A cobrança antecipada do diferencial de alíquotas interna e interestadual do ICMS

28/05/2015 às 21:17
Leia nesta página:

Antecipação do pagamento do ICMS via Decreto Estadual. Inconstitucionalidade.

O tema tratado neste artigo aguarda, há tempos, uma posição definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF).

Felizmente, na última semana, a Corte iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário nº.598.677, interposto por Juliana Enderle Fontoura, firma individual, varejista gaúcha de chocolates, mais conhecida no mercado como “Cacau Show”, que pleiteou o afastamento da cobrança antecipada do diferencial de alíquota interna e interestadual, nas entradas de mercadorias no Estado do Rio Grande do Sul.

Arguiu, a varejista, com fulcro no artigo 155, inciso II, §2º, inciso VII, alíneas “a” e “b” e inciso VIII da Constituição Federal, a inconstitucionalidade do Decreto Estadual nº.40.900/01 (RICMS/RS), que alterou o aspecto temporal do imposto, por afrontar norma constitucional.

Como este assunto é objeto de inúmeros recursos interpostos às Cortes superiores e afeta a todos os Estados, o Recurso Extraordinário nº. 598.677 será julgado com repercussão geral. Isto significa que, todos aqueles Estados cuja antecipação do diferencial de alíquota interna e interestadual estiver amparada por decreto, serão afetados.

A exemplo, o Estado de São Paulo, que possui no Decreto nº.45.490/2000 (RICMS/SP) disposição similar àquela atacada no decreto gaúcho, já se antecipou e requereu a sua entrada no debate.

O ministro relator, Dias Toffoli, assim como o ministro Roberto Barroso, entenderam tratar-se de uma “antecipação do fato gerador” – que em regra, se realiza na revenda da mercadoria ao consumidor final – via decreto.

Em contrapartida, a Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, sustentou a tese de que a cobrança antecipada do diferencial de alíquotas é um mecanismo de cobrança utilizado pelo Estado, para evitar a sonegação fiscal.

Além disso, a Procuradoria também defende que o decreto atacado no Recurso Especial, pura e simplesmente, altera o prazo para pagamento do imposto, e, portanto, não afeta a essência da hipótese de incidência e do fato gerador do imposto.

Tais alegações, além de muito frágeis, beiram ao absurdo, vez que não levam em conta fatores importantíssimos como os aspectos que compõem a hipótese de incidência do imposto – fundamentais para a determinação do fato gerador – a hierarquia das normas no ordenamento jurídico brasileiro, e principalmente, o impacto da antecipação sobre o contribuinte, que vem sendo extremamente penalizado.

No que diz respeito ao fato gerador, o Código Tributário Nacional (CTN), dispõe no artigo 114, a seguinte definição, vejamos:

“Art. 114: Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.” (nosso grifo)

Para melhor compreensão do conceito posto acima, julgamos pertinente analisá-lo em partes separadas:

  1. Por “situação”: deve-se entender como um fato jurídico, decorrente ou não da manifestação de atos de vontade;
  2. Por “definida em lei”: a definição do fato gerador da obrigação tributária principal é matéria compreendida na reserva legal, ou seja, somente a lei é o instrumento próprio para descrever, e definir a situação cuja ocorrência gera obrigação tributária principal, nos termos do artigo 97, inciso III do CTN; e
  3. Por “necessária”: sem a situação prevista em lei, não nasce obrigação tributária, ou seja, para nascer a obrigação tributária é indispensável a ocorrência da situação prevista em lei.

Então, o fato gerador é a situação descrita em lei, capaz de fazer nascer a obrigação tributária.

Neste diapasão, se o fato gerador é a situação jurídica que deve concretizar-se para fazer nascer a obrigação tributária, a hipótese de incidência é a descrição da dita situação necessária e suficiente para o surgimento da obrigação tributária.

A hipótese de incidência, por sua vez, é composta por:

  1. Aspecto Pessoal;
  2. Aspecto Material;
  3. Aspecto Quantitativo;
  4. Aspecto Temporal; e
  5. Aspecto Espacial.

Segundo nos ensina o Professor Geraldo Ataliba:

“São, pois, aspectos da hipótese de incidência as qualidades que esta tem de determinar hipoteticamente os sujeitos da obrigação tributária, bem como seu conteúdo substancial, local e momento de nascimento. Daí, designamos os aspectos essenciais da hipótese de incidência por: a.) aspecto pessoal; b.) aspecto material; c.) aspecto quantitativo; d.) aspecto temporal; e e.) aspecto espacial.” (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª Edição. Malheiros, São Paulo.2003)

Destarte, o imposto só passa a ser devido quando reunidas todas estas elementares do tipo.

Entretanto, como a questão em análise pelo STF envolve o aspecto temporal do imposto, neste estudo, vamos nos ater a ele.

Dentre todos os elementos que compõem a hipótese de incidência, é possível asseverar, sem qualquer exagero, que o temporal é o mais importante. Isto porque, corresponde à descrição do exato momento, em que a situação jurídica (fato gerador) prevista em lei, deve acontecer para que a obrigação tributária nasça.

Sobre este elemento, nos ensina Alexandre de Barros Castro:

“Tal critério nos indica com exatidão o instante, lapso temporal, em que se realiza o fato gerador descrito na norma.” (Castro, Alexandre de Barros. Teoria e Prática do Direito Processual Tributário. Ed. Saraiva. São Paulo.2000)

Feitas as breves considerações acima, fica fácil concluir que alterar um dos elementos da hipótese de incidência, principalmente o temporal, afeta diretamente o fato gerador, ou seja, o momento em que se origina a obrigação tributária, e, portanto, muda a essência do tributo.

Conforme largamente explanado, as alterações desta natureza devem ocorrer por lei, reforçando o previsto no artigo 97, inciso III do CTN.

E assim deve ser, em obediência à hierarquia das normas, bem como a tripartição dos poderes.

Todos sabemos, ou pelos menos deveríamos saber, que os poderes do Estado dividem-se em Executivo, Legislativo e Judiciário.

Em linhas gerais, o Poder Executivo, como a própria designação sugere, é responsável por executar, e o faz via decreto/ regulamento.

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Os decretos têm como função definida em lei, explicar o modo e a forma de execução da lei ou regular situações não previstas na lei.

Deste modo, qualquer decreto que não seja mera explicitação do que determina a lei, nem se limita a fixar os meios e formas de execução desta, é inválido.

Em matéria tributária, o decreto só tem utilidade para a explicitação de textos legais, ou para estabelecimento dos meios e formas de cumprimento das disposições de leis.

De outro modo, a lei, que é ato privativo do Poder Legislativo, tem o condão de dispor, estabelecer e prescrever.

Consequentemente, todos os elementos essenciais à formação da relação jurídica devem estar estabelecidos em lei. No direito tributário isto significa que, nenhum imposto poderá ser criado, acrescentado ou modificado por decreto, mas apenas por lei.

Por estas razões, evidencia-se que o decreto está em posição inferior à lei no ordenamento jurídico brasileiro, à vista disso, não pode preponderar sobre a lei, independentemente de ser esta infra – constitucional ou constitucional, como o artigo 155 da Constituição Federal, acima citado.

Estas incongruências causam insegurança jurídica num cenário econômico de recessão, e penalizam ainda mais o contribuinte, que conforme prevê o decreto atacado, deve recolher a antecipação antes mesmo de vender a mercadoria, ou seja, recolhe sobre uma operação que, no momento da entrada da mercadoria no território gaúcho, não aconteceu.

Diante do exposto neste estudo, denota-se que a antecipação do pagamento do diferencial de alíquota interna e interestadual, nada mais é que o deslocamento do fato gerador para o momento da entrada da mercadoria em território gaúcho.

O decreto questionado altera o aspecto temporal do imposto, que por compor a hipótese de incidência, desconfigura sua essência, e por via de consequência, torna-se inválido, pois não tem o condão de dispor, estabelecer e prescrever como a lei.

Além de inválido, também é inconstitucional, por claramente afrontar o previsto no artigo 155, inciso II, §2º, inciso VII, alíneas “a” e “b” e inciso VIII da Constituição Federal, com redação anterior à Emenda Constitucional nº. 87, de 16 de abril de 2015.

Em que pese o Estado sustentar que a antecipação é uma forma de evitar a sonegação fiscal, sob o ponto de vista do contribuinte, o impacto é devastador, porque é obrigado a recolher sobre uma mercadoria que ainda não entrou em seu estabelecimento, e também não foi vendida, quer dizer, se a tal mercadoria não for vendida o contribuinte terá saído, mais uma vez, no prejuízo.

Ainda, vale lembrar que, embora o contribuinte seja pesadamente onerado, o STF não está a discutir a validade da antecipação em si, mas apenas e tão comente, se a via correta para introduzi-la é o decreto ou a lei. Por ora, nos resta aguardar o deslinde da discussão, cujos autos permanecem com o Ministro Teori Zavascki.

Inúmeras empresas têm aproveitado o ensejo e impetrado Mandados de Segurança, para requerer o afastamento da antecipação, bem como os valores recolhidos indevidamente, beneficiando-se da:

  1. Isenção do recolhimento antecipado parcial do ICMS, seja na fronteira do Estado, seja após a entrada da mercadoria no estabelecimento;
  2. Não retenção das mercadorias nos Postos Fiscais das fronteiras, para pagamento do ICMS antecipado;
  3. Desabastecimento das lojas; e
  4. Neutralização da possibilidade de autuações.

Sobre a autora
Anaklaudia Filadoro Feiteiro

Advogada-sócia do escritório Azevedo & Feiteiro Advogados (www.azevedofeiteiro.com.br). Atua no tributário e societário. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, cursando Master of Laws (LL.M) no Insper em Direito Tributário e Societário.E-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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