Capítulo 3. A Construção de um Espaço Público Plural
Como dissemos no começo deste trabalho, há uma tendência no sentido de se centralizar a apreciação da constitucionalidade das leis e atos normativos no Brasil.
Após essa introdução, mostramos como foi se construindo a relação entre público e privado na modernidade até sua atual configuração no Estado Democrático de Direito, onde ambas as esferas não se opõem, mas se complementam e se co-originam (conformando-se o paradoxo moderno do Direito que retira sua legitimidade a partir da legalidade, cf. supra).
Com isso, percebe-se a importância da linguagem para a integração social. Assim, a manutenção de — e constituição de novos — foros de discussão é fundamental como meio onde os cidadãos possam, desde uma posição "performativa", apresentar seus argumentos num procedimento discursivo, até que se chegue a um consenso (ou ao menos a compromissos) onde prevaleça o melhor argumento.
Nesse sentido o sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis pode ser apontado como um dos grandes mecanismos na manutenção de arenas de discussão pública, descentralizada e dinâmica acerca da interpretação que se dá à Constituição em épocas e lugares distintos (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, p. 137)
No Brasil, desde a primeira Constituição Republicana, por influência direta de Rui Barbosa, cristalizou-se a possibilidade de questionamento incidental da inconstitucionalidade das leis. Apenas posteriormente foi o sistema de controle concentrado sendo adotado aos poucos até que na década de 60 viríamos somar definitivamente o controle concentrado ao difuso. Foi através da Emenda Constitucional nº 16/65, onde ficou prevista uma ação especial para defesa "em tese" da Constituição: a Representação de Inconstitucionalidade. Apenas o Procurador-Geral da República tinha legitimidade para propô-la.
A partir da Constituição de 1988 advoga-se que o sistema principal de controle de constitucionalidade no Brasil torna-se o concentrado (contrariando toda nossa história institucional). Dessa forma o sistema de controle difuso, ainda que não eliminado, deve se posicionar subsidiaria e subservientemente frente ao concentrado. Esse entendimento vem corroborado pelas leis que atualmente regulam a Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade, além da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
3.1. Considerações Finais
O que se percebe atualmente é que o órgão de cúpula do Judiciário do nosso país vem, desde já algum tempo, em consonância com o Legislativo, referendando esta mudança no sistema de controle de constitucionalidade no Brasil propugnada por uma boa parte da doutrina.
Assim, conforme dissemos no começo deste trabalho, a doutrina que informa a supra citada decisão defende que o sistema de controle concentrado é superior ao difuso, deve se sobrepor a este, já que a possibilidade de questionamento incidental da constitucionalidade de lei ou ato normativo geraria insegurança jurídica.
Impressiona ver que o próprio Supremo Tribunal Federal se reconhece como participante de um processo de evolução segundo o qual ele se aproximaria cada vez mais das Cortes Constitucionais Européias (vide, e.g., os votos dos Ministros do STF na ADC-4). Nesse sentido, não há qualquer problema em se suspender processos dos demais Tribunais em que se esteja questionando uma lei sobre a qual o Supremo Tribunal emitiu um juízo provisório quanto à sua constitucionalidade. Aliás há, ao contrário, um "ganho" em o Supremo Tribunal Federal ordenar, sem apreciar nenhum dos casos concretos (nem as pretensões levantadas), a suspensão dos efeitos de decisões já tomadas por juízes em todo o País.
Perguntamos no início se essa concentração da apreciação da constitucionalidade de leis/atos normativos seria compatível com os princípios do Estado Democrático de Direito, e, quanto a este, ressaltamos a concepção que se tem hoje de espaço público.
Diante de todo o exposto, podemos concluir que não. O paradigma do Estado Democrático de Direito reclama para si um espaço público aberto, onde os cidadãos possam desenvolver seus argumentos de forma livre. Em consonância com isso, observamos que o poder que é disponibilizado aos cidadãos de poderem vir a juízo e questionarem incidentalmente a constitucionalidade de lei ou ato normativo representa um ganho democrático imenso às comunidades jurídicas que adotam o sistema difuso.
Levantamos a hipótese de que as recentes inovações legislativas, bem como a fundamentação doutrinária que está por trás delas não se coadunam com os princípios do Estado Democrático de Direito; entre eles a nova concepção que se dá às esferas pública e privada. Para apontar a contradição refizemos o entendimento que a relação público-privado assume no atual paradigma.
Por outro lado, mostramos que o sistema de controle difuso, ao invés de ser um inconveniente, um apêndice do sistema de garantias processuais constitucionais, é fundamental à construção de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. O sistema de controle difuso de constitucionalidade no Brasil representa uma arena extremamente importante para a formação discursiva da opinião e da vontade do Estado. E, ao contrário do que é advogado por alguns, ele é o meio ordinário de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos no Brasil, mesmo após a Constituição de 1988 (sendo o sistema concentrado modo "especial"), isto "não somente por razões históricas, jurisprudencialmente assentadas, mas em função da sistemática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, no quadro da Constituição da República" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002, pp. 159-160) [6].
Parece-nos que é desde instrumentos como esse, que possibilitam uma gama tão grande de participação (ao contrário de qualquer um dos procedimentos em controle concentrado) é que podemos vislumbrar que se possa colocar em prática a Teoria de Häberle de que "todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma" (HÄBERLE, 1997, p. 15).
Logo, se desde uma perspectiva pós-tradicional, os cidadãos são co-autores das normas feitas sob a égide da Constituição e, se todos os que estão sob a mesma — e a aplicam direta ou indiretamente no seu dia-a-dia — são legítimos intérpretes da mesma, eles devem ter garantida a possibilidade de influenciar na compreensão que o Estado possui daquela, isto é, eles devem poder "controlar" as leis/atos normativos.
É claro que o sistema difuso é completado pelo sistema de controle concentrado, desde que este seja também revisto. Assim, não é que sejamos contrários a este último, ou que não acreditemos em seu potencial democrático. O sistema concentrado de controle de constitucionalidade possui a importante função de "controle do risco", isto é, nessa forma de controle há um "caso" subjacente (não é um controle abstrato como se costuma dizer) que é justamente a lesão ou o risco de lesão — que também já é em si um dano. Todavia, a conformação que se tem dado a ele (cf. supra) não condiz com o paradigma do Estado Democrático de Direito, logo nossa crítica não a esta forma de controle em si, mas à sua configuração atual no Brasil.
Contudo, nós já possuímos um instituto que garante essa possibilidade: o sistema de controle difuso de constitucionalidade, que possui as condições para contribuir à manutenção de um espaço público de discussão.
Notas
01. Quanto à Constituição da Áustria, nos ensinava Kelsen que seria melhor que a Constituição previsse quais são os efeitos, se não o faz, "todas las cuestiones concernientes al efecto de uma ley inconstitucional pueden ser respondidas de formas contradictorias" (KELSEN, s/d, 87).
02. Aliás, um tal dispositivo como o analisado parece tributário da teoria kelseniana acerca do estabelecimento de um "quadro de intérpretes". A respeito, ver o seu texto Sobre a Teoria da Interpretação, principalmente p. 35 e segs. Para um estudo completo do tema, ver CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 31 e segs.
03. Nesse sentido, veja-se a valiosa contribuição de ROSENFELD, 2000, p. 153 e segs., ao trabalhar com seu conceito de "pluralismo compreensivo", o autor reclama que, para o debate devem participar até mesmo aqueles que não são tolerantes, que não estão dispostos ao mesmo.
04. A legitimidade das regras positivas não está na faticidade de usos e costumes, mas, em última instância, "atendiendo a si han sido producidas en un procedimiento legislativo que quepa considerar racional o si por lo menos hubieram podido ser justificadas desde puntos de vista pragmáticos, éticos y morales" (p. 92).
05. Habermas explica o paradoxo de como o Direito pode garantir legitimidade através da legalidade. Supera tanto uma dogmática que primeiro tentou fundar a legitimidade dos direitos civis em termos de autonomia moral, sem contudo cair na justificação metafísica de num Direito Natural Racional (ver pp. 151-154).
06. E, completa o autor, "[t]al compreensão seria a única que possibilitaria uma visão não excludente ou não incompatível dos dois modos de controle" (p. 160).
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