E DESMEDIDA

Até aqui tratamos da questão do sentimento absurdo para Albert Camus, e como este sentimento priva ao homem o “sono” necessário para se viver. Essencialmente, o absurdo lembra ao homem sua mortalidade, da qual ele age como se não existisse. A mortalidade certa exige do homem uma posição. Terá algo que a justifique? Será a mortalidade o fim que inutiliza toda a vida? O homem não consegue encontrar uma resposta satisfatoriamente clara, mas deste sentimento absurdo, apesar de não brotar uma resposta, pode nascer uma atitude absurda chamada por Camus de “revolta”.

Esta revolta, ou o confronto perpétuo entre o espírito sedento de clareza e o mundo irracionável, é o primeiro passo – o inicio do raciocínio que permite que se aja moralmente sem depender para isso de pressupostos metafísicos, sejam eles divinos ou racionais. Pelo seu caráter de negação a qualquer tipo de transcendente metafísico, pode-se confundir “revolta” com “niilismo”; fato que Camus frisa em sua obra O Homem Revoltado. A revolta não é o mesmo que niilismo, apesar de poder se confundir com ele, trazendo graves conseqüências.

Niilismo, segundo o Dicionário Oxford de Filosofia, é a “teoria que promove o estado em que não se acredita em nada, ou de não se ter comprometimentos ou objetivos”. Já para Camus, "o niilista não é aquele que não crê em nada, mas o que não crê no que existe" (CAMUS, 2003, p.91).

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Neste sentido, podemos asseverar que o niilista, para Camus, é aquele que efetua o “salto”, o que ele mesmo chama de “suicídio filosófico”, já que, para realizar o “salto”, o homem deve crer naquilo que não existe, ou pelo menos naquilo que ele não tem certeza se existe ou não. Veremos nos próximos tópicos como essa diferença é essencial, e como o niilismo, tomado como revolta, trouxe conseqüências gravíssimas para o homem ao realizar seu “salto”.

A primeira questão colocada pela análise da revolta é se seria válido matar; o que veremos que, para Camus, não é. Depois analisaremos a conseqüência trazida pelo que Camus chama de “desmedida”, que é o desvirtuamento da revolta, tomada como niilismo, e como essa desmedida torna possível racionalmente o assassinato. Depois analisaremos as conseqüências destas barbáries em nome de uma lógica “fria e monótona”, nascidas do niilismo; que Camus chama de “crime lógico” – identificado por ele como sendo as barbáries da segunda guerra, os regimes fascistas de direita e de esquerda, o terrorismo, enfim, tudo aquilo que, em nome de algo, permite-se matar.

3.1 O problema do assassinato

No âmbito da revolta, o assassinato torna-se a questão premente. Tal como o suicídio, que no âmbito do absurdo era a questão principal, tendo em vista que refletia num único ato de vida toda idéia que se faz da existência.

Se não se acredita em nada, se nada faz sentido e é impossível ao homem imbuído de absurdo afirmar qualquer valor, o que embasaria o repúdio ao assassinato? Como veremos ao tratar da questão do “crime lógico”, se nada consegue provar-se verdadeiro nem falso, bom ou mau, a moral tornar-se-ia mera conseqüência do que é mais eficaz; dar-se-ia a moral do mais forte[5]. Já não haveria mais a distinção entre justo e injusto, a sociedade se resumiria na relação entre senhores e escravos. Não que matar seja uma conseqüência lógica do posicionamento absurdo, mas seria, no âmbito da falta de valores, apenas uma das infinitas atitudes válidas, como nos fala Camus: “Não há nem pró nem contra, o assassino não está certo nem errado. Podemos atiçar o fogo dos crematórios, assim como também podemos nos dedicar ao cuidado dos leprosos. Malícia e virtude tornam-se acaso ou capricho” (Id. ibid., p.15)

            Sendo assim, parece-nos que o ato de matar se torna indiferente, não passa de um capricho. Mas ao retornamos à reflexão que fizemos sobre o absurdo, veremos que este raciocínio não pode implicar em assassinato e, mais que isso, acaba por condená-lo. Lembremos que a conclusão última do raciocínio absurdo é, na verdade, a rejeição do suicídio e da manutenção do confronto desesperado entre a interrogação humana, seu desejo de clareza, e o silêncio do mundo com seu caráter irracional. O absurdo, que só se manteria nesta tensão entre o desejo de clareza versus a obscuridade do mundo, depende deste confronto. O suicídio seria o fim desse confronto, representando uma fuga à questão; não uma resposta. O que este raciocínio implica é a necessidade de se tomar a vida como o único bem necessário, como o único valor, já que é justamente ela que permite esse confronto. Como afirma o filósofo argelino, “para dizer que a vida é absurda, a consciência tem necessidade de estar viva”, e:

A partir do instante em que se reconhece esse bem [a vida como único valor] como tal, ele é de toda a humanidade. Não se pode dar uma coerência ao assassinato, se a recusamos ao suicídio. A mente imbuída da idéia do absurdo admite, sem dúvida, o crime por fatalidade; mas não saberia aceitar o crime por raciocínio. Diante do confronto, assassinato e suicídio são a mesma coisa: ou se aceitam ambos ou se rejeitam ambos. (Id., ibid., p.17).

A conseqüência mais prenhe de se reconhecer a vida como um valor, é que isto impede que se caia no que Camus chama de “negação absoluta”. Basta viver, seja do modo que for, e isso já é suficiente para se reconhecer a impossibilidade da negação absoluta; pois viver já é afirmar ao menos um valor: a vida. E, no caso do raciocínio absurdo, este se mostra o único valor claro. Sendo assim, o raciocínio absurdo não pode ao mesmo tempo preservar a vida daquele que fala e aceitar o sacrifício dos outros. Vê-se, assim, negado o assassinato como conseqüência do raciocínio absurdo. É rechaçada a possibilidade de uma explicação racional para o assassinato[6]. Iremos agora tratar do “crime lógico”, fruto de uma suposta justificação racional do problema do assassinato.

3.2 O crime lógico e a legitimação do assassinato

Já vimos que o assassinato, tal qual o suicídio, não pode ser tomado como conclusão de um posicionamento absurdo. Se o absurdo tomado de maneira superficial poderia dar a entender que o “salto” na fé, ou o suicídio, eram as únicas possibilidades de existência; a revolta, tomada de maneira superficial, pode dar a entender que o assassinato pode ser passível de justificação – sendo resultado de um raciocínio. É justamente isso o que Camus percebe acontecendo em seu tempo, identificando este fenômeno como “crime lógico”. Sua análise deste fenômeno pretende explicitar como é possível “os campos de escravos sob a flâmula da liberdade” e “os massacres justificados pelo amor ao homem pelo desejo de super-humanidade” (CAMUS, 2003, p.14). Camus deseja com essa análise entender tal fenômeno, não julgá-lo.  Diz ele que: “pode-se achar que uma época que em cinqüenta anos desterra, escraviza ou mata setenta milhões de seres humanos deve apenas, e antes de tudo, ser julgada. Mas, também é necessário que a sua culpabilidade seja entendida (Id. ibid., p.14).

            Para entender essa culpabilidade, é mister saber a quem cabe esta culpa; para Camus, esta culpa cabe à filosofia. Logo no primeiro parágrafo de seu O Homem Revoltado, Camus explica que:

Há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes. (Id. ibid., p.13)

Camus não quer condenar a filosofia como um todo, nem o método filosófico, do qual ele mesmo se utiliza. O que ele quer acusar na filosofia é seu lado ideológico, assunto do qual trataremos no próximo tópico. Vimos na reflexão acerca do absurdo, que a negação abarcava tudo, a ponto de se negar a si mesmo pelo suicídio. Nada conseguia ter um valor claro. Mas essa negação, através da ideologia, apresenta-se de maneira pervertida: “atualmente, a ideologia nega apenas os outros, só eles são trapaceiros” (Id., ibid., p.15).

O suicida e o assassino, passando por caminhos diferentes, no fundo desejam o mesmo. O suicida ainda guarda certa dignidade e, até um certo valor, já que não abusa da extrema liberdade que o ato de se matar dá àquele que se propõe a isso. Ao desdenhar a vida, o suicida desdenha-a em nome de alguma coisa. O mundo é indiferente para ele, porque guarda uma idéia daquilo que não lhe é indiferente, mas que não encontra no mundo. No fundo o suicida faz renascer um valor que talvez desse sentido à sua vida; ele morre por este sentido, este valor. Mesmo suicidando-se, ainda não se esgota a negação absoluta. O suicídio não responde à questão. Para responder através da negação absoluta – nada faz sentido, não há valor algum – só extinguindo-se toda a possibilidade de vida. É por isso que o niilismo absoluto, o que aceita legitimar o suicídio, acaba também legitimando o assassinato. Segundo Camus: “se o nosso tempo admite tranqüilamente que o assassinato tenha suas justificações, é devido a essa indiferença pela vida que é a marca do niilismo” (Id., ibid., p.17).

            Esta lógica nascida dos valores do suicídio, da qual a Europa se alimentou, levou ao assassinato “legitimado” e, em certos casos, até ao suicídio coletivo[7]. Como foi possível perceber, ao analisarmos o sentimento de absurdo e as suas conseqüências, a reflexão sobre a falta de sentido da vida e o suicídio dependia de uma emoção, o sentimento do absurdo, que se supera. O absurdo não é tomado como conclusão de um raciocínio, mas, sim, como seu começo. Camus identifica o erro de sua época, e, em conseqüência, o crime lógico, como sendo o de enunciar e se deixar guiar por essa emoção desesperada – o absurdo – e por tomá-lo como um fim, como a conclusão de um raciocínio. Veremos em que consiste este raciocínio.

3.3 A revolta e seus desvios: a lógica da desmedida e o niilismo como perversão da Revolta

3.3.1 Niilismo, revolta e a queda de Deus

Para entendermos como foi possível ao crime lógico instituir-se, é imprescindível analisar como a revolta, através do niilismo, permite, antes de tudo, a queda de Deus. Voltemos ao que Camus entende por niilismo. Diz ele que "o niilista não é aquele que não crê em nada, mas o que não crê no que existe" (Id., ibid.,, p.91). E por quê o homem creria em algo que não existe? Porque ele tem a necessidade de buscar um sentido não aparente para a vida e, mais especificamente, para o sofrimento do mundo. Diz Camus que: “revoltante em si não é o sofrimento da criança, mas o fato de que esse sofrimento não seja justificado. Afinal, a dor, o exílio, o confinamento, são às vezes aceitos quando ditados pela medicina ou pelo bom senso” (Id., ibid., p.125).

Para Camus, tal qual o absurdo, a revolta:

Nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. (Id., ibid., p 21)

A revolta diz não ao sofrimento. Julga-o inaceitável. Uma das facetas da “desmedida” acontece quando na tentativa de se criar uma justificativa para o sofrimento, se esquece que o importante não era lutar para que a justificativa exista, e sim lutar para minorar o sofrimento. Mais especificamente, o revoltado "está em busca de uma moral ou de um sagrado" (Id., ibid., p.125); mas cai na “desmedida” quando, ao invés de defender a moral ou o “sagrado” em nome do fim do sofrimento humano, justifica o sofrimento humano em nome dessa moral ou desse sagrado. Ou seja, ele afirma a moral ou o sagrado em detrimento da realidade; o que, para Camus, configura-se em niilismo.

Como exemplo deste fato, Camus fala sobre o cristianismo. Durante centenas de anos a doutrina cristã, através do catolicismo, serviu como justificativa para o sofrimento do mundo, colocando-o como provisório. O sofrimento seria apenas um estado necessário e passageiro para se alcançar a salvação. Cada lágrima de criança seria lavada depois do juízo final. Logo no começo do cristianismo, quando os apóstolos ainda pregavam por Jesus, o juízo final era tido como próximo. Esperavam-no para logo, questão de meses, talvez até dias. Mas ele foi adiado. Adiou-se tanto que passou para o fim dos tempos.

Com os contínuos adiamentos, o cristianismo foi perdendo seu caráter de sagrado e foi tornando-se cada vez mais uma moral, era preciso saber como se orientar na existência, enfim, enquanto se esperava pela salvação. O fim do sofrimento aconteceria, apesar de adiado para a eternidade. Enquanto isso, a questão principal que era a salvação transformou-se numa questão moral. A preocupação com o sagrado diminuía, enquanto a preocupação com uma tábua moral de leis que assegurava o que era possível ao homem, aumentava. Essa espera pela salvação num tempo indefinido, mas certa de um dia chegar ao fim, podia justificar tudo; até uma moral impossível.

Apesar da moral cristã e o sentido que dava à vida, o sofrimento no mundo ainda era absurdo. A moral cristã, diante do mundo, não conseguia ser coerente. Como Deus, sumo Bem, poderia permitir a morte de crianças inocentes, por exemplo? Assim, a própria moral cristã, impossível, niilista no sentido camusiano – já que negava aspectos naturais da realidade – foi o que possibilitou a derrota de Deus. Se Deus havia criado o mundo, inclusive sua moral, como era possível haver sofrimento no mundo? A partir disso, Deus sofreu o julgamento moral dos homens e isso criou um impasse: "ou não somos livres e o responsável pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso" (CAMUS, 2004, p.75). Entre o homem livre e o Deus todo-poderoso, prevaleceu o homem livre. Estava acabada a idéia de Deus no sentido cristão.

Ao julgar Deus moralmente, o homem colocou-se no mesmo patamar dele. Ao preferir o homem livre, condenou-o, colocou-se acima dele. A partir do Iluminismo, o que antes era pecado, agora era prescrito em código civil[8]. Agora o homem era não só livre, como também todo-poderoso. É o homem quem dita a sua própria moral, através da razão. Como isso se dá de maneira mais específica, e as conseqüências trazidas por isso, veremos ao analisarmos Ivan Karamazov.

3.3.2 Ivan Karamazov e a inauguração da desmedida

Camus, para ilustrar a queda de Deus através do julgamento moral do homem, usa como exemplo o personagem Ivan Karamazov, do romance Irmãos Karamazov, obra de Dostoievski publicada em 1888. E identifica nesta obra “o momento mais elevado de um drama que começou desde o fim do mundo antigo e cujas últimas palavras ainda não ressoaram” (CAMUS, 2003, p.127). E isso porque “a partir desse momento, o homem decide excluir-se da graça e viver por seus próprios meios” (Id., ibid., p.127). Veremos agora como isso se dá.

 Ivan Karamazov é um personagem que toma o partido dos homens, ressaltando a sua inocência; afirma que a condenação à morte que paira sobre os homens imposta por Deus é injusta. Num primeiro momento, podemos perceber que longe de defender o mal, Ivan reclama justiça. E, esta justiça, Ivan situa acima da divindade. Aqui percebemos que ele não está negando a existência de Deus, ele está refutando Deus em nome de um valor moral. Deus é julgado e o resultado deste julgamento, para Ivan, é a recusa de Deus.

Se o mal é necessário à criação divina, então essa criação é inaceitável. Ivan não mais recorrerá a esse Deus misterioso, mas a um princípio mais elevado, que é a justiça. Ele inaugura a empreitada essencial da revolta, que é substituir o reino da graça pelo da justiça. (Id., ibid., p.75).

A empreitada essencial da revolta é, então, substituir o reino da graça, julgado como injusto e, portanto, inaceitável, pelo reino da justiça. A questão, primeiramente, não é negar a existência de Deus, mas, ainda mais profundo que isso, é dizer que mesmo se Deus existisse, o sofrimento ainda não seria aceitável. Ivan Karamazov, citado por Camus, diz que: “se o sofrimento das crianças serve para completar a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde já que essa verdade não vale tal preço. (...) Minha indignação persistiria mesmo se eu estivesse errado” (Id., ibid., p.75).

Ivan recusa a dependência instaurada pelo cristianismo entre sofrimento e verdade. Mesmo se - e isso é crucial – mesmo se Deus existisse, mesmo se o mistério encobrisse uma verdade, Ivan não aceitaria a verdade; pois julga seu preço muito alto. Pagar essa verdade com o mal, com o sofrimento e a morte infligida aos inocentes faz Ivan recusar esta verdade. Se ela existir, é inaceitável. “Toda ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças” (Id., ibid., p.76). Pode ser que a verdade exista, não é o problema da existência ou não da verdade que o atormenta, mas sim a sua legitimidade. Mesmo se ela existisse, seria inaceitável. E por que? Por ser injusta.

Neste contexto, Ivan recusa-se a ser salvo sozinho. Se cresse, se tivesse fé, seria salvo e conquistaria a imortalidade, mas outros seriam condenados. O sofrimento continuaria, “não há salvação possível para quem sofre a verdadeira compaixão” (Id., ibid., p.76). Recusando assim a imortalidade, o sentido da vida, nada mais resta a Ivan do que a própria vida. Diz ele, citado por Camus:

Eu vivo, a despeito da lógica. [...] Se não tivesse mais fé na vida, se duvidasse da mulher amada, da ordem universal, persuadido pelo contrário de que tudo nada mais é do que um caos infernal, mesmo assim eu desejaria viver, apesar de tudo. (Id., ibid., p.76)

Recusando a imortalidade, se não há nem recompensa nem castigo, nem bem nem mal, Ivan vai viver e amar “sem saber por quê”, e continua: “acredito que não há virtude sem imortalidade. (...) Sei apenas que o sofrimento existe, que não há culpados, que tudo está interligado, que tudo passa e se equilibra” (Id., ibid., p.76-77).

Diante deste panorama, Ivan inaugura o niilismo contemporâneo e sua “desmedida”, pois afirma que, se não há virtude, já que ele nega a imortalidade, não há também mais lei. E, sem lei “tudo é permitido”.

O “mesmo se” de Ivan, que é o primeiro passo para o drama contemporâneo, onde o homem se exclui da graça e busca o seu próprio reino, o da justiça, através de uma reflexão mais longa acaba por transformar o “mesmo se existires” em um “tu não mereces existir” e, depois, em um “tu não existes”. Antes, mesmo se Deus existisse, Ivan não se renderia a ele diante da injustiça infligida ao homem; depois, em nome da inocência que defendia nos homens, mas já condenados, sem a esperança da imortalidade, decide pela morte de Deus. Sem imortalidade, sem mais participar da graça, resta então construir o único reino legitimamente humano, reino este que se opõe à divindade: o reino da justiça. Como afirma Camus, “morto Deus, resta a humanidade, quer dizer, a história, que é preciso compreender e construir” (Id., ibid., p.128).

Banindo Deus de seu céu, resta ao homem a razão, único poder de conquista que lhe parece ser puramente humano. A partir de então o homem almeja o reino da justiça, o império dos homens, assunto do próximo tópico.

3.3.3 A desmedida histórica e o crime lógico como pressuposto ao reino da justiça

O homem, na medida em que declara a morte de Deus, possibilita a ele mesmo tornar-se Deus[9]. O exemplo prático disso é o fato de se transmudar as leis sagradas em leis civis. O homem cria o seu próprio sagrado, um sagrado puramente humano: a história. E em nome da história, então, todo o sofrimento é justificado. A escatologia cristã desaparece, mas entra em seu lugar uma escatologia histórica – a sociedade perfeita no planeta Terra. 

Camus afirma ser originalmente Hegel o responsável por esse desvio, de quem Marx e os marxistas foram herdeiros, como veremos a seguir. Hegel, através de sua filosofia, fez do sucesso histórico o princípio moral de todo comportamento coletivo, ao qual o comportamento individual deveria subordinar-se. Olivier Todd, ao analisar as afirmações de Camus, diz-nos que Hegel é, através de seu pensamento:

Defensor no fundo do tribalismo nacionalista, das exaltações do estado inimigo de todos os seus concorrentes, portanto, votado à guerra, ele estaria na origem do Führerprinzip. [...] [Hegel] torna admissíveis as mentiras da propaganda e as deformações da verdade. Guerra e glória tornam-se fins desejáveis. [...] Estava aberta a brecha para os métodos que legitimam o pior. (TODD, 1998, p.559).

Os regimes totalitários herdeiros desta concepção hegeliana são vários: o nazismo, o comunismo, o fascismo italiano; mesmo sendo na aparência, numa análise superficial, diferentes. Aparentemente são, também, regidos pela revolta. No entanto, afirma Camus sobre esses regimes que “não são a revolta e sua nobreza que iluminam atualmente o mundo, mas sim o niilismo” (Id., ibid., p.126); veremos como isso se dá.

Antes, é preciso explicar o porque da ênfase sobre o regime Comunista. Por ter escrito O Homem Revoltado já depois da Segunda Grande Guerra, os regimes totalitários, italiano e alemão, não mais existiam. O interesse de Camus se volta para o regime que se fortalecia com o pós-guerra, cercado de mentiras, herdeiro de Hegel através de Marx: o comunismo russo. Sobre esse desejo de denúncia e análise do regime comunista, escreve Camus a um amigo em 1950, citado por Olivier Todd:

Às vezes odeio minha época. Não sou um idealista. E não são essas realidades, por mais abjetas e cruéis que sejam, que odeio. São as mentiras em que elas chafurdam. [A Rússia é] hoje uma terra de escravos juncada de postos de vigia [...]. Combaterei até o fim o fato de esse regime de campo de concentração ser adorado como instrumento da libertação e como uma escola da felicidade futura... Só uma coisa no mundo me parece maior do que a justiça: é, se não a própria verdade, pelo menos o esforço no sentido da verdade. Não temos necessidade de esperança, temos apenas necessidade de verdade. (TODD, 1998, p.557).

Na busca dessa verdade necessária, Camus parte para a análise sobre o regime comunista. Em seu começo, os ideólogos do comunismo, como os do cristianismo, pregavam que, através de seus preceitos, a abolição do sofrimento era para logo. A revolução comunista veio em 1917, na Rússia, e a abolição do sofrimento humano não veio tão rápido quanto esperavam. A ciência, fruto da razão - substituta da antiga graça cristã -, não foi tão precisa, o "fim dos tempos" comunista foi cada vez mais adiado, ainda eram precisos uma série de coisas a serem feitas até que a salvação chegasse. A comprovação científica – como a profecia dos sucessivos colapsos do sistema capitalista, feita por Marx - foi sendo substituída por um novo tipo de fé, e essa fé pregava que ainda haveria muito sofrimento, até que o sofrimento acabasse de vez. Mas, um dia, a abolição do sofrimento chegaria, então:

Se está garantido que o reino chegará, que importa o tempo? O sofrimento nunca é provisório para quem não acredita no futuro. Mas cem anos de sofrimento não são nada para quem afirma, para o centésimo primeiro ano, a cidade definitiva. Na perspectiva da profecia nada importa. (Id., ibid., p.241)

A dor não incomoda tanto se o sofrimento é provisório. Enquanto o reino definitivo que livrará a humanidade do sofrimento não chega, mas sabe-se que ele chegará, tudo é justificável no reino do agora. Em nome do reino definitivo instaura-se até o sofrimento; mas não é o sofrimento o que o reino definitivo virá abolir? Neste sentido, é a fé, uma fé niilista, desvirtuada da realidade, que permite a alguém pensar estar caminhando em direção a uma sociedade livre, através de campos de concentração e de trabalho escravo.

Voltemos à análise de Camus. Antes, negava-se toda a realidade e o mundo, ao ponto até de negar a si mesmo através do suicídio. Mas, atualmente, a ideologia só nega os outros; são eles os trapaceiros. Tal como o comunista divide o mundo entre burgueses e proletários; a ideologia comunista diz que o mundo é absurdo por conta dos burgueses. Eles é que devem ser negados, para a afirmação dos proletários e, mais do que isso, para a realidade retomar a sua unidade. Enquanto não se extirpar tudo o que é burguês, a realidade não se tornará “real”, será mera corruptela do real.

É neste sentido que Camus situa o socialismo como herdeiro do cristianismo. Em ambos, o que motiva seus adeptos é o desejo de unidade num mundo sem unidade. Na busca desta unidade, Camus identifica ambos como sendo niilistas, pelo fato de serem míopes em relação à realidade; eles têm uma visão limitada, vêem um pedaço da realidade e o julgam como o todo. E aí, por isso, ao invés de tentarem integrar toda a realidade, pretendem, pelo contrário, excluir da sua “realidade” tudo aquilo que identificam como corruptela do real. Mas se no cristianismo o homem ainda tinha um limite para sua existência, que era Deus; ao matá-lo este limite foi quebrado. Na época das grandes revoluções, o homem se julga o próprio Deus e, em seu caminho rumo ao reino da justiça, julga que tudo é válido para se constituir o império dos homens. O homem sem Deus imagina encontrar uma justificativa para o sofrimento humano por meio da história.

"A idade de ouro adiada para o fim da história, e coincidindo, por uma dupla atração, com um apocalipse, justifica tudo” (Id., ibid., p.241). Encontrada, então, a justificativa, ela serve até para o choro das crianças famintas. Mas essa justificativa só faz sentido enquanto o choro da criança, em si, exista. Antes se queria combater o sofrimento humano, mas o sofrimento humano ultrapassa a capacidade do homem, como veremos mais detalhadamente na terceira parte deste trabalho. O homem “desmedido” pensa ser capaz de tudo curar. Imagina que, no reino da justiça, o sofrimento não mais existirá. Mas o ser humano não é ilimitado - ele tem um limite até onde pode mover-se. Ao se esquecer desse limite, ele continua sendo incapaz de abolir o sofrimento, e, ao invés de minorá-lo, perde-se na busca de sua justificativa. Em nome dessa justificativa, o homem continua sofrendo.

Em seu caminho rumo ao reino da humanidade, o homem esquece-se de seu sofrimento natural. E esquece-se do que motivou sua revolta: o sofrimento injustificável e absurdo da condição humana. Tal como o suicida foge à questão absurda, anulando-a, por negar uma de suas premissas; ao justificar o sofrimento humano, ao tentar dar-lhe sentido, não há mais revolta. A revolta nascia deste absurdo, do sofrimento que antes era injustificável. Se o sofrimento se justifica, não há absurdo. 

Veremos no próximo capítulo como se dá a revolta sem inebriar-se de niilismo e, a partir da revolta, como se dá a moral camusiana.

4. A REVOLTA E A MEDIDA

4.1 A revolta como possibilidade moral

De acordo com o que foi analisado no segundo capítulo deste trabalho, o niilismo para Camus não é a descrença em valores, mas sim, em detrimento da realidade, crer-se em ideologias. Essas ideologias, surgidas da tentativa de justificação do sofrimento humano, tomam uma parte da realidade como sendo a sua possibilidade de unidade, como o todo – ou seja, a unidade seria conquistada a partir da exclusão de todo o “resto” da realidade, que não coadunaria com esta “parte”, tomada como o todo pela ideologia.

A história erigida como objeto de culto, como novo Deus, permite que em nome da ideologia partes da realidade, como a natureza, por exemplo, sejam negadas. A ideologia tenta tudo unificar, mas esse absoluto não é alcançado, nem é criado através da história. O sofrimento humano não é erradicado; a política não pode acabar com o sofrimento da criança, e a história não consegue justificá-lo. Enquanto isso o choro permanece existindo.

Mas o homem longe do absoluto – seja ele divino ou histórico - tem um espaço que é seu. E onde pode agir. Para Camus, o homem não pode erradicar completamente o sofrimento do homem, e suas tentativas nesse sentido longe de erradicarem o sofrimento, acabam multiplicando-o, já que buscam uma justificativa ao sofrimento e anulam seu sentimento de revolta, inebriando-o de niilismo. O homem desmedido perde seu verdadeiro quinhão. Camus afirma que: “carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combatê-los em nós mesmos e nos outros” (Id., ibid., p.345).

Não combatê-los no embate de idéias, ou na defesa de ideologias que justifiquem as masmorras, os crimes e as devastações, mas sim no campo concreto, que é o do individuo. O sofrimento humano é impossível de ser erradicado, mas o sofrimento de cada um pode ser amenizado.

O homem pode dominar em si tudo aquilo que deve ser dominado. Deve corrigir na criação tudo aquilo que pode ser corrigido. Em seguida, as crianças continuarão a morrer sempre injustamente, mesmo na sociedade perfeita. Em seu maior esforço, o homem só pode propor-se uma diminuição aritmética do sofrimento do mundo. Mas a injustiça e o sofrimento permanecerão e, por mais limitados que sejam, não deixarão de ser um escândalo. [...] O cristianismo histórico só respondeu contra o mal pela anunciação do reino e, depois, da vida eterna, que exige fé. Mas o sofrimento desgasta a esperança e a fé; ele continua então solitário e sem explicação. As multidões que trabalham, cansadas de sofrer e morrer, são multidões sem deus. Nosso lugar, a partir de então, é a seu lado, longe dos antigos e dos novos doutores. (Id., ibid., p.347)

Ao eliminar Deus e buscar a unidade num absoluto histórico, ilimitado, que tudo justifica, o homem perdeu sua “medida”; quis elevar-se ao absoluto, deixando de lado sua vida concreta, o seu “agora”, cercado pela pluralidade do real. Mas, ao voltar-se para si mesmo, assumindo seu próprio limite, ele é capaz de agir. E somente ai, já que em vinte séculos de doutrinas, "a soma total do mal não diminuiu" e "nenhuma parúsia, quer divina ou revolucionária, se realizou" (Id., ibid., p.348).

Camus, para citar um exemplo, afirma que o império ideológico nada fez de concreto pelo trabalhador, a não ser o escravizar - como na Alemanha nazista e na Rússia comunista. Enquanto o sindicalismo revolucionário, nos paises escandinavos e na Inglaterra - que esteve diretamente ligado ao ofício, ao concreto, longe de ideologias ou doutrinas - obteve melhorias importantes para a condição operária; desde a jornada de dezesseis horas diárias até a semana de quarenta horas de trabalho.

Podemos então definir o que é a medida para Camus. A medida é o saber-se limitado, diante de uma realidade que o transcende. Mesmo numa sociedade perfeita, a natureza continuará sendo maior que o homem. A morte continuará a existir e continuará a ser inexplicável. Mesmo uma sociedade perfeita não resolveria a questão acerca da mortalidade. Por isso, a revolta quando ligada à sua medida, apesar de negar ao homem a possibilidade de tudo resolver, já que ele não pode moldar a natureza da maneira como bem entende, afirma a possibilidade dele tudo poder enfrentar por meio de sua dignidade. Tal como se propõe a posição absurda. Assim:

a revolta reivindica desesperadamente uma ordem livre em que, segunda a magnífica expressão de René Char, o pão seria curado. Char sabe justamente que curar o pão significa dar-lhe seu lugar, acima de todas as doutrinas, e seu sabor de amizade. (CAMUS, 2002a, p.130)

Que ideologia poderia estar acima do pão e de seu sabor de amizade? Para Camus, todo ser humano compartilha da mesma condição trágica: a mortalidade. A posição absurda não propõe uma igualdade metafísica entre os homens, apenas evidencia que todos compartilham o mesmo destino. Este “compartilhar” o mesmo destino, descoberto através da revolta, faz surgir um verdadeiro sentimento de compaixão. Estamos todos diante da natureza e da mortalidade, compartilhamos o mesmo destino. Camus lembra ainda que há os que defendam que política, história e moral são coisas sérias, sagradas, que nada têm a ver com pães e seus possíveis sabores de amizade. Mas isso mostra justamente o quão niilistas se tornaram; são incapazes de se sentirem compartilhando o mesmo destino. E, por isso, tudo o que a política e a história fizeram ao homem foi escravizá-lo.

A "estes pequenos europeus", pergunta Camus, "que nos mostram uma face avarenta, se não tem mais força para sorrir, por que pretenderiam dar suas convulsões desesperadas como exemplos de superioridade[10]?" (Id., ibid., p.345). Camus, contra os “pequenos europeus” que, sistemática e racionalmente, mataram e escravizaram, e seus maiores mentores intelectuais – Hegel e Marx – quer voltar-se para o pensamento mediterrâneo. Como afirma Olivier Todd, Camus “canta seu lírico ‘pensamento mediterrâneo’, o Mediterrâneo contra a Europa do Norte, Platão e santo Agostinho contra Hegel e um Marx deturpado pelos marxistas” (TODD, 1998, p.564).

Camus opõe ao desequilíbrio totalitarista, fruto do sistema hegeliano e sua busca desmedida rumo ao ”absoluto”, o pensamento mediterrâneo, fazendo um elogio da “medida”. Para ele, com uma total liberdade não há mais justiça; enquanto que com uma justiça total, a liberdade é impossível. Antes de nos atermos ao que Camus entende por pensamento mediterrâneo, é preciso voltar à reflexão camusiana sobre a “criação artística”, e como ele identifica o movimento criativo como sendo o mesmo movimento que dá as condições necessárias para uma moral da revolta medida. Somente a partir da compreensão do homem como criador poderemos compreender o pensamento mediterrâneo e sua implicação para a moral camusiana.

4.2 A criação artística: o desejo de unidade e a transcendência do belo como movimentos da revolta e elogio à medida humana

Antes de vermos como a criação artística, através da posição humana diante do belo, coloca o homem diante do seu limite, de sua medida, é preciso analisar como o pensamento revolucionário é avesso à arte e à concepção do “belo” – pela concepção de beleza impor, em si mesma, uma medida à negação absoluta.

“A arte”, diz-nos Camus, é, tal qual a revolta, “também esse movimento que nega e exalta ao mesmo tempo” (CAMUS, 2004, p.289). Ao se dizer que “nega e exalta ao mesmo tempo”, Camus está referindo-se à realidade; o artista nega certas partes do real com o intuito de exaltar outras. Tal como o pintor que, diante de uma paisagem, emoldura sua tela – ele escolhe qual pedaço irá emoldurar, deixando de lado todo o resto da paisagem. Entramos então no terreno da medida, pois a arte prescinde da justa medida entre o que é negado e o que é exaltado, já que seria impossível uma arte da pura negação, não tendo qualquer referencial na realidade, ou uma arte da pura exaltação, que nada mais seria senão uma imitação da realidade - ou a própria realidade em si – o que, além de estar muito distante da possibilidade humana, deixaria de ser uma criação artística, sendo mera reprodução (impossível) do real.

Ao nos falar da arte no século XX e suas relações com as revoluções deste mesmo século, Camus lembra-nos de como os reformadores sociais sempre foram hostis em relação à arte. Mesmo Platão exilou os poetas de sua república, questionou a função mentirosa da linguagem e, além disso, colocou a beleza acima do mundo. A Reforma, já no Renascimento, “elege a moral e exila a beleza” (Id., ibid., p.291). Rousseau, bem ao seu estilo, “denuncia na arte uma corrupção que a sociedade acrescentou à natureza” (Id., ibid., p.291). Saint-Just, em seu programa para a “festa da Razão”, quer a razão personificada por alguém “mais virtuoso do que belo”. Já a Revolução Francesa só deu origem a um grande jornalista, Desmoulins, e a um escritor, Marquês de Sade. Enquanto, pouco depois, os seguidores de Saint-Simon vão defender uma arte “socialmente útil”, a chamada “arte para o progresso”.

A Rússia niilista também segue esta mesma linha de arte socialmente útil. Pisarev, também proclamando a decadência dos valores estéticos em favor dos valores pragmáticos, afirma: “eu preferia ser um sapateiro russo a um Rafael russo”. “Para ele, um par de botas é mais útil que Shakespeare” (Id., ibid., p.292), ironiza Camus. Nekrassov, outro niilista russo, poeta, diz preferir um pedaço de queijo a toda obra de Pushkin, grande poeta russo. A Rússia já “revolucionada” acaba ignorando as esculturas em mármore de Vênus e de Apolo, trazidas por Pedro, o Grande, para seu jardim de verão em São Petersburgo. Como disse Camus, “às vezes, a miséria desvia o rosto das dolorosas imagens da felicidade”.

Na ideologia alemã, para os intérpretes revolucionários de Hegel, não haverá arte na sociedade revolucionária. Com o final da história, dê-se ela como for, “a beleza será vivida, não unicamente imaginada”. Marx mesmo afirma, e esta afirmação persiste até os dias de hoje, que a arte não é universal, de todos os tempos. Ela seria determinada por sua época e expressaria os valores privilegiados da classe dominante de sua época. Portanto, para Marx,  “só há uma única arte revolucionária, que é justamente a arte posta a serviço da revolução”. E, de acordo com essa premissa: “o sapateiro russo, a partir do momento em que fica consciente de seu papel revolucionário, é o verdadeiro criador da beleza definitiva. Rafael só criou uma beleza passageira, que será incompreensível para o novo homem” (Id., ibid., p.292).

Como se explicaria então a beleza da arte grega, por exemplo, que persiste até hoje? Marx justifica-a timidamente por termos, segundo ele, “nostalgia” dos tempos em que ainda éramos crianças, referindo-se, claro, à infância da civilização. Mas de que forma julgamos belas a arte chinesa e a renascentista, etc, ele prefere não explicar. Assim como também não explicaram alguns pensadores da arte, que, para Camus, são “artistas e intelectuais dedicados à calúnia de sua arte e de sua inteligência”.

Explicitando esta calúnia, Camus pede para que:

Notemos efetivamente que, nessa luta entre Shakespeare e o sapateiro, não é o sapateiro quem maldiz Shakespeare ou a beleza, mas, ao contrário, aquele que continua a ler Shakespeare e não resolve fazer botas, que, aliás, ele nunca conseguiria fazer. (Id., ibid., p. 293)

Lembrando da frase de Camus “às vezes, a miséria desvia o rosto das dolorosas imagens da felicidade”, talvez podemos levar isto em conta e admitir que a “consciência pesada” dos artistas diante de um mundo tão injusto possa desculpá-los. “Mas”, diz-nos Camus, “a última coisa que um artista pode sentir, diante de sua arte, é o arrependimento” (Id., ibid., p.293). E também “pretender adiar também a beleza até o fim dos tempos é ir além da simples e necessária humildade, privando enquanto isso todo mundo, inclusive o sapateiro, desse pão adicional de que ele próprio se beneficiou” (Id., ibid., p.293).

O espírito revolucionário, como pudemos ver, não aceita a beleza. Qual será o motivo de se negar veementemente o lugar da beleza na arte? A crítica revolucionária, quando não condena a arte como um todo, denuncia um tipo de “arte pura”, identificando-a como uma simples evasão de uma imaginação ociosa. Lembremos que a arte, para ser válida, deve ser um movimento que ao mesmo tempo nega e exalta. A arte então é fruto de uma contradição e, resume Camus, “a contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele” (Id., ibid., p.299). Entendemos então porque a revolução é avessa à arte, e porque a arte é cara à revolta. Para Camus, a arte realiza o mesmo movimento que a revolta, sem desviar-se através do niilismo. Analisaremos agora a ojeriza revolucionária pela arte.

É célebre a frase de Marx denunciando que os filósofos já interpretaram o mundo demais, e cabe, a partir dele, à filosofia, transformá-lo. Se a criação artística necessita de que se aceite o mundo tal qual ele é, sem fugir dele, ela acaba tornando-se contrária ao objetivo revolucionário, que é não aceitar o mundo tal qual ele é, exaltando um mundo que ainda não é, mas virá a ser[11]. É claro que a arte contesta o real, mas não se esquiva dele. Na criação artística, o homem contesta o real criando através dele; enquanto no pensamento e na “arte” revolucionária o homem contesta o real não através do que ele oferece, mas sim através de idéias e conceitos não presentes na realidade. Enfim, nega a realidade esquivando-se dela.  O pensamento revolucionário pretende extirpar da realidade certos aspectos que não se coadunam com a ideologia; o próprio ideal é desmedido, pretende-se maior que a realidade.

A chamada escola artística realista – com sua maior vertente, o Realismo Socialista – que pretende, na teoria, ser apenas uma descrição do real sem a derivação de uma “imaginação ociosa”, mostra claramente sua origem imaginosa e, mais que isso, sua pretensão quase divina; pretensão esta que revela sua verdadeira intenção:

O realismo é a enumeração indefinida. Com isso, ele revela que sua verdadeira ambição é a conquista, não da unidade, mas da totalidade do mundo real. Compreendemos então que ele seja a estética oficial de uma revolução da totalidade. (Id., ibid., p.310)

Antes de prosseguirmos é necessário explicitar o que Camus entende por “unidade” e qual o seu papel na arte e, conseqüentemente, na revolta. A unidade é a pretensão de dar à vida uma forma que ela não tem, e, sendo assim, diz-nos Camus que “é justo dizer que o homem tem a idéia de um mundo melhor do que este. Mas melhor não quer dizer diferente, melhor quer dizer unificado” (Id., ibid., p.301). Frisemos bem, melhor não quer dizer diferente, para Camus, melhor quer dizer unificado. Veremos na criação artística como se dá este conceito de “unidade”.

Na obra literária, apesar de ser uma criação baseada na realidade, há um desejo de unidade através da busca de um destino. Numa romance artístico, por exemplo:

O sofrimento é o mesmo, a mentira e o amor, os mesmos. Os heróis falam a nossa linguagem, têm as nossas fraquezas e as nossas forças. Seu universo não é mais belo nem mais edificante que o nosso. Mas eles, pelo menos, perseguem até o fim o seu destino. (Id., ibid., p.302)

Na vida real “desejamos que o amor dure e sabemos que ele não dura; se até mesmo, por milagre, ele tivesse que durar toda uma vida, estaria ainda incompleto” (Id., ibid., p.300). E é por isso mesmo que:

Talvez, nesta insaciável necessidade de durar, compreenderíamos melhor o sofrimento terrestre, se o soubéssemos eterno. Parece que as grandes almas, às vezes, ficam menos apavoradas com o sofrimento do que com o fato de ele não durar. Na falta de uma felicidade inesgotável, um longo sofrimento constituiria ao menos um destino. Mas não é assim, e nossas piores torturas um dia chegarão ao fim. Certa manhã, após tanto desespero, uma irreprimível vontade de viver vai nos anunciar que tudo acabou e que o sofrimento não tem mais sentido que a felicidade. (Id., ibid., p.300)

A obra de arte, neste sentido, eterniza o devir. Torna eterno aquilo que é efêmero. “Estranha é a pintura que nos agrada pela semelhança com objetos que não conseguiriam nos agradar” (Id., ibid., p.295), diz-nos Delacroix, citado pro Camus. E explica o filósofo que “esses objetos não conseguiriam nos agradar, pois não os vemos: eles são encerrados e negados num perpétuo devir” (Id., ibid., p.295). A escultura, “maior e mais ambiciosa de todas as artes”, segundo Camus, é a procura do semblante que irá resumir todos os gestos e olhares do mundo. Não se trata de uma imitação do semblante ou do olhar real, mas sim se trata de “estilizar e capturar em uma expressão significativa o êxtase passageiro dos corpos ou o redemoinho infinito das atitudes” (Id., ibid., p.295).

A criação artística nega o devir e o exalta ao mesmo tempo, fixando-o. Ela prescinde do devir. Nela cria-se um mundo que, se quiser, pode fazer o sofrimento durar até a morte, no qual as paixões nunca são distraídas e os seres ficam entregues à idéia fixa e estão sempre presentes uns para os outros. Nele, diz-nos Camus, “o homem finalmente dá a si próprio a forma e o limite tranqüilizador que busca em vão na sua contingência” (Id., ibid., p.303). Lembremos agora do que disse Camus sobre o desejo do homem em relação a um mundo melhor: “não basta viver, é preciso um destino, e sem esperar pela morte. É justo, portanto, dizer que o homem tem a idéia de um mundo melhor do que este. Mas melhor não quer dizer diferente, melhor quer dizer unificado” (Id., ibid., p.301).

A criação artística não pretende mudar, mesmo tendo a idéia de um mundo melhor do que este. Ela não pretende se esquivar do mundo, mas unificá-lo. Por pretender esquivar-se do mundo, entende-se porque o pensamento revolucionário prefere a virtude à beleza e, por isso, nega a arte. Na criação artística, além da recusa do mundo, muito distante da negação total, há também um consentimento. A contemplação artística arrisca-se a equilibrar a ação, a beleza e até mesmo a injustiça. Pois tudo isso faz parte do mundo. Até mesmo, como afirma Camus, em certos casos a beleza é em si mesma uma injustiça sem recurso.

Voltemos ao niilismo, ponta-pé inicial para os movimentos revolucionários. Nietzsche podia recusar qualquer transcendência, fosse ela moral ou divina, assim como Max Stirner o fez, dizendo que essa transcendência consistia numa calúnia ao mundo e à vida. Mas, como diz-nos Camus, “talvez haja uma transcendência viva, prometida pela beleza, que pode fazer com que esse mundo moral e limitado seja amado e preferido a qualquer outro” (Id., ibid., p.296). Esta beleza, advinda da criação artística, pode fazer com que esse mundo - moral e limitado - seja amado e preferido a qualquer outro. O pensamento revolucionário não quer amar este mundo “moral e limitado”; quer transformá-lo. Quer torná-lo ilimitado, justo e, aí sim, talvez, belo. A beleza é indiferente. A revolução nada cria, ela destrói. Ela nega o mundo, esquiva-se dele, rumo a um mundo imaginário, ideal, conceitual. Enfim, esquiva-se da realidade em nome de um mundo conceitual, ideal: niilista. Nega-se o mundo real em prol de um mundo ideal.

            No âmbito da criação, até em meio à intensa desgraça e miséria, o mais alto brado de dignidade humana pode surgir; a criação artística reencontra no mesmo caminho o homem, a realidade e a beleza. Camus conta-nos sobre um tal Ernst Dwinger, que em seu Diário Siberiano fala de um tenente alemão que, preso há anos num campo de concentração imundo e silencioso, em meio ao inferno e aos farrapos, construiu para si um piano feito com pedaços de madeira, com o qual compunha músicas que só ele era capaz de ouvir. Desta forma, diz-nos Camus, misteriosas melodias e cruéis imagens de uma beleza escondida podem sempre surgir em meio ao crime e à loucura, e estas imagens comprovam justamente a grandeza humana. Além de qualquer idealismo, qualquer condição, tal como Sísifo e seu erguer a rocha, através da arte “pode-se recusar toda a história, aceitando, no entanto, o mundo das estrelas e do mar”, ou seja, o mundo humano, da miséria ou da riqueza, mas digno.  Digno por se manter humano. Como será tratado no próximo capítulo, é dessa dignidade que nasce a possibilidade da moral camusiana no panorama do pensamento mediterrâneo.

Neste contexto, os que querem ignorar a natureza e a beleza estão condenados a banir da história que desejam construir a dignidade do trabalho e da existência. E o que é a vida do homem senão ser no trabalho? Qual dignidade puramente humana pode haver senão a do trabalho criativo e da existência plena? A virtude é impossível sem a beleza, sem essa “transcendência natural” do qual fala Camus.

Em seu trabalho de conclusão de seu curso de filosofia, intitulado, Metafísica cristã e neoplatonismo, Camus afirma que “a filosofia de Plotino é um ponto de vista de artista. Se as coisas se explicam, é porque as coisas são belas” (Apud, TODD, op. cit., p.112). Após esta análise, podemos afirmar que Camus não está confundindo beleza e verdade como se fossem sinônimos[12]. O que podemos afirmar é que a beleza dos seres e da natureza encarna um valor fundamental, e a partir desse valor fundamental o homem pode se orientar. “Pode-se recusar eternamente a injustiça sem deixar de saudar a natureza do homem e a beleza do mundo?”, pergunta-se Camus. Ele mesmo responde que sim, pode-se. Aliás, mais que isso:

Esta moral, ao mesmo tempo insubmissa e fiel, é em todo o caso a única a iluminar o caminho de uma revolução verdadeiramente realista. Ao manter a beleza, preparamos o dia do renascimento em que a civilização colocará no centro de sua reflexão, longe dos princípios formais e dos valores degradados da história, essa virtude viva que fundamenta a dignidade comum do mundo e do homem. (CAMUS,2003, p.317).

 Para Camus, é no pensamento mediterrâneo onde se encontra o respeito por esse valor fundamental, essa “virtude viva”. Veremos como se explicita o pensamento mediterrâneo no próximo tópico.

4.3 O pensamento mediterrâneo: a comunhão do homem sem Deus mas não sem o sagrado

            “O cristianismo só fará dar corpo à idéia, tão pouco grega, no entanto, de que o problema para o homem não é aperfeiçoar sua natureza, mas escapar a ela” (Apud, TODD, op. cit., p.112); afirma Camus em sua Metafísica cristã e neoplatonismo. Há então uma contraposição entre a idéia grega e a idéia cristã de homem e o que ao homem compete. Veremos agora que esta concepção cristã está no cerne do niilismo contemporâneo, e em oposição ao pensamento mediterrâneo, que logo será elucidado.

Segundo nossa análise, Camus identifica a ideologia alemã como sendo a base para o niilismo contemporâneo, a desmedida e, conseqüentemente, o crime lógico[13]. Remontando às origens da ideologia alemã, podemos afirmar que ela é na verdade herdeira de outra concepção sobre a natureza. Na ideologia alemã: “se encerram vinte séculos de luta vã contra a natureza, primeiro em nome de um deus histórico e, em seguida, da história divinizada” (CAMUS, 2004, p 343).

            Ou seja, a ideologia alemã é herdeira do cristianismo. O cristianismo apesar de ter conseguido conquistar sua catolicidade por meio da assimilação do pensamento grego, fez perder no homem aquele contrapeso: o “espírito que mede a vida”, que é a natureza. O pensamento solar, ou mediterrâneo, é herdeiro daquela reflexão na qual, desde os gregos, a natureza se equilibra com o devir. Na verdade, o conflito que se dá no século XX não é apenas resultado das ideologias alemãs da história, que pregam o paraíso na própria história; ou o pensamento cristão, que prega o paraíso num além distante da vida humana: as duas são, de certa forma, cúmplices. Quando a Igreja dissipou sua herança mediterrânea, deu mais valor à história do que à natureza. A verdadeira oposição que se apresenta diante dos sonhos alemães é a tradição mediterrânea, esta que acentua a natureza em detrimento da história. Por isso,

A história da primeira Internacional, em que o socialismo alemão luta sem trégua contra o pensamento libertário dos franceses, dos espanhóis e dos italianos, é a história das lutas entre a ideologia alemã e o espírito mediterrâneo. (Id., ibid., p.342)

            Não é então de se espantar o desprezo pela vida, tanto humana quanto da natureza, no seio do século XX. A filosofia que pretende não mais interpretar o mundo, mas sim transformá-lo, só pode ser fruto de um desrespeito ao que é natural. O homem desmedido, desprezando a vida e a natureza, perdeu seu caráter de sagrado. E, já sem seu caráter de sagrado, diz-nos Camus que:

           

A natureza, que deixa de ser objeto de contemplação e de admiração, não pode mais ser em seguida senão a matéria de uma ação que visa transformá-la. [...] Expulso Deus [do universo histórico], nasce a ideologia alemã, na qual a ação não é mais aperfeiçoamento, mas pura conquista, isto é, tirania. (Id., ibid., p.343)

            O pensamento mediterrâneo, partindo da realidade, da natureza e do limite do homem, apóia-se no real para encaminhar-se a um combate rumo à verdade, tal como vimos acontecer na criação artística. A revolta medida, presente no pensamento mediterrâneo, realiza o mesmo movimento da criação; ambos prescindem do real, partem dele, e, apesar de negá-lo em certos aspectos, não se desviam dele. Enquanto a revolução do século XX pretende acreditar-se apoiada na economia, sendo na verdade uma política e uma ideologia, o pensamento mediterrâneo parte do real. A ideologia alemã parte do absoluto para interpretar e, mais que isso, modelar a realidade. A revolta, pelo contrário,  quer uma revolução, mas uma revolução em favor da vida e da realidade. Por isso o sindicalismo revolucionário[14], fruto do pensamento mediterrâneo, apóia-se primeiro nas realidades mais concretas, como a profissão e a comunidade, onde se dá a existência concreta, o “coração vivo das coisas e dos homens”, nas palavras de Camus. No contexto do pensamento mediterrâneo, é a política quem deve se submeter a essas verdades, e não o contrário. E como tal se daria?

            A política não pode pretender ser religião, nem a história ser erigida como objeto de culto. É certo que, talvez, cada individuo sinta sede de um absoluto, e busque, por todos, esse absoluto que se perdeu das religiões e que não é alcançado, muito menos criado, através da história. Aí então, cabe à sociedade e à política “o encargo de ordenar os negócios de todos para que cada qual tenha o lazer e a liberdade dessa busca comum” (Id., ibid., p.346).

A exemplo do que ocorreu nos paises escandinavos, onde a política “dos princípios formais e dos valores degradados da história”, capitalistas ou comunistas, foi deixada de lado, em nome de uma política mais ligada ao concreto, às necessidades reais, a história não pode ser tomada como algo mais que uma oportunidade que pode, e deve, ser tornada profícua se tratada por uma revolta vigilante, que não se deixe confundir com niilismo.

O poeta francês René Char, citado por Camus, escreveu que “a obsessão pela colheita e a indiferença em relação à história são as duas extremidades de meu arco” (Id., ibid., p.346). E se o tempo da história não for feito do tempo da colheita, o que seria essa história? Mera fantasmagoria histórica e ideológica, distante do real, onde o homem não encontra mais seu quinhão, encontrando somente uma sombra fugaz e opressora do real. Como afirma Camus:

Quem se entrega a essa história não se entrega a nada e, por sua vez, nada é. Mas quem se dedica ao tempo de sua vida, à casa que defende, à dignidade dos seres vivos, entrega-se à terra, dela recebendo a colheita que semeia e nutre novamente. (Id., ibid.,p.346).

Dedicar-se ao tempo de sua vida, à casa que defende e à dignidade dos seres vivos; nenhuma sabedoria, se quiser entregar-se à terra e dela receber a colheita, pode pretender mais que isso. O mal - a mortalidade injusta diante dos homens e dos seres inocentes - continuará existindo mesmo na sociedade perfeita; a injustiça e o sofrimento permanecerão, e por mais limitados e combatidos que possam ser, jamais deixarão de ser um escândalo. Escândalo, aliás, insolúvel. O absurdo sempre existirá rondando o coração dos homens, e a injustiça continuará ligada ao sofrimento, até no mais merecido aos olhos dos homens. O que nos cabe é a força de não sucumbir ao absurdo e ao sofrimento.

Quando Char nos fala da cura do pão, em que finalmente o pão reencontraria o seu sabor de amizade, é possível compreendermos Camus quando diz que “a revolta não pode prescindir de um estranho amor” (Id., ibid., p.348). Quem se encontra desprovido do recanto divino ou histórico, encontra-se diante apenas de outros homens. E, “aqueles que não encontram descanso nem em Deus, nem na história, estão condenados a viver para aqueles que, como eles, não conseguem viver: para os humilhados” (Id., ibid., p.348).

 Aí o movimento mais puro da revolta se reencontra com o dilacerante grito de Karamazov: se não forem salvos todos, de que vale a salvação de um só? O sabor de amizade é recuperado no pão do qual nos fala Char. Camus relata o caso dos condenados católicos, presos nas masmorras espanholas na época da publicação de seu O Homem Revoltado, que recusavam a comunhão por ela ter sido tornada obrigatória pelos padres do regime em certas prisões. Também esses católicos, tal como Karamazov, recusam a salvação, se seu preço é a injustiça e a opressão. Da revolta surge então uma “louca generosidade”, na expressão de Camus, que oferta sem hesitar sua força de amor, capaz de manter a cabeça erguida e os olhos abertos até diante da morte. Sua coragem e sua honra nascem do fato de nada calcularem, de distribuírem tudo o que podem na vida presente, e aos irmãos vivos. Camus, contra os ideólogos e pregadores de realidades que ainda estão por vir, afirma que é desta forma que a revolta é pródiga para os homens vindouros: ela entrega tudo o que tem no presente. Nas palavras de Camus, “a verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente” (Id., ibid., p.348).

Podemos então, afirmar que não é possível separar o sentimento de revolta e a vida. O pensamento mediterrâneo se eleva sobre a Europa dilacerada pela desmedida. A revolução sem honra nem coragem, amparada apenas no cálculo e no argumento filosófico, prefere o homem abstrato ao homem real, de carne e osso, e, assim, nega tantas vezes quanto for necessário a existência; além de colocar, no lugar do amor e do “pão com sabor de amizade”, o ressentimento. Essa revolta contaminada pelo ressentimento perde o valor da vida, corre para a destruição e serve de álibi para os pequenos rebeldes, “embriões de escravos”, se oferecerem a qualquer tipo de servidão. O desespero de ser homem sem qualquer amparo sem ser o humano, seu imenso desejo de servidão sem mais ter a quem servir, os levaram à desmedida; na falta de uma divindade melhor, acabaram tendo que divinizarem a si mesmos. Mas o pensamento mediterrâneo nos ensina a medida do homem, mortal sob o sol, que nos faz “aprender a viver e a morrer e, para ser homem, recusar-se a ser deus” (Id., ibid., p.350). Homens entre homens, a recusa à divindade nos põe de frente às nossas lutas e destinos comuns, faz-nos compartilhar esse destino. Todos respiramos sob o mesmo céu, sofremos da mesma injusta e injustificável mortalidade; disso nasce a certeza de compartilhamos o mesmo destino diante de um mesmo mundo. Daí, “nasce então a estranha alegria que nós ajuda a viver e a morrer e que, de agora em diante, nos recusamos a adiar para mais tarde” (Id., ibid., p.350).

No final das trevas postas pelo niilismo, podemos divisar uma espécie de luz; basta lutarmos para que ela exista. A revolta, como já foi dito, sem pretender tudo resolver, pode, e isso é certo, pelo menos tudo enfrentar. A vida reconquista então seu antigo valor. O homem, seu sofrimento, suas alegrias, o sabor de amizade, o tempo da colheita; nasce então uma verdadeira compaixão. O homem se reencontra com o sagrado. Para Camus, sem negar o homem, o mundo e a natureza, mas em meio aos escombros do niilismo, podemos preparar então um novo renascimento.

Como epígrafe de seu O Homem Revoltado, Camus escolheu uma citação de Hölderlin em sua obra A morte de Empédocles. Escreve Hölderlin:

E abertamente entreguei meu coração à terra séria e doente, e muitas vezes, na noite sagrada, prometi amá-la fielmente até a morte, sem medo, com a sua pesada carga de fatalidade, e não desprezar nenhum de seus enigmas. Dessa forma, liguei-me à fatalidade por um elo mortal.

O renascimento além do niilismo do qual nos fala Camus é o ato de ligar-se à fatalidade por um elo mortal. Ligar-se a um estranho sagrado que perpassa todos os homens, faz nascer uma verdadeira compaixão de homens que sofrem o mesmo destino. Sem deuses, mas não sem o sagrado, ligamo-nos dessa forma à fatalidade – na qual todos existimos - por um elo mortal.

CONCLUSÃO    

“É preciso imaginar Sísifo feliz”, assim Camus termina seu livro O Mito de Sísifo, do qual tratamos na primeira parte deste trabalho.E agora, ao final da reflexão sobre a moral camusiana, é Sísifo, símbolo máximo do pensamento mediterrâneo e da proposta moral de Camus, que encontramos.

Sísifo, condenado pelos deuses a subir com uma pedra montanha acima e, logo depois de concluído seu trabalho, vê-la rolar montanha abaixo, ilustra com seu mito a vida de um homem sem Deus, condenado a subir suas pedras durante a vida, para depois, como quem executa um trabalho inútil, morrer e tornar vãs suas pedras carregadas. E o que Sísifo ensina é que não é pelo fato da existência ser absurda que o homem revoltado deve sucumbir à tentação de tudo negar. Além do niilismo, tal qual Sísifo em seu mito – símbolo máximo do pensamento e moral mediterrâneos - nos deparamos com nossa rocha, nossa montanha, mas também nos deparamos com a nossa própria força, que nos torna capazes de subir as rochas; apesar delas sempre tombarem. Tornamo-nos nós mesmos, Sísifos na base da montanha, e o que resplandece no rolar da rocha não é o fracasso, mas sim a força que torna possível às rochas serem carregadas. Distante de fantasmagorias que não nos dizem nada, mortais e humanos, somos nós próprios a rocha, a montanha e o suor que nos faz maiores que a rocha e a montanha. O destino torna-se nosso e, por um movimento estranho ao idealismo, tornamo-nos maiores que nosso próprio destino, reencontrarmos o valor da vida nela mesma.

Partindo da negação feita pelo mundo ao homem, e o conseqüente sentimento do absurdo, chegando então ao “não” do homem ao mundo, através da revolta, Camus encontra então um “sim” originário e último à vida, aos seres, à terra e à natureza, que as duas negações, com o consentimento subjacente do qual nos fala Camus, e que afirma a medida do homem, assumem. Surge assim o "estranho amor", do qual a revolta não pode ser profícua sem estar voltada a ele.

Sendo assim, é preciso, incondicionalmente, preservar o valor da vida e do humano; a vida torna-se um valor inestimável, intocável. Surge deste modo um valor sagrado da existência. E é por este valor que o homem deve se guiar e reverenciar. Acima de qualquer idéia, ideologia, filosofia ou política, há a vida, e é em prol dela que a cultura humana deve trabalhar.

Camus, como foi possível deduzir, é pessimista quanto ao destino humano a nível histórico e político, mas é otimista quanto ao homem. E, ele mesmo explica, citado por Olivier Todd, que não é otimista “em nome de um humanismo que sempre me pareceu limitado, mas em nome de uma ignorância que tenta não negar nada”. E esta ignorância não diz respeito à falta de lucidez, mas, pelo contrário, à lucidez dos limites da razão. Sobre estes limites, Camus, em 1957, às vésperas de lhe ser atribuído o Nobel de literatura, segundo relato de Olivier Todd, declarou:

Ao descer de um comboio, um jornalista perguntou-me se me ia converter. Respondi: não. Nada mais que a palavra: não […] Tenho consciência do sagrado, do mistério que há no homem e não vejo razões para não confessar a emoção que sinto perante Cristo e os seus ensinamentos. Receio, infelizmente, que em certos meios, em particular, na Europa, a confissão de uma ignorância ou a confissão de um limite ao conhecimento do homem, o respeito pelo sagrado, surjam como fraquezas. Mas se são fraquezas, assumo-as com força. (Apud, TODD, p.711)

            A partir de então, cabe ao homem ter consciência do sagrado, do mistério que há no homem e que até, por um movimento contrário à contemporaneidade, condiz com os ensinamentos de Cristo; e isto sem precisar falar em Deus.  O homem surge como dimensão sagrada, e sem se divinizar. O sagrado do homem se dá por sua participação na natureza e no devir, pela compaixão que nasce da lucidez de se descobrir participante do mesmo destino limitado dos homens. Homem entre homens, “um diz ao outro que não é Deus”, e, afirma Camus, “aqui se encerra o romantismo”. Aqui se encerra o romantismo e inicia-se uma nova perspectiva moral. Ancorada no respeito à dignidade humana e no respeito à natureza, ao mundo e ao devir como espaços da existência que superam e vão além da capacidade de conhecimento do homem. Coloca o homem de novo diante de um sagrado, e lhe dá condições para respeitar este sagrado, do qual o homem faz parte.

            E, tal como disse Camus, se reconhecer um limite ao conhecimento humano, se confessar nossa ignorância e se respeitar o sagrado e a dignidade humana forem tomados como fraquezas, então cabe a nós abraçarmos e as assumirmos com todas as nossas forças. Neste estranho paradoxo – assumir as fraquezas com toda a força – nasce então uma moral completamente humana; e esta moral, apesar de limitada e medida, tem a força de colocar, até acima da morte, a coragem de se lutar por uma felicidade, mesmo que efêmera, num mundo irracionável e injusto, onde até a mortalidade e a beleza, escandalosamente, andam de mãos dadas, anulando-se e reconciliando-se num eterno devir que ultrapassa o homem, mas do qual o homem também faz parte. É preciso nos imaginar felizes.

REFERÊNCIAS

ARRUDA e PILETTI, Jobson e Nelson. Toda a história: história geral e história do Brasil. São Paulo: Ática, 2001

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Tradução Desidério Murcho, 1997.

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Sobre o autor
Mauricio Possa Lopes

Formado em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei (2003-2008) e Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves (2010-2014). Advogado. Milita na cidade de São João del-Rei/MG.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Monografia apresentada como requisito para obtenção do título de bacharel em Filosofia, sob a orientação do Professor João Bosco Batista, no curso de graduação em Filosofia da Universidade Federal de São João Del Rei.

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