Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. FAMÍLIA. 3. PRINCÍPIOS JURÍDICOS DO DIREITO DE FAMÍLIA. 3.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3.2. Princípio da Igualdade. 3.3. Princípio da Solidariedade Familiar 3.4. Princípio da Proteção Integral a Crianças, Adolescentes e Idosos. 3.5. Princípio da Afetividade. 3.6. Princípio da Boa-Fé nas Relações Familiares. 3.7. Direitos fundamentais nas relações familiares. 4. FILIAÇÃO. 4.1. Do reconhecimento da filiação. 5. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. 5.1. Histórico. 5.2. A filiação socioafetiva no ordenamento jurídico. 5.3. Posse de estado de filho e filiação socioafetiva. 5.4. Meios de prova da filiação socioafetiva. 5.5. Do desfazimento do vínculo socioafetivo. 5.6. Da legitimidade ativa para pleitear o reconhecimento da filiação socioafetiva. 5.7. Consequências jurídicas do reconhecimento da filiação socioafetiva. 6. DA PETIÇÃO DE HERANÇA. 6.1. Das legitimidades ativa e passiva e da possibilidade de cumulação. 6.2. Dos efeitos da sentença. 6.3. Do prazo de prescrição. 7. A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NOS TRIBUNAIS. 7.1. Recurso Especial nº 1.189.663 - STJ. 7.2. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 1.138.467 - STJ. 7.3. REsp 54101-03.2008.6.18.0032 - TSE. 7.4. Apelação Cível n. 70045659554. - TJRS. 7.5. Apelação Cível n. 70023383979. - TJRS. 8. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. ANEXO.
1. INTRODUÇÃO
Quando se observa a grande quantidade de pessoas que, por diversas razões da vida, não são “criadas” por seus pais biológicos, muitas vezes representando uma radical mudança em seus destinos, passa-se a ser instigado pelo tema da paternidade socioafetiva, o qual envolve elementos como amor, rejeição, carinho, abandono, afeto, vontade, patrimônio, entre outros. Sua importância é descrita nas palavras da Ministra do STJ, Nancy Andrighi1, no julgamento do REsp 878.941, em 17.04.2007:
A paternidade socioafetiva pode estar hoje presente em milhares de lares brasileiros. O julgador não pode fechar os olhos a esta realidade que se impõe e o direito não deve deixar de lhe atribuir efeitos.
Sendo a criança legal ou ilegalmente adotada, os contornos da relação jurídica, principalmente após a morte dos adotantes, são mais facilmente resolvidos, pois a legislação já equiparou os filhos adotados aos naturais, entretanto os atritos ocorrem quando não há a figura da regular adoção e tudo passa a ser matéria de prova, de interpretação, de subjetivismo e de discussões que normalmente são diretamente proporcionais ao patrimônio envolvido.
A imputação de consequências jurídicas ao relacionamento de pais e filhos não unidos por vínculos biológicos tampouco providos de formalidades jurídicas passou por fases que vão desde a absoluta ignorância até a atual, em que está deixando de ser apenas um fato social e passa a emergir em “(...) crescente conformação como fato jurídico (...)”2.
Com a desmatrimonialização da família, principalmente após o advento da Constituição Federal de 1988, acostumou-se a falar em direito das famílias, dado o reconhecimento de outras formas que não apenas a fundada no casamento, como a monoparental, a anaparental, a pluriparental etc. Isso possibilitou a afirmação de que os enlaces jurídicos não são imprescindíveis ao reconhecimento de direitos, com consequência direta também nos vínculos de filiação.
O primeiro capítulo desta obra conceitua a família, utilizando explicações religiosa, filosófica, psicológica, poética, léxica, jurídico-doutrinária e legal. Desde a tentativa de conceituação jurídica do instituto familiar, é possível notar a relevância da sempre citada socioafetividade.
No segundo capítulo, explana-se acerca dos princípios que regem e orientam o moderno Direito de Família. Discorreu-se a respeito do Princípio da Dignidade Humana; do Princípio da Igualdade; do Princípio da Solidariedade Familiar; do Princípio da Proteção Integral a Crianças, Adolescentes e Idosos; do Princípio da Afetividade e, por fim, do Princípio da Boa-Fé nas relações familiares.
No capítulo seguinte, adentramos no assunto da filiação, da igualdade prevista na Constituição Federal, da proibição de qualquer designação discriminatória e das maneiras de reconhecimento da filiação.
No capítulo quarto, chega-se ao ponto principal do tema, tratando especificamente da filiação socioafetiva. Inicia com um histórico e parte para situar o assunto no ordenamento jurídico. São feitas considerações acerca da posse de estado de filho e da filiação socioafetiva. Os meios mais usuais de prova são tratados e também as consequências jurídicas decorrentes do reconhecimento da filiação socioafetiva. A possibilidade de desfazimento do vínculo socioafetivo e a legitimidade ativa ad causam finalizam o tópico.
Por fim, o quinto e último capítulo faz um apanhado de algumas decisões do STJ e também de outros tribunais, comentando-se os julgamentos que trazem relevantes explicações sobre o assunto e demonstram como tem sido aplicada a filiação socioafetiva.
2. FAMÍLIA
Família é instituto criado por Deus. No livro de Gênesis (2:18), que é livro sagrado tanto para o cristianismo como para o judaísmo, Deus diz: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para estar com ele”. Assim, após criar a mulher, apresenta-a ao homem e ordena serem uma só carne e se multiplicarem.
Filósofos também já reconheceram e afirmaram o homem como um ser sociável e carecedor do convívio e da interação com outros semelhantes. Aristóteles3 afirmou, em sua obra “Política”:
As primeiras uniões entre pessoas, oriundas de uma necessidade natural, são aquelas entre seres incapazes de existir um sem o outro, ou seja, a união da mulher e do homem para perpetuação da espécie. Isto não é resultado de uma escolha, mas nas criaturas humanas, tal como nos outros animais e nas plantas, há um impulso natural no sentido de querer deixar depois de um indivíduo um outro ser da mesma espécie.
Segundo os psicólogos, a personalidade de um indivíduo é formada, principalmente, mas não exclusivamente, nos primeiros anos de vida. Sendo, por isso, de fundamental importância o convívio familiar saudável, a figura paterna a prestar segurança e apoio e a materna com o carinho e cuidados característicos, como citado por alguns teóricos:
Os psicólogos atualmente concordam que a personalidade começa e se formar a partir do nascimento da criança. Daí por diante se inicia um aprendizado contínuo, sempre na dependência de genitores ou tutor4.
A formação da personalidade tem início a partir do nascimento. Assim, os primeiros anos de vida de uma pessoa são decisivos para a gênese de sua futura personalidade. Neste período são delineadas as principais características psíquicas, a partir da relação da criança com os pais, pessoas próximas, objetos e meio ambiente5.
Até poetas e poetisas costumam se aventurar na tentativa de definir a família e sua importância. Pede-se vênia para transcrever a interessante descrição feita por Noélio Duarte6:
FAMÍLIA
Família.
Família...
Todos temos,
Dela viemos.
Nela nascemos...
Então crescemos.
Para uns,
a família é só o pai,
para outros, só a mãe,
muitos só têm o avô...
Mas é família:
sinônimo de calor!
Tem família
que é completa,
repleta,
discreta,
seleta,
aberta...
Outra,
é engraçada,
atiçada,
afinada,
engrenada,
esforçada,
empenhada...
Mas tem família
complicada,
indelicada,
desajustada,
desacertada,
debilitada...
Família...
Família é assim:
lá não temos capa
– nada nos escapa!
Máscaras, como usar?
Não, não dá prá enganar!
Às vezes queremos fingir,
mas isto é apenas mentir...
E , é lá dentro de casa
que surge, cresce, aparece,
o lobo voraz,
o urso mordaz,
elefantes ferozes,
(com trombas e tudo)
leões velozes
com unhas e dentes
inclementes...
Família...
Família é lugar
onde convivem os diferentes:
um é risonho, outro tristonho;
um é exibido, outro inibido;
um é calado, outro exagerado;
um é cabeludo, outro testudo;
um é penteado, outro descabelado...
Família...
Família é assim:
nunca é possível contentar,
pois onde há diferenças,
haverá desavenças.
como a todos agradar?
Mas entre todos os valores
Cultivados entre nós
Há algo como uma voz
Muito enfática a dizer:
“Cultive a educação,
faça lazer, haja afeição;
dê carinho, tudo aos seus!
Mas o maior valor
– maior até que o amor –
é cultivar Deus!”
Então a família, nota-se, foi criada por Deus; é necessária ao homem; e é de suma importância no desenvolvimento da personalidade. Mas o que vem, efetivamente, a ser a família? O Dicionário Brasileiro Globo7 define família nos seguintes termos:
Família, s. f. Marido, mulher e filhos; pessoas do mesmo sangue; conjunto de pessoas que vivem na mesma casa; descendência; linhagem; estirpe; raça (...) (do lat. família.)
Ou seja, o dicionário define tanto a família moderna, que hoje é reconhecida como aquela formada pelos pais e pelos filhos, como também a família de outrora, que abrangia toda uma descendência, por sangue ou adoção. Michelle Perrot8, ao tratar das funções da família, define-a como sendo uma “rede de pessoas e conjunto de bens, é um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico, herdado e transmitido”.
Portanto, por família pode entender-se desde toda uma linhagem ou descendência (que é seu sentido amplo, lato), como também apenas os pais e os filhos (sentido mais atual, stricto). Juridicamente é impossível formular um conceito único e absoluto para família. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona9 afirmam:
Não é possível apresentar um conceito único e absoluto de Família, apto a aprioristicamente delimitar a complexa e multifária gama de relações socioafetivas que vinculam as pessoas tipificando modelos e estabelecendo categorias.
Apesar dessa dificuldade, alguns autores arriscaram-se nessa tarefa, cada um com seu acerto e completando o que já fora definido por outro.
Os doutrinadores reconhecem que o conceito jurídico de família se desenvolveu ao longo dos anos, partindo da família sacralizada, patriarcal, “em bloco”10, constituída exclusivamente pelo matrimônio, até atualmente chegar à definição da família informal, unida pelo afeto (socioafetividade), deixando de ser “família-instituição” para se tornar “família-instrumento”, “(...) voltada para o desenvolvimento da personalidade de seus membros”, conforme nos ensina José Bernardo Ramos Boeira11, ou, nos dizeres de Giselle Câmara12, “(...) passando a ser lugar de realização e bem-estar”.
Acerca dessas mudanças verificáveis nas famílias, interessante a descrição feita por Arlindo Mello do Nascimento13, em seu trabalho apresentado ao XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais:
Ao olharmos o retrato das famílias atuais (...) poderemos nos deparar com algumas situações que deixariam nossos avós admirados: aquele que parece ser o pai é o padrasto; a moça com uma criança no colo não é a mãe, mas uma meia-irmã; os três jovens que dividem o mesmo teto são um casal e uma amiga; e aquela que parecia ser a mãe pode ser na verdade a namorada dela, etc. Além do mais, acrescenta Pereira, os domicílios são formados por gente morando sozinha, avós ou tios criando netos, casais sem filhos, “produções independentes” e outras tantas alternativas, como, por exemplo, os grupos de amigos que decidem morar junto para dividir um apartamento grande. E não se trata, no caso, de estudantes de orçamento apertado, mas de adultos com trabalho fixo e contracheque. Outras situações familiares, nos tempos atuais, estão cada vez mais freqüentes. Algumas, de temporárias, acabam virando definitivas, como o homem que se separa da mulher e volta a morar com os pais, “apenas por alguns dias”, ou então aquelas em que os filhos adultos permanecem residindo na casa dos pais e retardam ao máximo o grito de independência, prolongando a convivência familiar e saindo, apenas, quando julgam que está na hora de constituir uma nova família ou de morar sozinho.
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona14 definem família como “(...) o núcleo existencial integrado por pessoas unidas por vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes (...)”.
Para Arlindo Mello do Nascimento15:
A nova família, que anteriormente era definida pela obrigação e hoje é definida pelo afeto, cada vez mais aparece no cenário nacional, num debate em torno do presente e do futuro da instituição família e do valor da família diante da generalização do individualismo.
O autor Marco Túlio de Carvalho Rocha16, citando outros autores, descreve alguns conceitos de família. Faremos nossas suas citações:
No Direito moderno, família é o conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo de consangüinidade, cuja eficácia se estende ora mais largas, ora mais restritivamente, segundo as várias ligações. Outras vezes, porém, designam-se por família somente os cônjuges e a respectiva progênie17.
Ora significa o conjunto das pessoas que descendem de tronco ancestral comum, tanto quanto essa ascendência se conserva na memória dos descendentes, ou nos arquivos, ou na memória dos estranhos; ora o conjunto de pessoas ligadas a alguém, ou a um casal, pelos laços da consangüinidade ou de parentesco civil; ora o conjunto das mesmas pessoas, mais os afins apontados por lei; ora o marido e a mulher, descendentes e adotados; ora, finalmente, o marido, mulher e parentes sucessíveis de um e de outra18.
(...) família é uma instituição social, composta por mais de uma pessoa física, que se irmanam no propósito de desenvolver, entre si, a solidariedade nos planos assistencial e da convivência ou simplesmente descendem uma da outra ou de um tronco comum19.
Parece-nos que, para família, devem ser dadas duas definições, uma stricto sensu, abrangendo os pais (ou apenas um deles) e o(s) filho(s) – biológicos ou não; e outra lato sensu, que considere todos os parentes, sanguíneos ou por afinidade.
A legislação também procura fornecer suas definições. O inciso II do artigo 5º da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) diz que por família deve-se compreender “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”. A Constituição Federal protege a instituição familiar em diversos dispositivos (XXVI, art. 5º; LXIII, art. 5º; IV, art. 7º; XII, art. 7º; caput, art. 183; caput, art. 191; I, art. 203; caput, art. 205; II, par. 3º, art. 220; IV, art. 221; e caput, art. 226):
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;
(...) LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...) IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
(...) XII - salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei;
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(...)
§ 3º Compete à lei federal:
(...) II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: (...)
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Por fim, o maior reconhecimento da importância da família para a preservação da dignidade da pessoa humana e para o desenvolvimento da sociedade almejada por todos é feito pelo caput do artigo 226 da Carta Magna, que define a família como a “base da sociedade”.
Em simples palavras, o Constituinte elevou a família ao mais alto patamar de nossa sociedade, merecendo, por isso, especial atenção e proteção. Nada mais justo, pois, conforme explanado nas ponderações anteriores, a Família tem fundamental importância espiritual, filosófica, psicológica e social, ou seja, relevância extrema.