Penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes

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Dentre os diversos tipos de violação de direitos humanos necessariamente particularizados à dimensão individual, a tortura é muito provavelmente, a que mais repugna à consciência ética contemporânea.

INTRODUÇÃO

Durante a maior parte da História, a pena capital foi, muitas vezes, deliberadamente dolorosa. Dentre as penas mais cruéis incluem-se a roda, a ebulição até a morte, o esfolamento, a crucificação, a empalação, o esmagamento, o apedrejamento, a morte na fogueira, o desmembramento, a serração, o escafismo e o colar (técnica de linchamento que consiste em colocar um pneu em volta do pescoço ou do corpo do supliciado e, em seguida, atear fogo ao pneu). 

 Um exemplo de tortura na Grécia Arcaica é o história do touro de bronze, proposto para Fálaris, em meados do século 6 a.C.. As Cinco Punições são um exemplo que vem da China Antiga.

Métodos deliberadamente dolorosos de execução por crimes graves foram parte da justiça até o desenvolvimento do Humanismo na filosofia do século XVII. Na Inglaterra, as penas cruéis foram abolidas pela Declaração de Direitos de 1689.

Durante o Iluminismo desenvolveu-se no mundo ocidental a idéia de direitos humanos universais. A adoção do  Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 marca o reconhecimento, pelo menos formal, da proibição da tortura por todos estados membros da ONU.

 Porém, seu efeito na prática é limitado, já que a Declaração não é ratificado oficialmente e não tem caráter juridicamente vinculativo no direito internacional, embora seja considerada parte do direito internacional consuetudinário.

As reformas iluministas dos sécs. XVIII e XIX não impediram e, em muitas ocasiões, colaboraram para que o cárcere se tornasse o lugar dos horrores modernos. Torturas, agressões e condições deploráveis dos ambientes carcerários (celas sem adequada iluminação, inexistência de privada, água potável etc.) eram a realidade carcerária européia daquele momento histórico.

Entretanto,  por todo o século XVIII e o XIX e até mais da metade do século XX, nenhum Tribunal de Direito ocidental entendeu que esta proibição se aplicava também à ambiência penitenciária.

No que tange à codificação, apenas surge à proibição jurídica de imposição de um "tratamento cruel, desumano ou degradante" na metade do século XX, com o processo de internacionalização dos direitos humanos, que tem como marco histórico a Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, em 1948.

Em seu art. 5º, textualmente afirma que ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Entretanto, não se definiu, do ponto de vista jurídico, o que constitui "tortura" nem "tratamentos ou penas cruéis".

A proibição foi acolhida pelos sistemas regionais de proteção de direitos humanos que historicamente se sucederam à criação da ONU, enquanto sistema mundial de proteção dos direitos humanos.

Em 1950, através do Tratado de Roma, é criado juridicamente o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos, com uma carta de direitos que norteia e codifica uma série de direitos e garantias individuais.

O art. 3º desta Convenção impõe que "ninguém deverá ser submetido nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes". A fórmula da Convenção européia segue linha da proibição da ONU, mas não utiliza a palavra "cruel", mas tão-somente "desumano e degradante".

Importante ressaltar que, para além deste marco jurídico, algumas experiências jurisprudenciais internas - como o caso dos Estados Unidos e do estudo das decisões da USSC - trabalham a temática dentro da antiga expressão jurídica, estudada no capítulo anterior, de que não deve ser imposta uma pena cruel.

TRATAMENTOS CRUÉIS, DESUMANOS E DEGRADANTES

Dentre os diversos tipos de violação de direitos humanos necessariamente particularizados à dimensão individual, a tortura é muito provavelmente, a que mais repugna à consciência ética contemporânea.

Esta deverá ter sido a razão pela qual após convenções destinadas a erradicar à escravidão e impedir o genocídio- fenômenos de natureza essencialmente coletiva- a primeira grande convenção especializada contra um tipo particular de violação tenha sido a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos Desumanos ou Degradantes de 1984.

O processo de consolidação da pena privativa de liberdade como a principal sanção penal dos Estados modernos, construiu-se, também à luz da doutrina iluminista, uma série de reformas nas instituições carcerárias.

Segundo o argumento humanitário, as reformas tinham o intuito de "humanizar" e respeitar a "dignidade dos presos". Entretanto, o objetivo principal das reformas foi tornar mais higiênico e disciplinado o cotidiano penitenciário: instituídas visitas médicas regulares; ritual higiênico obrigatório (corte de cabelo, banho etc.) e introdução do uso de uniformes

Historicamente, apenas na jurisprudência européia houve a preocupação em conceituar os termos "tortura", "tratamento desumano" e "tratamento degradante". E, a Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH) foi o primeiro órgão a definir o crime de tortura, distinguindo-o de  "tratamento cruel", "desumano" ou "degradante" ao analisar o "Caso Grego" (Greek Case - foi o primeiro caso examinado pelo Conselho Europeu e pela Comissão Européia de Direitos Humanos, no qual houve violação sistemática e disseminada aos direitos humanos, por regime ditatorial instalado).

Nesse caso, a CEDH definiu tortura como um tipo agravado de tratamento desumano, atribuído a alguém com finalidade específica (ex: conseguir uma confissão). Veja a definição da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes:

Art. 1º. O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência.

Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

A tortura é, portanto, a manipulação da dor. É forma de submissão de alguém à vontade de outrem pela imposição de dor física ou intenso sofrimento mental. Ainda é uma questão inquietante a possibilidade da prática de tortura por omissão.

Em tese, comportamentos negligentes (assistência médica inadequada, más condições das penitenciárias) podem vir a constituir tratamentos cruéis ou desumanos, mas exatamente pela ausência da "deliberação" não constituem tortura.

Entretanto, é importante anotar que, quando este comportamento negligente for resultado da vontade deliberada, o ato pode vir a constituir tortura, se preenchidos os demais elementos constitutivos da tortura

O tratamento degradante, por sua vez, ocorre quando há humilhação de alguém perante si mesmo e perante os outros, ou leva a pessoa a agir contra sua vontade ou consciência.

Já o tratamento desumano é o tratamento degradante que provoca grande sofrimento mental ou físico e que na situação específica é injustificável, impondo esforços que vão além dos limites razoáveis (humanos) exigíveis. Assim, o tratamento desumano, engloba o degradante.

Não há, contudo, definição legal de tratamento cruel. A Corte Européia é o órgão que, em regra, em análise dos casos concretos, o define. Pelo prisma jurídico, trata-se de conceito vago e impreciso.

Assim, nos valeremos da definição de Galvão para "tratamento cruel", já que não foi elaborada pela Convenção: são cruéis os tratamentos que "intensificam o sofrimento da vítima desnecessariamente, revelando no agente uma brutalidade além do normal"

Logo, cabe salientar que, na visão da CEDH, a preocupação está em definir o "tratamento desumano". Aquilo que extrapola é considerado "tortura", e o que carece (tem menor grau) é tido como "degradante".

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Deve-se observar que o conceito é viajante, ou seja, que pode sofrer mutações de acordo com a evolução histórica, vez que a Convenção Européia é tida como "instrumento vivo" a ser interpretado à luz do contexto (VIEIRA, Adriana Dias. Significado de Penas e Tratamentos Desumanos Análise Histórico-Jurisprudencial Comparativa em Três Sistemas Jurídicos: Brasil, Europa e Estados Unidos.

CONCLUSÃO

            A tortura tem acompanhado a história humana há muito tempo, surgindo apenas recentemente a consciência universal de sua natureza vil, covarde e atentatória dos direitos fundamentais e, portanto, ao interesse comum da sociedade.

 Em decorrência, os sistemas internacionais de direitos humanos contêm regras específicas destinadas a combater práticas daquela natureza, visando ainda criar métodos de prevenção à sua ocorrência.

Em tal contexto, a Convenção contra a Tortura tem desempenhado relevantíssimo papel, demonstrando o repúdio da comunidade internacional e impulsionando países a tornarem realidade suas previsões, como bem demonstra o caso brasileiro.

Não há dúvida de que a realidade ainda é perversa e cruel, mas não se pode olvidar as mudanças ocorridas nos últimos anos, o que indica um futuro mais próximo ao respeito à integridade física e psíquica de todo ser humano.

A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 caracteriza-se como um marco temporal concernente ao reconhecimento de obrigações internacionais quando se trata de direitos humanos no país, e ainda, quando da inserção dos sistemas internacionais de garantia e proteção desses direitos.

A Lei Maior (1988) consagra a dignidade humana como um valor intrínseco ao estado brasileiro e norteador de toda interpretação e compreensão da sistemática constitucional.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos tem incorporação automática pelo direito brasileiro, não sendo necessário um ato jurídico complementar para a sua exigibilidade e implementação, o que traz conseqüências relevantes no plano jurídico, pois de um lado, permite-se ao particular invocar diretamente os direitos e liberdades assegurados no âmbito internacional, e, de outro lado, proíbe-se literalmente condutas e atos violadores a esses mesmos direitos, sob pena de invalidação.

Os tratados e convenções concernentes aos direitos humanos ratificados pelo Brasil são passíveis de imediata invocação pelos brasileiros, sem que se faça necessário editar qualquer ato cogente para sua vigência interna, como é o caso da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e conseqüentemente, a partir da entrada em vigor do tratado internacional, toda norma preexistente que seja com ele incompatível perde sua vigência de forma automática.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo: anti-semitismo, instrumento de poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1975.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1988.

BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; ARAÚJO, Nadia de (Org.). Os direitos humanos e o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. V.II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

GODINHO, Fabiana de Oliveira. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

HERZ, Mônica; HOFFMANN, Andrea Ribeiro. Organizações Internacionais – História e Práticas. São Paulo: Editora Elsevier, 2004.

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.

REZEK, J.F. Direito Internacional Público. 8 ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000.

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Sobre a autora
Alessandra Roberta Cavalcante da Rocha Batista

Graduada em Administração de Empresas com Habilitação em Análise de Sistemas. Graduada em Direito e Pós-Graduada em Direito Constitucional. Estudante da Escola Superior da Magistratura - ESMA. Conciliadora do Tribunal de Justiça.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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