Paternidade socioafetiva: direitos dos filhos de criação

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18/05/2015 às 13:13
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4. FILIAÇÃO

O parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição Federal de 1988 “revolucionou o conceito de filiação”42 e, em cumprimento ao princípio constitucional da igualdade, desde então não se pode mais falar em filhos legítimos ou ilegítimos, adulterinos, espúrios, adotivos etc., pois deixou de interessar ao ordenamento jurídico a origem da filiação, passando todos a terem os mesmos direitos e obrigações.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

(...)

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (grifo nosso)

Até essa mudança de paradigma, havia tanto preconceito que o artigo 358 do CC de 1916, antes da alteração feita pela Lei 7.841/89, proibia o reconhecimento dos filhos incestuosos e dos adulterinos. Maria Berenice Dias43 lembra que Clóvis Beviláqua já alertava: “(...) a falta é cometida pelos pais e a desonra recai sobre os filhos (...)”.

Algo semelhante acontecia com o povo judeu, que reputava maldições aos filhos pelos erros dos pais, até que Deus, Jeová, por meio do profeta Jeremias, disse:

Naqueles dias, nunca mais dirão: os pais comeram uvas verdes, mas foram os dentes dos filhos que se embotaram. Ao contrário, cada um morrerá pela sua própria iniqüidade, e de todo homem que comer uvas verdes os dentes se embotarão. (Jeremias 31:30-31)

Portanto, os filhos não podem mais ser penalizados pelos erros dos pais. Se uma criança é fruto de uma relação adulterina ou incestuosa, não é ela quem deve ser afligida por isso. Ao direito importa mais, agora, a discussão do que é ser “pai”, “mãe” e “filho”. Quais são os papéis de cada um para atingir o objetivo primordial da família, que é o “o desenvolvimento da personalidade de seus membros”, conforme ensina José Bernardo Ramos Boeira44, ou, nos dizeres de Giselle Câmara Groeninga 45, para que seja “(...) lugar de realização e bem-estar.” Apenas para fins didáticos, atualmente se fala em filiação biológica (consanguínea) e não biológica, incluindo-se nessa a adoção, bem como a decorrente da socioafetividade e a da inseminação artificial heteróloga.

O elo que deve unir pais e filhos é o afeto, não sendo relevantes apenas aspectos biológicos ou de consanguinidade. O jurista Belmiro Pedro Welter46, em seu artigo “Igualdade entre Filiação Biológica e Socioafetiva”, transcreve interessante acórdão que confronta a verdade biológica com a verdade socioafetiva:

Um coito apenas determina para a vida inteira um parentesco, um coito entre pessoas que, às vezes, só tiveram aquele coito e nada mais! Desprezam-se anos e anos de convivência afetiva, de assistência, de companheirismo, de acompanhamento, de amor, de ligação afetiva. Daí não se tratar de um rematado absurdo e cogitação de que se pudesse pretender pôr limites à investigação da paternidade biológica, porque, quando se permite indiscriminadamente esta pesquisa, se está jogando por terra todo o prisma sócio-afetivo do assunto, e isto vale também para a paternidade biológica, não só para a adotiva. O pai e a mãe criaram um filho, com a melhor das criações possíveis, com todo o amor que se podia imaginar; passam-se os anos; 40 anos depois, resolve o filho investigar a paternidade com relação a outra pessoa, esbofeteando os pais que o criaram por 40 anos! E normalmente esses pedidos são tão despropositados que, falando em tese, muitas vezes têm a ver apenas com a cobiça: descobre que o pai biológico tem dinheiro, vai herdar, então despreza os pais que o criaram, que lhe deram toda educação, quer adotivos, quer biológicos – tidos como biológicos, e vai procurar o outro pai que teve o tal de coito, uma vez na vida.47

Assim, pais (pai e mãe) são aqueles que assumem essa condição perante a sociedade e, movidos pelo afeto, cumprem seus “papéis” (deveres) relacionados ao cuidado, à educação, ao desenvolvimento, à segurança, à exortação, à saúde, à cultura e outros previstos principalmente no CC e no ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.

A lei dispõe acerca das formas e dos procedimentos adequados para o reconhecimento dos filhos.

4.1. Do reconhecimento da filiação

Segundo José Bernardo Ramos Boeira48, “nem sempre existe uma perfeita coincidência entre a filiação natural e a jurídica”, motivo pelo qual para haver a filiação jurídica é necessário o ato do reconhecimento, explica o autor.

Pois bem, o artigo 1.596 do CC repete a mesma regra do parágrafo 6º do artigo 227 da CF/88 e o artigo seguinte (1597) trata das hipóteses em que o legislador presume como fruto do relacionamento conjugal os seguintes filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Trata-se de presunções juris tantum, pois admitem prova contrária, conforme artigos 1.599 e 1.601 do mesmo diploma civil, com exceção, obviamente, da hipótese de inseminação artificial heteróloga, na qual não é utilizado o sêmen do marido, pois nesse caso não poderá questionar a paternidade ao argumento de não haver ligação sanguínea, “(...) devendo ser superada a velha compreensão de identificar a paternidade com a ascendência genética”49.

Não havendo presunção da filiação, os artigos 1.607 a 1.617 do CCB estabelecem as regras aplicáveis ao reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, que poderá ser judicial ou extrajudicial.

Dispõe o artigo 1.609 ser irretratável o reconhecimento extrajudicial feito de forma livre, consciente e incondicional, embora à filiação socioafetiva não seja essa a mesma solução, pois, ainda que tenha se constituído a socioafetividade, se o pai ou mãe de “criação”, não quiser mais sê-lo, o STJ50 tem decidido no sentido de que deve ser priorizado o critério biológico nos casos em que a relação socioafetiva desapareceu ou nunca existiu.


5. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

5.1. Histórico

É interessante, num primeiro momento, um paralelo entre a adoção e a paternidade socioafetiva, pois, apesar de atualmente serem institutos jurídicos distintos, não fosse a existência de previsão legal específica para a adoção, certamente se assemelhariam.

Na paternidade socioafetiva faltam as formalidades jurídicas que estão presentes na adoção. Por outro lado, aproximam-se no que diz respeito à realidade fática do amor, do carinho, do zelo, do respeito e de outras que devem ser características da paternidade.

Um elemento é comum aos dois institutos, qual seja a vontade de ter como sendo seu filho de outrem. Em sendo cumpridas validamente as exigências legais, haverá a adoção. Do contrário, estar-se-á diante da relação socioafetiva, que pode ser tanto paterna quanto materna.

A adoção, segundo Caio Mário da Silva Pereira51, é “o ato jurídico pelo qual uma pessoa recebe outra como filho, independentemente de existir entre elas qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afinidade”.

Já por filiação socioafetiva se entende aquela construída sem as amarras da obrigação e do vínculo legal, mas com os laços do afeto, do “querer ser pai e filho”, da verdadeira correspondência àquilo que se espera a sociedade duma salutar relação paterno-filial.

A designação “filho de criação”, utilizada neste texto, não se refere àquela situação em que uma criança é entregue para que outra família a cuide, ajudando na educação e no sustento, porém sem recebê-la efetivamente no seio familiar como filha, porque estaria implícito que a qualquer momento poderia ter que “devolvê-la”, caso os pais conquistem condições econômicas para tanto. Não é essa a ideia.

O “filho de criação” a que nos referimos é aquele que se desliga de seus pais biológicos e é recebido como filho, não havendo no íntimo dos envolvidos ressalvas, restrições e dúvidas de que aquela criança faz parte daquela família, tanto nos momentos bons quanto nos difíceis. É, simplesmente, filho.

O Código de Hamurabi, vigente no período babilônico (1.700 a.C.), já tratava entre os artigos 185 e 195 do assunto: “Se alguém dá seu nome a uma criança e a cria como filho, este adotado não poderá mais ser reclamado” (art. 185). Isso demonstra o quanto é antigo o desejo de ter como seu filho uma criança com a qual não guarda laço sanguíneo.

Na Torá, livro sagrado dos judeus, cujo Pentateuco equivale aos cinco primeiros livros da Bíblia Cristã, ou seja, Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, são encontrados alguns casos semelhantes. Em Êxodo (2:1-10), por exemplo, há o relato da filha do Faraó que encontrou um filho de hebreus dentro de um cesto, num rio, e, movida de compaixão, cuidou da sua criação e depois o recebeu como filho, chamando-o de Moisés. Esse, posteriormente, foi usado por Deus para livrar o povo hebreu do Egito. A adoção também ocorreu na vida da rainha Ester, criada por seu tio, Mardoqueu (Ester 2:7), e depois Deus a usou para salvar o povo hebreu do extermínio.

No Novo Testamento da Bíblia, livro sagrado para os cristãos, relata-se que o filho de Deus, Jesus, foi concebido pelo Espírito Santo, sendo ainda Maria virgem e que José o recebeu como se seu Filho fosse (Mateus 1:18). E é por meio desse mesmo Jesus que todos que O receberem como único e suficiente Senhor e Salvador serão feitos filhos de Deus (João 1:12). Mas isso por adoção (Efésios 1:5 e Gálatas 4:5), porque até então somente os judeus tinham esse privilégio (Efésios 2:12), e foi após Jesus que os gentios (isto é, os demais povos) puderam desfrutar dessa paternidade Divina.

Durante a Idade Média, quando havia prevalência da Igreja Católica, pouco se praticava a adoção, do ponto de vista das formalidades jurídicas, dado o entendimento da família cristã com intuito preponderantemente procriativo e também porque diminuiria as doações pós-morte feitas pelos ricos em favor da Igreja, quando não tinham descendentes.

Com o Código Francês de 1792 (ou Código Napoleônico), o instituto voltou a ganhar relevância, principalmente pela necessidade de um sucessor ao Imperador Napoleão, porém foi tratado com um viés contratual.

Então, com o pleno desenvolvimento do ordenamento jurídico, atualmente não há semelhança, do ponto de vista legal, entre os institutos jurídicos da adoção e da paternidade socioafetiva.

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5.2. A filiação socioafetiva no ordenamento jurídico

A partir da Constituição Federal de 1988, o mundo jurídico, em especial o direito de família, passou por grandes transformações, principalmente no que diz respeito ao enfoque pelos quais determinadas relações devem ser analisadas.

Na seara da família, o “afeto” ganhou destaque, sendo considerado como o fator que distingue as relações jurídicas familiares das comerciais, empresariais, tributárias, trabalhistas etc. Enfim, trata-se de um importante princípio jurídico.

Diz-se que essa mudança se iniciou com mais força a partir da atual Constituição Federal, porque começaram a ser reconhecidos outros tipos de família, tais como a união estável, a monoparental, a anaparental e a homoafetiva, e também que acabou definitivamente a distinção entre os filhos legítimos dos demais.

No caso da união estável, a referência ao “intuito de constituir família” torna clara a importância do afeto na avaliação das atuais relações familiares. Na obra “O conceito sociológico de ‘Família’”, o autor Marco Túlio de Carvalho Rocha52 esclarece:

Ao tempo que o Direito de Família cingia-se à regulação do casamento e das relações de parentesco, a ênfase no elemento afetivo era desnecessária, porquanto este era pressuposto. Em outras palavras, não era preciso (como não é) afirmar a existência de vínculos afetivos entre cônjuges e parentes para a configuração jurídica dessas relações de família.

Mas o afeto passou a representar grande importância não somente para o conceito de família, pois, no que diz respeito à filiação, sua consideração trouxe uma relevante mudança, a tal ponto de ser o vínculo afetivo, ou a socioafetividade, considerado mais importante que o sanguíneo. Principalmente na vigência do CC de 1916, por diversos razões, inclusive a de trazer paz aos lares, “ser” o marido representava automaticamente ser o pai, com poucas possibilidades de discussão. Com o exame de DNA, que trouxe incontáveis vantagens e facilidades aos processos de investigação de paternidade, passou, dessa vez, a identificar a figura do genitor com a do pai.

Com a Constituição Federal elegendo o afeto como uma das características das relações familiares, não demorou a surgirem questionamentos acerca do que, exatamente, é ser pai. No Brasil, o precursor foi o ilustre João Batista Villela, com seu artigo publicado em 1979, muito antes da promulgação da atual Constituição Federal, intitulado “Desbiologização da Paternidade”53.

O CC atual trouxe disposições utilizadas para fundamentar a possibilidade e a legalidade dessa filiação não sanguínea. O inciso V do artigo 1.597 do CC reconhece a paternidade no caso de inseminação artificial heteróloga, ou seja, com sêmen de outro homem. O artigo 1.603 diz que a prova da filiação é a certidão de nascimento. O inciso II do artigo 1.605 também possibilita a filiação socioafetiva ao se referir a “veementes presunções resultantes de fatos já certos”. Por fim, o artigo 1.593 não deixa dúvida quando prevê o parentesco que pode ser resultante de “consanguinidade ou outra origem”. (grifo nosso)

Nota-se, então, a inexistência de uma disposição legal específica para a filiação socioafetiva, sendo, portanto, resultado de uma construção doutrinária e jurisprudencial em sintonia com os princípios constitucionais e com a doutrina da proteção ao “(...) melhor interesse da criança”. Esclarece Luciana Leão Pereira54:

Insta salientar que o ordenamento jurídico pátrio não reconheceu expressamente a posse de estado de filho e tampouco a paternidade socioafetiva, contudo admitem-se tais institutos desde que se façam trabalhos hermenêuticos em torno da legislação já existente.

A partir dessas mudanças legislativas, sob o enfoque da posse de estado de filho, começaram a surgir obras jurídicas tratando do assunto, mas infelizmente poucos elegiam a filiação socioafetiva como tema principal, sendo que normalmente apenas faziam referência a ela.

Nos tribunais brasileiros, a questão seguiu semelhantes passos, pois o assunto era tratado de maneira conjunta com outros temas e a socioafetividade usualmente servia como reforço de argumento. É bastante comum ver a referência à filiação socioafetiva junto com a adoção à brasileira ou em defesas de investigação de paternidade.

Atualmente, há vários trabalhos doutrinários voltados para a filiação socioafetiva, e nos tribunais crescem as demandas objetivando especificamente a declaração dessa filiação não sanguínea.

A designação “paternidade socioafetiva” passou a ser utilizada com mais frequência após o advento da Constituição Federal de 1988, dada a valorização do afeto como elemento nas relações jurídicas familiares, passando-se a construir um conceito de socioafetividade.

Mas, considerando que relação socioafetiva pode se estabelecer não apenas entre pai e filho, mas também com a figura materna, ganha preponderância o termo “filiação socioafetiva”. No direito estrangeiro, segundo ensinamentos de José Bernardo Ramos Boeira55, se as legislações “(...) não a admitem diretamente em seus textos legais, pelo menos não a afastam, considerando-a numa valoração provatória”.

Esclarece o referido autor que, na França, a socioafetividade é reconhecida através da posse de estado que tem “(...) dupla função, ou seja, podendo ser meio de prova e elemento constitutivo da própria filiação”. Na Espanha, a posse de estado é tratada diretamente, com reflexos nos procedimentos de reconhecimento e/ou impugnação de filiação. Na Bolívia a posse de estado pode ser usada, inclusive, para estabelecimento de filiação, no caso de filhos de pais não casados entre si. Na Venezuela, o artigo 233 do CC destaca a posse de estado a ser considerada nos casos de conflito de filiação. O artigo 1.871 do CC português estabelece que a “(...) paternidade presume-se: quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho pelo público”. Enfim, semelhantes disposições, em maiores ou menores intensidades, são repetidas nas legislações uruguaias, argentina, italiana, belga e soviética, conforme leciona o renomado professor.

5.3. Posse de estado de filho e filiação socioafetiva

O conceito de socioafetividade passou a ser trabalhado no Brasil principalmente após a Constituição Federal de 1988 e mais intensamente depois do CC de 2002, sendo que inicialmente era a “posse de estado de filho” a expressão jurídica mais difundida, como se fossem sinônimas.

Explica José Bernardo Ramos Boeira56 que por estado da pessoa entendem-se os:

Atributos que fixam a condição do indivíduo na sociedade, e se por um lado constituem fonte de direitos e de obrigações, por outro lado fornece as características personativas, pelos quais se identifica a pessoa, ou seja, é o retrato que a sociedade faz do indivíduo.

Boeira57 ainda esclarece que “o estado de pessoas é suscetível de posse”, a qual “(...) consiste em parecer frente aos olhos do público como possuí-lo realmente”. O Autor58, por sua vez, conceitua a posse de estado de filho:

É uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.

Maria Berenice Dias59 ainda pondera que “a noção de posse de estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade”.

Portanto, por posse de estado de filho, deve-se entender aquela situação fática em que uma pessoa, tanto na sociedade como na vida privada, demonstra – ou pelo menos aparenta – ser efetivamente filha de quem a cuida, educa, dá carinho etc. Enfim, assemelha-se, mas não se confunde ao conceito de filiação socioafetiva desenvolvida neste trabalho.

Apesar de muitos doutrinadores confundirem “posse de estado e filho” com “paternidade socioafetiva”, a autora Luciana Leão Pereira60, em sua dissertação de mestrado junto à PUC-Minas, demonstrou claramente a necessidade de uma diferenciação objetiva desses dois institutos.

Para ela, a posse de estado de filho é um dos requisitos da filiação socioafetiva, entendendo que para sua caracterização deverá ser somado o critério volitivo. É necessário ficar demonstrado, além do “nome, trato e fama” (da posse de estado de filho), também a inequívoca vontade de querer ser o pai/mãe e a correspondente vontade de querer ser o filho. Diz a autora:

Logo, é preciso ter cautela ao estabelecer uma relação socioafetiva, visto que, além de analisar a presença dos elementos constantes na posse de estado de filho, é necessário considerar criteriosamente a real vontade do pretenso pai sob pena de não revelar a verdadeira paternidade61.

O objetivo dessa averiguação das vontades envolvidas é evitar que seja declarada a filiação socioafetiva em situações em que a criança foi acolhida no seio familiar, não pela vontade de tê-la como filha, mas por piedade, solidariedade, bondade.

Alguns casais, para ajudar outros que normalmente se encontram em dificuldades, às vezes acabam acolhendo uma criança, não para tê-la como filha, mas para “criá-la”, dar a ela uma “oportunidade na vida”. Porém nunca foi estabelecido relacionamento paterno/materno-filial. Nesse caso, é impossível afirmar que houve estabelecimento de filiação socioafetiva. Apenas para ilustrar, guardadas as evidentes peculiaridades, é o caso de usucapião que jamais se aperfeiçoa se houver contrato de depósito, pois faltaria o animus domini.

Esse cuidado também se justifica para situações em que o “suposto(a) pai/mãe afetivo(a)” é o padrasto ou madrasta, ou esteja inserido na família sob qualquer outra condição, e o(a) mesmo(a) não tenha qualquer interesse em ser efetivamente o pai.

A partir desse entendimento, do critério volitivo, somente será possível o reconhecimento da filiação socioafetiva quando pai/mãe tem conhecimento da inexistência do vínculo biológico, pois, do contrário, haverá uma realidade fática fundada no erro, o que não pode ser convalidado pela justiça.

Daí a importância de distinguir a posse de estado de filho e a filiação socioafetiva, incluindo aquela como um dos critérios desta, pois a situação, além de parecer ser (nome, trato e fama), as partes envolvidas devem estar agindo com sua “vontade” totalmente preservada, isto é, ter consciência da inexistência do vínculo biológico e, ainda assim, querer aquele relacionamento filial. A autora citada ainda sugere que a denominação correta seja filiação “sociovolitiva” e não “socioafetiva”, pois sustenta que o afeto não é o mais importante, mas a vontade efetivamente externada e respeitada.

Portanto, a filiação socioafetiva não deve se resumir à posse de estado de filho (nome, trato e fama), devendo ser acrescido o elemento “vontade”, consciente e livre de qualquer erro.

5.4. Meios de prova da filiação socioafetiva

A partir do entendimento de que os juízes de direito não são revestidos do atributo divino da onisciência, não tendo condições de avaliar se as alegações das partes são verdadeiras ou não, torna-se indispensável a “prova” a afirmar ou infirmar aquilo que se diz.

A prova tem relevância não só dentro dos processos judiciais e administrativos, mas a vida em geral é repleta de momentos em que se clama pela “prova” daquilo que é suposto, insinuado ou alegado, até mesmo nos relacionamentos amorosos e familiares.

Dentro do processo judicial, a prova é pautada por três princípios constitucionais previstos nos incisos LIV, LV e LVI do artigo 5º, ou seja: o do devido processo legal; do contraditório e da ampla defesa; e o da inadmissibilidade da prova ilícita, respectivamente.

A avaliação da prova, no processo civil, é feita livremente, mas deve estar conforme o princípio da persuasão racional, por meio do qual o juiz deverá, em sua decisão, demonstrar as razões, as motivações e os elementos de prova que o conduziram àquele entendimento, mesmo porque somente assim será dada às partes a oportunidade da ampla defesa em caso de recurso.

A regra geral é a de que todos os meios de provas, desde os legais até os moralmente legítimos, são hábeis para demonstrar a verdade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa, nos termos do artigo 332 do CPC.

Do artigo 342 até o 443 (do CPC) estão disciplinados os meios de provas do processo civil, a saber: depoimento pessoal; confissão; exibição de documento ou coisa; prova documental; prova testemunhal; prova pericial; e inspeção judicial. Não se olvide, entretanto, de que o rol não é numerus clausus.

Desde que não esbarre na ilegalidade ou na imoralidade, a prova da filiação socioafetiva pode ser feita por qualquer meio, sendo comuns cartas (e-mails); fotografias; convite de casamento onde constem os pais afetivos no local reservado para os pais; boletim escolar assinado pelos pais afetivos; contratos contemplando os filhos afetivos como dependentes (plano de saúde; seguro; fax etc.); declaração de imposto de renda; previdência privada, entre outros.

O testemunho de pessoas como o médico/dentista que tratou da criança; de professores; pais de amigos e colegas da vizinhança; pessoas da comunidade religiosa frequentada é de grande relevância a corroborar outras provas. Assim, o trato e a fama exigidos para a comprovação da posse de estado de filho podem ser mais facilmente demonstrados.

Por outro lado, o nome – um dos requisitos da posse de estado de filho – é normalmente considerado não obrigatório, pois, no atual estágio do direito, principalmente com a existência dos cartórios de registro de pessoas naturais, fica difícil alguém utilizar, mormente em documentos, o sobrenome da família (patronímico) que o acolheu.

Ressalve-se apenas que, com a vigência da Lei 11.924/2009, conhecida como Lei Clodovil, passou a ser permitido “(...) ao enteado ou enteada adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta (...)”, de maneira que poderia servir como prova do requisito nome. Por outro lado, tendo em vista o critério volitivo, surgirá o contra-argumento no sentido de que, se era da vontade das partes estabelecer efetiva relação paterno/materno-filial, além da utilização do nome com base nessa referida lei, também teria sido lavrada escritura pública ou buscado declaração judicial nesse sentido.

Quanto à gravação de conversas, telefônicas ou pessoais, deve-se ter o cuidado de que o autor da ação esteja participando dela, pois, do contrário, poderá haver o reconhecimento de sua ilegalidade, tornando-a imprestável nos termos do inciso LVI do art. 5º da Constituição Federal.

Aliás, na seara do Direito de Família a questão da prova ilícita é comumente enfrentada e debatida, pois os fatos a serem comprovados normalmente ocorrem na intimidade dos envolvidos, a qual é protegida por cláusula pétrea e reconhecida como direito fundamental no inciso X do art. 5º da Constituição Federal.

Acerca da família e da intimidade, importante é o entendimento de Lourival Serejo62, em sua obra “As Provas Ilícitas no Direito de Família”:

É o ninho no qual o ser humano moderno encontra paz e recarrega suas forças emocionais para vencer as vicissitudes da vida. Ainda mais particular que a própria família é a intimidade de cada um dos seus membros. É em torno dessa intimidade, hoje alçada à categoria de direito fundamental, que deve ser analisada a licitude ou ilicitude das provas em Direito de Família.

Então, todos os meios de provas lícitos e moralmente legítimos são aptos a demonstrar a existência da filiação socioafetiva, ou seja, que, independente de qualquer elo biológico, determinada pessoa desejava ser e assumiu o papel de pai/mãe, tanto no trato privado como aos olhos da sociedade.

5.5. Do desfazimento do vínculo socioafetivo

Surge a dúvida se a filiação socioafetiva – dado o requisito da posse de estado de filho e da ligação que esta guarda com a Teoria da Aparência –, uma vez estabelecida, pode ser desfeita. É a hipótese do filho que contrai núpcias e simplesmente se afasta ou “perde o contato” com seus pais socioafetivos. Ou mesmo quando há uma briga, um ato de desonra, o reencontro com os pais biológicos etc.

Numa primeira análise, poder-se-ia dizer que não existe ex-pai, ex-mãe, ex-filho, portanto o desfazimento do vínculo é inadmissível. Um filho que, além do vínculo socioafetivo, é ligado pelo laço biológico, não deixará de ser filho se “abandonar” seus pais. Pode até sofrer as consequências jurídicas cíveis e criminais desse ato, mas não deixará de ser filho.

Entretanto, na filiação socioafetiva, a solução que a jurisprudência tem dado é diferente. Talvez o fundamento implícito seja de que as situações – filiação socioafetiva e filiação biológica – são semelhantes, equiparadas, mas não idênticas.

No julgamento do REsp 878941, em que foi relatora a Ministra Nancy Andrighi, é clara a ideia de que o vínculo da filiação socioafetiva pode ser rompido, desfeito. Destacamos:

Onde há dissociação entre as verdades biológica e socioefetiva, o direito haverá de optar por uma ou outra. Como visto, o STJ vem dando prioridade ao critério biológico naquelas circunstâncias em que a paternidade socioafetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se podem impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai socioafetivo. A contrário sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Essa, me parece, foi a conclusão a que chegou o Min. Ruy Rosado de Aguiar, ao relatar o REsp 440.394/RS, Quarta Turma, DJ 10.02.2003: “Talvez mais importante do que esclarecer a verdade biológica da paternidade seja manter a legitimidade da pessoa que exerce a função social de pai. No caso dos autos, porém, segundo reconhecido nas instâncias ordinárias, isso não acontece porque há muito os laços entre as partes estão rompidos”.

Portanto, no tocante à filiação baseada na origem socioafetiva, é possível que o vínculo seja desfeito, rompido, em respeito, principalmente, à vontade das partes envolvidas.

5.6. Da legitimidade ativa para pleitear o reconhecimento da filiação socioafetiva

Situação que às vezes se apresenta é quanto aos legitimados para pleitear o reconhecimento judicial da filiação socioafetiva. Somente os “filhos afetivos” teriam legitimidade ou os filhos desses filhos (netos) também? Poderiam os pais socioafetivos buscar o reconhecimento dessa condição? Trata-se de um direito personalíssimo ou qualquer que tenha interesse jurídico ou econômico pode fazê-lo?

Quanto aos “netos”, isto é, os filhos do “filho afetivo”, a situação assemelha-se à da investigação de paternidade avoenga. Outrora, entendia-se que somente poderiam os netos continuar eventual ação já proposta por seu pai/mãe; não podendo iniciá-la após a morte de um ou outro.

Porém, atualmente o STJ tem firmado posicionamento reconhecendo a legitimidade ativa dos netos para pleitearem o parentesco com o avô. A doutrina é praticamente unânime em acompanhar esse entendimento ao argumento de que o conhecimento da origem genética, o direito ao nome e o direito ao parentesco são garantias fundamentais que, se o pai não quis buscar, não pode o filho ser impedido de fazê-lo.

O ilustre jurista Rolf Madaleno63, em artigo disponível em sua página pessoal da internet (www.rolfmadaleno.com.br), afirmou nesse sentido:

A par de outras considerações, concluiu o STJ não existir qualquer proibição legal à pretensão de os netos ou sucessores investigarem a paternidade, entendendo que nenhuma interpretação poderia levar ao absurdo, como certamente seria se os netos não pudessem pesquisar a sua origem e os vínculos genéticos, quebrando a cadeia sucessória e familiar por absoluto preciosismo legal e que não enxerga que o direito personalíssimo nada mais significa, senão a transmissão genética dos caracteres herdados e que influenciam na formação da personalidade daquele que sucedeu o seu genitor.

Depois do julgamento do REsp 604.154/RS, o STJ repetiu a conclusão de que é possível ao neto ingressar com ação contra o avô pleiteando a declaração da relação de parentesco, o que, feitas as devidas diferenciações, pode ser utilizado como parâmetro para buscar, também, a declaração de filiação socioafetiva que seu pai/mãe tinha com o requerido.

Igual solução deve ser dada à hipótese de o pai afetivo tomar a iniciativa de ingressar com ação judicial para o reconhecimento da relação socioafetiva. Há possibilidade jurídica, o que não significa dizer, entretanto, que o direito pretendido será efetivamente reconhecido, pois demandará a comprovação dos requisitos já descritos.

5.7. Consequências jurídicas do reconhecimento da filiação socioafetiva

A regra atual é a da proibição de distinção entre os filhos, independente da existência, ou não, de vínculo biológico, conforme determina o parágrafo 6º do artigo 227 da Carta Magna.

Partindo dessa premissa, uma vez reconhecida a filiação, ainda que pelo vínculo socioafetivo, a consequência é que um feixe de direitos e obrigações integrará aquele relacionamento. É inadmissível, por exemplo, o reconhecimento da filiação socioafetiva, mas no registro civil continue a constar o nome do pai ou da mãe biológico(a). O direito a alimentos é recíproco, assim como a herança.

Importante que se tenha real noção de que haverá mudança da “árvore ou tronco de ascendência” e que todo vínculo registral e legal com a ascendência genética será eliminada, inclusive com as mesmas consequências a toda a descendência. Ou seja, caso o filho “afetivo” já tenha filhos, deverá haver mudança no registro civil quanto aos avôs desses. Portanto, é inviável, em nosso entendimento, que seja mantida no registro civil, ainda que “ao lado”, a referência à ascendência genética.

Ressalve-se, também, que, por esses mesmos fundamentos, torna-se complicada uma eventual e possível situação em que os elos sociais e afetivos, aptos a caracterizar a filiação (principalmente, trato e fama), sejam mantidos com a ascendência genética/biológica, pois isso dificultaria ou mesmo impediria o reconhecimento da filiação não biológica. Isso não pelo fato de que uma deve sobrepor a outra, mas porque é inviável a aceitação de “dois pais e duas mães”, pelo menos até a atual fase de transformação do Direito de Família.

Enfim, trata-se de um reconhecimento irrevogável e irretratável, pois não se torna filho e se deixa de ser, que implica a aceitação, em bloco, de toda uma gama de direitos e deveres correspondentes, tal como se tivesse nascido com o vínculo genético.

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Sobre o autor
Henrique Lima

HENRIQUE LIMA. Advogado (www.henriquelima.com.br). Mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado em Direito Constitucional, Civil, do Consumidor, do Trabalho e de Família. Autor de livros e artigos, jurídicos e sobre temas diversos. Membro da Comissão Nacional de Direito do Consumidor do Conselho Federal da OAB (2019/2021). Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5217644664058408

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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