1.Introdução
Há, no âmbito do Direito Civil, a compreensão de que o indivíduo (pessoa natural) apresenta a possibilidade de ter para si determinados direitos, assim como o cumprimento de deveres. Tal conceituação encontra-se, de certa forma, pacificada na doutrina brasileira, uma vez que possui embasamento constitucional (decorre do princípio da dignidade da pessoa humana).[1]
Embora não existam grandes discussões acerca da personalidade jurídica no Direito interno, ainda há divergências no que diz respeito ao Direito Internacional Público. Pode-se apreender — de forma segura — que, na atualidade, o cenário internacional compreende os Estados soberanos e as Organizações Internacionais.[2] O embate se encontra na possibilidade ou não de atribuição de personalidade ao indivíduo.
Tendo em vista os aspectos supracitados, o presente artigo apresenta como objetivo trazer à tona o debate entre a teoria clássica do Direito Internacional e a teoria humanista. A proposta é realizar uma contraposição concisa dos discursos promovidos pelas teorias e se chegar a uma possível conclusão que auxilie os estudantes de Direito, assim como a sociedade civil, a dirimir o conflito em questão.
Antes de adentrar a temática propriamente dita, faz-se necessário analisar a terminologia “sujeitos de direito”. O termo é passível de ambiguidade, pois pode se referir a agente; ator (significado usual da gramática) e, ainda, a subordinado. Todavia, no que tange ao Direito Internacional Público, não há submissão do Estado em prol do direito internacional. Desse modo, prevalece a ideia de ordem coordenativa. [3]
2.Considerações da teoria clássica em relação à personalidade jurídica no Direito Internacional
O Estado é comumente veiculado como o principal representante do direito internacional: personalidade originária. Segundo Varella, é o único sujeito internacional detentor de plena capacidade jurídica. Em outras palavras, apresenta direitos, poderes e obrigações. Pelo menos em tese, não há submissão de um Estado perante outro: cada um apresenta os mesmos direitos e obrigações. Porém, tal discurso não procede na prática: Estados com maior poder econômico e influência política apresentam maior arbítrio na Comunidade Internacional.[4]
O conceito de Estado remete a um grupo social estabelecido em determinado território sob o comando de um governo. Faz-se necessário avaliar três elementos que o constituem. Primeiro, a população: diz respeito aos indivíduos que possuem vínculos jurídicos e políticos com o Estado (semelhante ao conceito de nacionalidade). Segundo, o território: delimitação física na qual o Estado exerce função jurisdicional. Por fim, o governo: não deve apresentar dependência jurídica em relação a outros (remete a ideia de soberania). No entanto, é notável a impossibilidade de um governo se ver completamente livre de ingerências internacionais. [5]
Após a Primeira Guerra Mundial e a instituição do Tratado de Versalhes (1919), se estabeleceram, ainda, as Organizações Internacionais (OI) como pessoas jurídicas de direito internacional. A personalidade é derivada, pois resulta das soberanias estatais. Para que ocorra de fato, faz-se necessário que esteja prevista no ato constitutivo da OI, o tratado, na maioria das vezes denominado como estatuto. Pode vir de forma expressa, ou, ainda, com base em dois critérios:[6]
2.1. Caso os Estados verifiquem a necessidade da criação de um ente jurídico que possa realizar determinadas atividades de forma independente: mesmo que contrárias aos anseios de certos membros (geralmente quando se decide por vontade da maioria).
2.2. Caso a Organização Internacional seja autônoma perante aos Estados-membros e, assim, “de fato exerce e goza de funções e direitos que apenas poderiam ser explicados com base na posse de personalidade internacional e de capacidade [jurídica] para operar no plano internacional”.[7]
Todavia, é relevante notar que as Organizações Internacionais são detentoras de personalidade objetiva. Em outras palavras, vale para a comunidade internacional como um todo: inclusive para os Estados que não tenham ratificado o ato constitutivo.[8]
A denominação adequada é de Organizações Internacionais propriamente ditas; confunde-se, muitas vezes, com o termo Organismos Internacionais. Este por sua vez apresenta uma semântica diferente: é utilizado quando não se sabe, com certeza, acerca da natureza jurídica do ente retratado. Assim, abarca desde órgãos que compõem as Organizações Internacionais —Organização da Aviação Civil Internacional (ACI), por exemplo — até tratados multilaterais, tais como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT).[9]
Dado o exposto, percebe-se que a teoria clássica aplica o critério de soberania para a definição de personalidade jurídica no Direito Internacional. É pelo reconhecimento dos Estados, detentores da personalidade originária, que se pode taxar outros entes como pessoas jurídicas. Assim, a atribuição de personalidade jurídica é atribuída aos Estados, às Organizações Internacionais e à Santa Sé (esta é uma exceção: só é definida como tal por interesse dos Estados).[10]
3.Considerações da teoria humanista em relação à personalidade jurídica no Direito Internacional
É notável que o homem tem assumido papel de destaque no âmbito internacional, a ponto de Organizações Internacionais específicas terem como fundamento de suas criações o propósito de suprir necessidades dos indivíduos: a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo. Porém, ainda não há uma pacificação entre os doutrinadores acerca da questão: homem como sujeito ou não de direito? A princípio parece uma questão meramente técnica e restrita ao academicismo, mas não o é: a validade de um conjunto de normas e institutos no Direito Internacional tem como pressuposto a resposta da pergunta em questão.[11]
Celso D. de Albuquerque Mello é direto nessa temática:
Não se pode falar em direitos do homem garantidos pela ordem jurídica internacional se o homem não for sujeito de DI. Dentro do mesmo raciocínio não poderíamos falar no criminoso de guerra, nem na proteção ao trabalhador dada pela OIT e nem mesmo se poderia lugar por uma Corte Internacional Criminal como se tem feito.
Em conclusão, podemos assimilar que negar a personalidade internacional do homem ou deturpar a existência de uma série de institutos da vida jurídica internacional.[12]
A tese de que o homem é sim sujeito de direito é resultado de uma concepção jusnaturalista; pois, de acordo com Maritain, o homem “é um fim em si mesmo”. Desse modo, o indivíduo é detentor de uma dignidade imutável: se os Direitos Humanos são decorrentes de tal dignidade, não são concedidos ao homem; pelo contrário, já lhe são inerentes.[13]
O mundo jurídico tem como destinatário principal o homem. Afinal, o Direito apresenta como finalidade única coordenar as relações sociais. De acordo com esse pensamento, negar ao indivíduo à personalidade jurídica internacional é retirar o aspecto humano e, consequentemente, de socialização presente naturalmente nas áreas do Direito. Desse modo, Mello conclui que há dois motivos primordiais para a atribuição de personalidade jurídica ao homem. São eles: o princípio da dignidade da pessoa humana, assim como o fato do Direito ser uma convenção do homem e que se destina ao próprio homem.[14]
O grupo que defende o homem enquanto sujeito de Direito Internacional divide-se em um duas doutrinas principais:
3.1. Teoria individualista: o principal expoente da teoria em questão, Duguit, compreende que o homem, e somente ele, é um sujeito de direitos. Afinal, o Estado é constituído por indivíduos. Apesar de apresentar vários adeptos, percebe-se que tal pensamento é dissonante em relação à realidade jurídica vigente: Estados como sujeitos de maior destaque no Direito Internacional.[15]
3.2. Le Fur acredita que o Estado seria sujeito direto. O homem também configura-se sujeito; no entanto, indireto. Considera que o Direito apresenta como finalidade última, o indivíduo. Este utiliza o Estado como um instrumento para agir no âmbito jurídico. Assim, é relevante notar que o doutrinador propõe a diferenciação entre sujeito direto e indireto.[16]
A segunda teoria, defendida por Le Fur, é a mais aceita pelos doutrinadores. Refutar que o homem é detentor de personalidade jurídica é contrariar a democratização: tendência moderna do Direito Internacional Público. Tanto o Estado quanto o homem são sujeitos de direito: a diferença consiste na limitação da capacidade jurídica apresentada por eles.[17]
4.Conclusão
Segundo Rezek, a fim de que a atribuição de personalidade jurídica ao indivíduo tenha sentido científico, e não meramente declaratório, faz-se necessário que ele possa pleitear direitos em foros internacionais, por exemplo. No entanto, isso não ocorre no mundo fático. No caso de foros internacionais que permitem o acesso do indivíduo, é essencial que este tenha, geralmente, vínculo de nacionalidade com determinado Estado.[18]
É notável que os Estados apresentam papel de maior destaque no âmbito do Direito Internacional Público e, por isso, elaboram seus próprios direitos. O indivíduo, no entanto, só se torna sujeito de direito quando é objeto da aplicação de normas internacionais.[19]
Dessa forma, é imprescindível admitir a existência de incapacidade no Direito Internacional Público. O homem, por exemplo, pode apresentar personalidade jurídica em momentos específicos e, ainda, a incapacidade. O indivíduo não pode agir de forma independente do Estado no âmbito internacional. Porém, isso não lhe retira a característica de sujeito de direito. Assim, há uma subjetividade inerente à questão.[20]
Dado o exposto, percebe-se que ambas as teorias apresentam argumentos convincentes em relação ao que consideram sujeitos ou não do Direito Internacional Público. De tal modo, não é possível atribuir um caráter de “vitória” a uma teoria específica. Cabe ao estudante do assunto em questão preponderar acerca dos fatos e, por meio de um processo de reflexão crítica, escolher a teoria que julgar mais relevante.
Referências
FERNANDES, Alexandre Cortez. Direito Civil. Introdução: pessoas e bens. Caxias do Sul, RS: Educs, 2012.
HADDAD, Gabriel Teixeira. A humanização do Direito Internacional: considerações sobre a personalidade jurídica do indivíduo no contexto do Direito Internacional, 2012.
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 171.
Notas realizadas no decorrer das aulas de Direito Internacional Público, ministradas pelo Professor Mestre Gabriel Haddad Teixeira no curso de graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, durante o 1º Semestre de 2015.
Notas
[1] FERNANDES, Alexandre Cortez. Direito Civil. Introdução: pessoas e bens. Caxias do Sul, RS: Educs, 2012, p.148.
[2] REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 151.
[3] REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 151.
[4] VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 171.
[5] [Notas realizadas no decorrer das Aulas] Ibidem, p. 172, 212, 246.
[6] [Notas realizadas no decorrer das Aulas] VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 286,287.
[7] CIJ. Parecer consultivo sobre a reparação de danos sofridos pelo serviço das Nações Unidas. Decisão de 11.04.1949.
[8] VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 288.
[9] REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 151.
[10] VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 286.
[11] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. Rio de Janeiro Renovar, 2004, p. 807,808.
[12] Ibidem, p.808.
[13] Ibidem.
[14] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. Rio de Janeiro Renovar, 2004, p. 807,808.
[15] Ibidem, p.810.
[16] Ibidem, p. 810,811.
[17] Ibidem, p.811,812.
[18] REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 155.
[19] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. Rio de Janeiro Renovar, 2004, p. 810,811.
[20] Ibidem, p.348.