Um juízo adequado a respeito do Código Civil de 2002 deve ser necessariamente matizado, em virtude de sua reconhecida complexidade. Por ser um texto longo, destinado a disciplinar uma enorme gama de atividades humanas, qualquer tentativa de alteração integral do Código incide em número expressivo de erros e de acertos.
A essa altura, já se podem vislumbrar, com maior clareza, as qualidades e os defeitos do Código Civil de 2002. A maioria deles somente perceptíveis aos profissionais do direito.
Boas inovações foram, primeiramente, as que resolveram contradições havidas na vigência do Código de 1916: a atribuição de direitos e deveres iguais aos cônjuges; o expurgo de toda e qualquer referência discriminatória em relação aos filhos; a consagração do princípio do "maior interesse da criança"; [1] a disciplina dos efeitos do contrato preliminar; a regulamentação da responsabilidade civil por danos morais.
Ainda entre as boas novidades, introduz institutos jurídicos importantes, alguns sobejamente conhecidos e aplicados pelos tribunais, tais como: os direitos da personalidade, a desconsideração da personalidade jurídica, a lesão, o estado de perigo, a resolução por onerosidade excessiva, o enriquecimento sem causa, o direito de superfície, direitos relativos à fecundação artificial etc.
Além disso, ao revogar a Primeira Parte do Código Comercial, o Código Civil de 2002 enfatiza a unidade principiológica e conceitual do direito privado e unifica o direito das obrigações (as regras relativas a contratos, fundamentalmente).
Os aspectos mais negativos do Código Civil de 2002 situam-se, paradoxalmente, no Direito de Família e no de Empresa.
Admita-se que não se pode atribuir a ele as dificuldades geradas pela intensa transformação que sofre a família, no plano social, desde algumas décadas. Natural, portanto, que não se alcance logo uma regulamentação isenta de críticas fortes. Apesar disso, no entanto, o Código Civil de 2002 agravou alguns problemas e criou outros: burocratizou o casamento ao prever a intervenção judicial no processo de habilitação, ao invés de simplificá-lo; reavivou a noção de culpa nos processos de separação e a necessidade de prévia separação para a obtenção de divórcio; "biologizou" os vínculos familiares; atribuiu, desnecessariamente, direitos hereditários ao cônjuge e ao companheiro em concorrência com descendentes e ascendentes.
No Direito de Empresa, basta mencionar a verdadeira balbúrdia criada com a imposição (de constitucionalidade duvidosa) a todas as associações e sociedades de adaptarem seus atos constitutivos no prazo de 1 ano e a excessiva intromissão do legislador na vida societária.
Além disso, o Código Civil de 2002 contribuiu imensamente para o aumento da insegurança jurídica ao não revogar expressamente leis especiais cuja matéria veio a ser por ele regulada total ou parcialmente. Deu lugar a revogações implícitas, de identificação e interpretação sempre tormentosas, porquanto em cada caso é possível inquirir se deve prevalecer a lei posterior ou a lei especial. O Projeto de Lei n. 6.960/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, enumera, na nova redação que pretende dar ao art. 2.045, algumas dessas leis, cuja revogação expressa seria desejável: as Leis n. 4.121/62, 8.560/92, 8.971/94, 9.278/96, o Dec. n. 3.708/19, além de diversos dispositivos das Leis n. 4.591/64, 6.015/73, 6.515/77, 8.069/90, às quais deveria ser acrescentada, pelo menos, a Lei n. 4.886/65, ou parte dela.
Igualmente criticáveis, por defeituosas, regras relativas aos direitos da personalidade. O art. 15, por exemplo, dispõe que "ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica". Que quer dizer? Será que alguém que não esteja correndo risco de vida pode ser constrangido a algum tratamento? Depois de o STF ter admitido a intangibilidade física mesmo em situações que envolvem a retirada de um fio de cabelo para exame de DNA? De pouco vale advertirem os defensores do Código Civil de 2002, que o artigo não deve ser interpretado a contrario. Tal interpretação decorre naturalmente do texto, por causa da infeliz expressão posta entre vírgulas: "com risco de vida".
A disposição transitória relativa aos prazos é uma verdadeira lástima. Sucinta, determina apenas:
"Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada".
Tudo, talvez, estaria em paz se o legislador tivesse reduzido os prazos do Código a, no máximo, a metade dos prazos estabelecidos na legislação revogada. Infelizmente, não teve este cuidado. Veja-se, por exemplo, a previsão do art. 206, § 5º, inciso I, do Código Civil de 2002, segundo a qual prescreve em 5 anos:
"I – a pretensão de cobrança de dívidas líqüidas constantes de instrumento público ou particular."
Ora, a nova fattispecie diz respeito a, nada mais, nada menos, do que a quase totalidade das dívidas contratuais. As dificuldades advêm do prazo prescricional anterior a que estavam sujeitas a maior parte dessas dívidas: 20 anos, conforme o art. 177, do Código Civil de 1916.
Pois bem, imagine-se um contrato descumprido, do qual tenha surgido uma pretensão há 8 anos. Nesta hipótese, aplicando-se o art. 2.028, como não transcorreu mais da metade do "tempo estabelecido na lei revogada", o prazo a ser observado será o da lei nova: 5 anos.
Por esta interpretação, tal prazo, contado a partir do ato que deu origem à prescrição, terá sido consumado, abruptamente, quando da entrada em vigor do Código Civil de 2002.
Tudo está, portanto, em fixar o dies a quo do prazo. Ocorre que a lei nova nada contém a esse respeito. Pior: a Súmula n. 445, do STF – sobre a Lei n. 2.437, de 7 de março de 1955, que reduziu o prazo geral de prescrição do Código Civil de 1916, de 30 para 20 anos – abraçou o entendimento de que a lei nova seria aplicável às prescrições em curso na data de sua vigência!
Outro elemento que poderia evitar a perplexidade a respeito dos prazos prescricionais seria, caso houvesse no direito brasileiro, regra de direito intertemporal que estabelecesse que, em caso de redução do prazo prescricional, o novo prazo deveria fluir por inteiro, nos termos da lei nova. Esse o entendimento que prevaleceu, a respeito do art. 2.028, na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, em Brasília-DF, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ, e que vige em muitas legislações de influência sobre o Direito brasileiro. É o que querem, o que prevalece Direito Comparado, o que, a meu juízo, deveria ser, mas não, o que está escrito, nem o que se coaduna com a Súmula n. 445, do STF.
Que dizer, então, do novo limite dos juros legais? O art. 406 os limitou à "taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional". Que taxa é essa? Tem-se entendido seja a SELIC, conforme o art. 13, da Lei n. 9.065, de 20 de junho de 1995:
"A partir de 1º de abril de 1995, os juros de que tratam a alínea c do parágrafo único do art. 14 da Lei n. 8.847, de 28 de janeiro de 1994, com a redação dada pelo art. 6º da Lei n. 8.850, de 29 de janeiro de 1994, e pelo art. 90 da Lei n. 8.981, de 1995, serão equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente".
Ocorre que a referida lei é ordinária e, como tal, não revogou o Código Tributário Nacional, recepcionado pela Constituição da República como Lei Complementar, cujo art. 161, § 1º, dispõe diversamente:
"Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1% (um por cento) ao mês".
Com quem ficamos? Com o limite, mais simpático e camarada, de 1% ao mês, ou com o de 25,5%, vigentes, para a SELIC, no dia em que escrevo, 17 de fevereiro de 2003, absolutamente variável, renitente e, freqüentemente, ascendente? Aliás, já se chegou a alguma conclusão sobre a constitucionalidade da SELIC?
Acrescente-se que, no nosso direito, o limite dos juros convencionais tem sido regulado pelo dos juros legais, uma vez que o Dec. n. 22.626, de 7 de abril de 1933, estabelece:
"Art. 1º. É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, art. n. 1.062)."
Vale, portanto, a respeito dos juros convencionais, não-disciplinados pelo Código Civil em vigor, novamente indagar: como ficamos? Já ouvi dizer que o Dec. n. 22.626 teria sido revogado; teria, então, acabado o limite dos juros convencionais? Entretanto, vigente o Dec. n. 22.626 (como penso estar, pelo menos, na parte transcrita), qual será o limite dos juros convencionais: o dobro de 12% ao ano, com base no CTN, ou o dobro da SELIC? Juros convencionais de 50% ao ano? Instituídos pelo Código da "sociabilidade" e da "eticidade"?
Pensemos nas dúvidas e nos ganhos que elas trazem. Se algo promissor há no Código Civil de 2002 é o incentivo ao estudo do Direito, especialmente do Direito Privado, por desmitificar soluções ultrapassadas e reforçar a necessidade de se conhecer a tradição, caminho único para rumos que, mais do que novos, sejam bons.
Notas
01. Apesar da tradução mais comum para best interest of child ser a literal "melhor interesse da criança", insisto que, em português, um interesse não é melhor ou pior do que outro, senão maior ou menor. O princípio significa que, no caso concreto, deve ser adotada a solução que seja a melhor para a criança, que atenda mais a seus interesses ou, em outras palavras, que vise ao seu maior interesse.