A lei da violência doméstica contra a mulher à luz do novo Código Penal: incorporação ou consolidação?

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09/06/2015 às 12:11
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A violência contra a mulher é, em Moçambique, uma componente estruturante nas relações de género, que conferem à mulher uma posição de subordinação. As próprias mulheres reconhecem ao homem o direito de agredi-las...

Sumário:

I. Introdução. II. O período anterior à LVD. III. O princípio da igualdade e a legitimação das acções afirmativas como fundamento da LVD. IV. A aprovação da LVD. V. A LVD à luz do Novo Código Penal. VI. Conclusão. VII. Bibliografia

I. Introdução

A aprovação do Código Penal, pela Lei n.º 35/2004, de 31 de Dezembro, trouxe na sociedade moçambicana expectativas de consagração de um verdadeiro quadro normativo promotor e protector dos bens mais importantes e necessários do indivíduo e da sociedade.

Essa asserção foi tomada em atenção aos mais basilares princípios da política, economia e sociedade, num meio que sofreu mutações e que o Velho Código de 1886 já se mostrava desajustado face a dinâmica coeva da sociedade, entretanto evoluída.

Relativamente à protecção dos direitos da mulher e da rapariga, pode se afirmar que o novo Código corrigiu, no geral, algum tratamento discriminatório que lhes era votado. Desde logo, eliminou a denominação do que no texto anterior eram chamados “crimes contra a honestidade”, atribuídos à mulher, sempre que o seu instinto de vergonha fosse atentado. A mulher vítima de violação ou de estupro era, para todos os propósitos, entendida como mulher desonesta[1]. Passou, em conformidade, a nova Lei a referir-se a essa categoria de crimes como crimes contra a liberdade sexual da mulher. Mais. O adultério da mulher era punido de forma mais gravosa que o do homem, e o Código atenuava o homicídio praticado pelo marido se houvesse adultério.

Estas considerações foram revistas no novo Código com vista a concretização cada vez maior do princípio fundamental da igualdade de género.

No entanto, apesar de algumas considerações de mérito que lhe foram atribuídas, o novo Código Penal não escapou a alguma polémica em volta de alguns artigos entendidos como violadores dos mais basilares direitos humanos, sobretudo das mulheres e das crianças.

Organizações da sociedade civil, congregadas numa coligação informal denominada Plataforma de Luta pelos Direitos Humanos no Código Penal denunciaram lacunas e violação dos direitos humanos, ao entenderem que o novo Código contrariava a Constituição da República e as convenções regionais e internacionais de que Moçambique é parte. Onde a questão era mais assertiva, prendia-se com a incorporação da Lei da Violência Doméstica no corpo do Código Penal (artigos 245.º a 257.º).

É que, de acordo com a Plataforma[2], a decisão do legislador foi “precipitada e prematura e, por isso, de desaconselhar”, porque a Lei da Violência Domestica (LVD), aprovada pela Lei n.º 29/2009, de 29 de Setembro, foi adoptada com o objectivo “especial” de promover os direitos humanos das mulheres, como sujeitos de direitos, com vista a acabar com a situação de desigualdade existente entre ela e o homem em todos os campos. Ou seja, com a aprovação da LVD, não fazia o Estado mais do que reafirmar o seu compromisso de, por meio de medidas legais, minimizar as desigualdades historicamente construídas em torno do homem e da mulher  e com isso promover a igualdade de direitos.

A mesma organização cívica arremessa contra o relativo pouco tempo de vigência da LVD, da ausência de estudos profundos sobre o seu impacto e dos problemas práticos que a mesma suscita. Entende que a sua incorporação no Código Penal só vai trazer muitos constrangimentos, sobretudo o da diluição da questão específica da violência contra a mulher para violência em termos gerais realizada no âmbito da família. É que ao tratar da violência doméstica de forma generalizada, sem um tónico especial na condição da mulher, agravar-se-á a situação da vulnerabilidade da mulher no tratamento judicial do crime de violência doméstica e, consequentemente, aumentará a sensação de impunidade e o problema da minimização do fenómeno no seio da sociedade em geral e, em particular, dos operadores judiciários (juízes, procuradores, advogados e polícia), perpetuando a violência sofrida pelas mulheres e raparigas em Moçambique[3].

Alias, essa mesma organização defende, por isso, a inconstitucionalidade material do novo Código Penal na matéria de interesse, na medida em que viola em termos substantivos o princípio constitucional e universal da igualdade, já que está provado que a maior parte dos casos de violência doméstica levados aos tribunais têm como vítimas o sujeito do sexo feminino[4].

O objectivo da presente apresentação é analisar a Lei da Violência Doméstica contra a Mulher à luz do novo Código Penal. Pretendemos especificamente elaborar se a previsão no Código Penal de um capítulo respeitante à violência doméstica dá lugar à incorporação da lei, ou trata-se tão somente de acto inócuo, do ponto de vista legal, sem deixar de atender a outras situações de violência ocorridas em ambiente familiar, mais não faz senão consolidar a própria lei da violência doméstica contra a mulher.

II. O Período anterior à LVD

Até à aprovação da LVD, em 2009, a violência doméstica em Moçambique era alvo de tratamento despiciendo. Não havia nenhuma lei em especial que a criminalizasse.

Existiam, contudo, algumas disposições na Constituição da República e em outros instrumentos internacionais e africanos, especificamente de direitos humanos, de que Moçambique é parte, nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticas, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e sobretudo a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Descriminação contra a Mulher (CEDAW)[5] que regulavam com alguma acuidade a violência cometida contra a mulher. Por outro lado, o Código Penal, o Código de Processo Penal e uma esparsa legislação civil que, isolada ou combinadamente, podiam ser aplicáveis à resolução de conflitos sobre a violência doméstica, sobretudo a praticada com a mulher.

Era sobretudo a Lei da Família, aprovada pela Lei n.º 10/2004, de 25 de Agosto, o instrumento que materializava a protecção da mulher contra a discriminação e violência doméstica. A Lei estabelece a violência doméstica praticada contra o cônjuge como motivo para separação litigiosa (artigo 181.º, n.º 1, al. a)) e fixa o fim da obrigatoriedade do dever de coabitação no casamento nos casos de violência doméstica (artigo 96.º, n.º 2, al. a)).

A Lei da família protege ainda as mulheres no acesso ao crédito, podendo elas contrair dívidas sem o conhecimento nem consentimento dos maridos, para além de proteger os direitos de propriedade de quem contrai casamento ou viva em união de facto.

Se, no campo legal, a família é o espaço privilegiado onde se cria, desenvolve e consolida a personalidade dos seus membros e se cultiva o diálogo e a entreajuda entre os membros (artigo 1.º, n.º da Lei da Família), no campo prático, sucede que, independentemente da sua natureza e limitações, a família, para alguns indivíduos, passou a representar o espaço onde são vítimas de diversas agressões e não o lugar privilegiado dos afectos e de realização pessoal.

Ouvir falar ou viver violência no seio familiar é uma realidade inegável. Em regra, a mulher e a criança, entendidas como as pessoas mais vulneráveis do ponto de vista físico e dependentes materiais tornaram-se o epicentro da violência doméstica[6]. Em causa estão factores de diversa ordem, com relevância para os de natureza cultural e para os sócio-económicos. Indissociáveis do fenómeno estão ainda razões que se prendem com o sistema económico, bem como políticas governamentais que agem por acção ou omissão.

Esta é a realidade do país em que muitas vezes é preciso que se prenda o pai para que um filho não veja a mãe ser agredida todos os dias.

A mulher se vê objecto de violência física, mas também sexual, psicológica e patrimonial.

Entrou-se numa situação grave, que necessitava de ser revertida[7]. Se é verdade que o recurso à lei penal geral permite, de certo modo, criminalizar algumas condutas susceptíveis de atentar contra a vida, a integridade física, patrimonial e a honra da pessoa, não traz, em especial, um tratamento dirigido à mulher vítima de violência doméstica[8]. Em consequência, no geral, os casos terminavam com conciliação ou desistência do procedimento criminal, ou ainda com aplicação de penas leves. A lei, portanto, a um só tempo, desestimulava a mulher a processar o marido ou companheiro agressor, e reforçava a impunidade presente na cultura e na prática. Qualquer participação pelo crime era motivo de escárnio e até estimulava mais agressões. Tudo somado, ficou banal a violência doméstica contra as mulheres.

Só recentemente é que a violência doméstica foi identificada como um problema social a ser levado a sério. À semelhança do que sucedeu nos países que primeiramente identificaram este fenómeno, no nosso país, os maus tratos às crianças foram denunciados pela comunidade pediátrica, enquanto a violência experimentada por muitas mulheres nos seus próprios lares contava com a denúncia e apoio de certas Organizações Não Governamentais, com destaque para a WLSA, HOPEM, Fórum Mulher, LeMuSiCa, Graal Moçambique, entre outras.

Na verdade, as organizações da sociedade civil é que constituíram grupo de pressão para a implementação no quadro jurídico interno de uma lei específica de protecção da mulher vítima de violência doméstica[9].

III. O Princípio da igualdade e a legitimação das acções afirmativas como fundamento da LVD

Os artigos 35.º e 36.º da Constituição da República garantem que os homens e as mulheres são iguais em todos os domínios da vida política, económica e social. Têm, por conseguinte, os mesmos direitos e deveres, não podendo sofrer descriminação em razão da raça, sexo, origem étnica, naturalidade e quaisquer outros considerandos.

Um dos principais problemas que enfrenta a LVD é a alegação dos seus opositores de que ela fere o princípio da igualdade. É que certo sendo que há homens vítimas de violência no ambiente doméstico e familiar, porque a lei não vai proteger qualquer vítima de violência inserida em ambiente familiar, onde se incluem as crianças e os idosos? Ou seja, dispondo restritivamente, não estaria a lei a ignorar o princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres em que assenta a Constituição da Republica, sendo portanto, ela própria, discriminatória e inconstitucional.

Sobre essa discussão, vale a pena referir Jorge Miranda e Rui Medeiros[10] quando dissertam sobre igualdade formal e igualdade material. Ensinam-nos estes autores portugueses que “o princípio da igualdade não é uma ideia única que não seja relativizada, ou que ignore situações de facto”. O conceito inicial de igualdade formal, ou seja de tratamento indiferenciado de todos os cidadãos à luz da lei é uma reminescência do liberalismo clássico em que se partia da premissa de uma humanidade robótica, padronizada e única, sem quaisquer laivos de diferenciação social. Sucede, porém, que já não se pode tratar em rigor de uma igualdade perante a lei, mas de uma igualdade feita pela lei, de uma igualdade através da lei.

É hoje a igualdade material que releva. Pelo princípio da igualdade material, conforme os mesmos autores, o Estado obriga-se, mediante intervenções de rectificação na ordem social a remover as mais profundas e perturbadoras injustiças sociais. O tratamento desigual de situações desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça.

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Mais adiante, defendem os mesmos autores, à luz do princípio da igualdade não há proibição de tratamento desigual pela lei, mas pelo arbítrio: “O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. Ou seja, as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas…”

É preciso ter presente que ao lado do direito à igualdade, surge, também, como direito fundamental, o direito à diferença e à diversidade. Se dois ou mais indivíduos estão inseridos em contextos sociais, económicos e políticos diferentes, onde haja superioridade fáctica, o princípio da igualdade material deve igualar os indivíduos em condições. É dever do Estado actuar para que a igualdade seja atingida pelos materialmente desiguais. E a questão do género tem sido por excelência o espelho dessa asseveração.

Ao longo dos tempos, um dos grupos de indivíduos, sujeitos de direitos, submetidos à inferiorização foram as mulheres. O fenómeno de violência contra a mulher é universal, transversal e relacional, isso por ser um tipo de violência que encontramos em todas as sociedades, nas mais diversas camadas sociais, e que tem por base uma relação de afecto. A violência contra a mulher é, de acordo com Conceição Osório e Eulália Temba[11], uma componente estruturante das relações entre homens e mulheres em Moçambique, que conferem à mulher uma posição de subordinação. As próprias mulheres reconhecem ao homem esse direito, tornando a violência mais eficaz[12].

As práticas de violência doméstica devem ser analisadas tendo em conta os impactos nos sistemas organizativos, nas relações de poder e nas transformações sociais e económicas (urbanização, desemprego, aumento da economia informal). A perda de algumas prerrogativas pelos homens (acesso directo a recursos, perda de autoridade, incremento dos rendimentos das mulheres) parece aumentar os riscos de violência doméstica.

Segundo Maria José Artur[13], muitas mulheres consideram aceitável a violência contra elas. A violência já vem integrada no pacote do casamento. O problema não é tanto de iliteracia das mulheres, mas, sobretudo, o de não saberem que têm afinal direitos. É interessante notar que mulheres há que nem sequer sabem que são vítimas de violência doméstica.

É assente na ideia da igualdade que o poder público passou a ter o dever de promoção do bem-estar, erradicando as desigualdades criadas e perpetuadas na questão do género. Esta transformação se dá através de acções afirmativas, referentes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais.

As acções afirmativas consistem em políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, do género, da idade, da origem, impostas ou sugeridas pelo Estado e por entidades privadas. Elas visam combater somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, enraizadas na sociedade.

Justamente, a partir do conceito da igualdade se objectiva a acção afirmativa, sendo que com ela se pretende “implementar uma igualdade concreta (igualdade material, no plano fáctico) que a igualdade formal por si só não é capaz de alcançar.

A esperança de que esse seja o tratamento e formatação de uma nova perspectiva sobre a mulher, encontrada numa lei própria que a protege de todo o tipo de abuso que ocorre no meio doméstico, em virtude da sua condição de mulher, integra o perfil  histórico dos Direitos Humanos na sua aferição  conjuntural. 

IV. A aprovação da LVD

A criminalização da violência doméstica é universalmente um fenómeno recente.

A ONU situou a violência baseada no género somente aquela dirigida à mulher em razão da sua condição de mulher, ou a violência que afecta as mulheres desproporcionalmente[14].

A ONU tem reconhecido a violência contra a mulher como um problema de saúde pública, bem como de violação de muitos direitos humanos, tais quais o direito à vida, à igualdade e não discriminação, da garantia de não sofrer tratamento degradante ou tortura, além do direito à privacidade e à saúde[15].

O principal marco histórico para a promoção do paradigma feminino em relação aos Direitos Humanos foi a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, onde se afirma, pela primeira vez, que “a violência contra a mulher é violação de direitos humanos”[16]. Mais reconhece-se que a violência baseada nas relações sociais de género é "incompatível com a dignidade e valor do ser humano e, deve ser eliminada (...) através de medidas legais e da acção nacional e a cooperação internacional nos campos do desenvolvimento económico e social, educativo, da saúde e apoio social".

Ainda na CEDAW, define-se violência de género como "todo o acto de violência baseado na pertença ao sexo feminino, que tenha como resultado um dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mulher, inclusivamente as ameaças de tais actos, a coacção ou a privação arbitrária da liberdade, tanto se produz na via pública como na privada".

O desenvolvimento de sistemas internacionais de Direitos Humanos, mundiais ou regionais, tornou obrigatório o reconhecimento de novos temas e sujeitos de direitos. Com isso, deu-se igualmente um reordenamento jurídico dos Estados, para que pudessem cumprir os seus papéis na forma democrática de Direito. Em Moçambique, esse reordenamento se deu através da Lei n.º 29/2009, de 29 de Setembro.

A Lei n.º 29/2009, de 29 de Setembro, também conhecida como Lei da Violência Doméstica, trouxe mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do consagrado na Constituição da República, na Lei da Família e nas convenções internacionais de que Moçambique é parte, nomeadamente na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Descriminação contra a Mulher e outras de interesse.

Trata-se de uma lei especial. Esta Lei trouxe alterações, em matérias de interesse, ao Código Penal, ao Código de Processo Penal e a parte relativa a execução de penas; estabeleceu ainda medidas de assistência e protecção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Agregou numa perspectiva sistémica e holística a actuação conjunta de entidades de natureza familiar, sanitária, policial e judiciária.

A aprovação da LVD foi o reconhecimento de que a violência doméstica está associada a relações de poder desiguais entre homens e mulheres e pretende assegurar que o Estado, suas instituições e outros sectores-chave desenvolvam iniciativas para combater a violência doméstica; forneçam medidas de protecção e de segurança para “tutelar ou restituir os direitos das mulheres vítimas de violência doméstica”, facilitar o acesso a assistência jurídica e aos tribunais assim como aos cuidados de saúde. 

A LVD estabeleceu um regime jurídico de prevenção, protecção e repressão à violência doméstica, introduzido também instrumentos de assistência às vítimas de violência doméstica. Um dos grandes benefícios que a LVD trouxe foi definir com clareza quais são os tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher – física, psicológica, sexual, patrimonial e moral – e estabelecer os procedimentos que as autoridades policiais e judiciais devem seguir se a mulher fizer a denúncia e precisar de protecção.

Seguindo a linha de que a violência doméstica é uma violação dos direitos humanos, a LVD conferiu natureza urgente (artigo 35.º) aos processos por crime de violência doméstica e estabeleceu medidas cautelares (artigo 6.º).

O crime é de natureza pública (artigo 21.º)[17], não relevando a desistência ou o perdão para a extinção do procedimento criminal. Entende-se que tratando-se a violência doméstica de violação dos direitos humanos, deixa de existir foro privado[18]. E faz sentido que assim seja. Consideremos os maus tratos, por exemplo. O crime de maus tratos não pode ser visto como uma ofensa corporal simples. É que no âmbito doméstico os maus tratos sucedem-se por ciclos que envolvem a certa altura um período de lua de mel e de reconciliação e mesmo antes disso uma relação amor-ódio, que leva as mulheres a querer desistir da queixa, para serem novamente vítimas de maus tratos. Não é por isso  aceitável que se impeça o Estado de agir perante uma situação clara de grave violação dos direitos humanos. Nessa orientação, qualquer pessoa, seja familiar, agente de saúde, agente de segurança social, membros da sociedade civil ou qualquer pessoa que tenha conhecimento dos factos, pode denunciar perante o Ministério Público ou autoridade policial (artigo 23.º). Pode, assim, o agressor ser processado, independentemente da vontade da vítima.

A condensação de diversas normas, seja de cunho protector, seja do ponto de vista preventivo e repressivo no mesmo diploma acabou por conferir maior visibilidade à espinhosa questão da violência doméstica contra a mulher. E ao tornar visível este fenómeno social, reforçando assim a criminalização de condutas violentas no seio familiar, com endurecimento de penas e medidas de protecção, acabou por destacar em definitivo a violência doméstica do campo das demais violências.

Ainda assim, o legislador não deixou de considerar o princípio da igualdade do género (artigo 36.º), sendo que, de facto, as vítimas a serem protegidas pela LVD podem ser as mulheres, mas também os homens, em igualdade de circunstâncias e com as necessárias adaptações.

Da mesma forma, dada a natureza especial da lei, ela procura prever o máximo possível do procedimento sem muitas remissões para a lei geral, para que esta seja acessível a qualquer cidadão.

Havendo remissões para a regra geral significa que as pessoas devem ter o Código de Processo Penal e é sabido que a linguagem jurídica não é inteligível para qualquer cidadão, sendo um mal que se pretende erradicar a partir da própria Lei. Com uma simples leitura da lei as pessoas devem saber que atitude tomar perante determinada situação e o que acontecerá em seguida.

V. A LVD à Luz do Novo Código Penal

A aprovação da Lei n.º 35/2014, de 31 de Dezembro, que introduz o novo Código Penal, trouxe concomitantemente a tipificação de novos crimes. Dentre eles, no Cap. IX, da Violência Domestica (artigos 245.º a 257.º)

A incorporação no Código Penal de matérias relativas à violência doméstica, quando as mesmas faziam parte de lesgislação especial tem constituído motivo de acirrada discussão entre os cultores de direito no país, sobretudo ao nível das organizações da sociedade civil.

Destacam-se, em conformidade, duas correntes. A primeira que entende tratar-se o Código Penal de uma lei nova e por conseguinte a previsão dessas matérias revoga tacitamente a LVD. É a aplicação do princípio lex posterior derogat lex prior.

Outra corrente situa-se na negação da revogação da LVD, porquanto trata-se de lex specialis.

A primeira pergunta que se pode fazer é apurar se no Código Penal, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 31 de Dezembro, o legislador tomou posição inequívoca de revogar a Lei n.º 29/2009, de 29 de Setembro?

Foi esta a vontade do legislador?

A resposta só pode ser negativa, pois a Lei n.º 35/2014, não revoga expressamente a Lei n.º 29/2009, porquanto em momento algum de tal diploma é feita a necessária referência ou remissão àquele artigo (artigo 2.º).

Este entendimento tem a ver com a previsão do artigo 7.º, n.º 3 do Código Civil, segundo o qual “a lei geral não revoga a lei especial, excepto se for outra a intenção inequívoca do legislador”.

A existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos, em um conjunto de vectores incisivos que a ela equivalham, pelo que, quando se pretenda, através duma lei geral, revogar leis especiais, designadamente quando se vise firmar um regime genérico e homogéneo, há que dizê-lo, recorrendo à revogação expressa ou, no mínimo, a uma menção revogatória clara, do género, são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais.

Não tendo havido revogação expressa, qual foi, então, a intenção do legislador da Lei n.º 35/2014, ao incorporar a violência doméstica no Código Penal?

Antes, porém, vale recordar a razão da Lei n.º 29/2009 como a expressão normativa de uma política com recorte específico no género, no caso mulher, mas aplicável também para o homem, em igualdade de circunstâncias. A par de discussões dogmáticas acerca de como deve ser concebida a violência do género, se exclusivamente contra a mulher ou não, mas também contra homens, crianças e idosos numa política de género mais ampla, o legislador moçambicano, através da Lei n.º 29/2009, situou-se na protecção exclusiva da mulher, mas também do homem por factos decorrentes do ambiente familiar[19].

Justamente para não ignorar outros sujeitos passivos que não cuidou a Lei n.º 29/2009, o novo Código Penal, aprovado pela Lei n.º 35/2014, estendeu o âmbito de protecção contra a violência doméstica para os demais “familiares[20]”, no âmbito doméstico. Se é verdade que o artigo 245.º do Código Penal, aprovado pela Lei n.º 35/2014, indica as vítimas da violência doméstica elencando o cônjuge, ex-cônjuge, pessoa com quem viva como tal, parceiros ou ex-parceiros, namorados ou ex-namorados, é precisamente na indicação de “familiares”, sem discriminação do sexo e fonte das relações de família onde se faz toda a diferença. Assim, qualquer um que seja violentado nos seus direitos de natureza física, patrimonial, económica e psicológica inserido em ambiente familiar pode socorrer-se do Código Penal nas previsões aludidas.

Assim é que a violência doméstica, nos termos do novo Código Penal, passa a ser tipificada genericamente como o tipo de violência que ocorre em ambiente familiar, seja entre os membros de uma mesma família, seja entre aqueles que partilham o mesmo espaço de habitação tendo como vítima qualquer pessoa, já não exclusivamente a mulher.

Trata-se de uma previsão genérica, não conflituante com a LVD.

Não é intenção do legislador revogar a LVD.

Não se tratará de uma revogação tácita?

A doutrina permite, a par da revogação expressa de preceitos legais, a revogação tácita dos mesmos. Como se pode notar, de modo distinto da revogação expressa, a revogação tácita, por depender da avaliação do intérprete, não tem nem pode ter carácter geral. Ou seja, enquanto um intérprete pode considerar ter havido revogação de uma norma, outro pode considerá-la ainda vigente, isso em razão da avaliação que cada um faz a respeito da contradição entre norma posterior e anterior. Portanto, como a revogação tácita não afecta o documento legal, ela é origem de indeterminações normativas.

Ainda assim, tratando-se do Código Penal de uma lei geral e a LVD de uma lei especial não havendo revogação expressa desta, para perceber o alcance da sua vigência há que atender aos princípios hermenêuticos sobre a sucessão da lei no tempo. Desde logo, atende-se o citado nº 3 do artigo 7º do Código Civil.

Como refere Abílio Neto[21] “ a lei que altera um regime geral não se presume que altere normas especiais que, para casos particulares, dispõem de modo diferente”.

No que toca ao nº 3 do artigo 7º do Código Civil, como ensina Vaz Serra[22], “ o problema é, pura e simplesmente, de interpretação da lei posterior, resumindo-se em apreciar se esta quer ou não revogar a lei especial anterior”.

Na fixação da palavra “inequívoca”, deve o intérprete ser particularmente exigente de modo a saber salvaguardar realidades peculiares que uma e outra norma pretendem proteger.

E é precisamente na percepção das peculiaridades de uma e de outra lei que vai residir toda a diferença. A LVD tem um carácter de actuação especial na protecção da mulher vítima de violência doméstica. Insere-se numa visão protectora e repressiva específica da “violência praticada contra a mulher”. É uma lei especial em relação ao Código Penal. Este, por seu turno, tem o seu âmbito de actuação na sanção genérica a violência no meio familiar, incluindo a praticada contra o homem, criança, adulto e qualquer dependente familiar. Em qualquer dos casos, a lei especial se completa com a lei geral.

Nada indicia que o legislador não mantivesse a intenção de excepcionar, relativamente à regra geral, as situações de violência contra a mulher.

Não o fez. A LVD está plenamente em vigor tanto na parte substantiva, bem como a adjectiva e cautelar.

Pode suceder entretanto que uma determinada conduta esteja prevista num e noutro instrumento legal. Qual é a lei a aplicar?

Diante dessa dúvida, é melhor voltarmos à teoria geral do direito e revisitarmos a questão de, quando duas normas se confrontam, haver critérios próprios que mostram qual a lei a aplicar.

Em caso de concurso real de infracções aplicar-se-ão as leis que melhor acautelam o bem jurídico violado, não havendo, no caso, grandes dissídios sobre essa matéria.

Diferente é haver incompatibilidade aparente, nomeadamente em concurso aparente de infracções. Havendo incompatibilidade entre as normas há que recorrer às técnicas de hermenêutica jurídica. Para a matéria de interesse, avulta o princípio de que lex specialis derogat generali, ou seja, a lei especial derroga a lei geral. Esta é a questão de especialidade, criada para que quando um delito se enquadre em duas ou mais leis, este não seja julgado pelas duas e sim se incida naquela lei que seja mais específica para o caso evitando assim o ne bis in idem, ou seja, ser julgado duas ou mais vezes pelo mesmo delito, mesmo que, diante de certa questão, uma lei seja abrandada pela outra.

A lei especial prevalece sempre sobre a lei geral, por se entender que é a que melhor acautela o bem jurídico em crise.

VI. Conclusão

Na nova ordem jurídica que se desenha é necessário mais do que a fuga a mera aplicação da letra fria da lei, que se baseia no positivismo, como manda a lei. Os novos paradigmas determinam que a interpretação e aplicação do direito deve ser teleológica e sistemática, levando em conta aspectos fáctico-históricos, partindo da norma positiva para, a partir de então, aplicá-la em face dos casos concretos e, mais importante, segundo o contexto social no qual se está inserido, tendo como base os princípios norteadores do Estado democrático de direito (artigo 3.º da Constituição da República).

Na verdade, procura-se, hoje, mais do que nunca, a justiça material.

Apesar de eventuais lacunas e imprecisões técnicas na sua redacção, a LVD se assume como um instrumento importante e basilar para prevenção e erradicação da violência do género, que precisa ser compreendida a partir da premissa da desigualdade material dos homens em relação às mulheres.

As situações de permanência da violência contra a mulher em ambiente familiar e doméstico não é uma consequência da inefectividade ou insuficiência do direito penal em regrar essas matérias. A dependência psicológica, económica, social, intelectual ou educacional, com grande força é o impeditivo para a superação do quadro que traz essa agressão. São essas causas que pela fragilidade explícita atingem mais as mulheres com menor expressão financeira ou académica.

O combate a violência domestica, particularmente a violência domestica contra a mulher, não se vai fazer unicamente com base na lei penal. A lei é somente um dos instrumentos a haver. Deve haver políticas educativas e materialização de medidas na área da prevenção e apoio às mulheres vítimas de violência.

Bibliografia

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ARTUR, Maria José, Violência contra as mulheres, percepções e estratégias. Perspectivas da sociedade civil, in “Outras Vozes”, nº 6, Fevereiro de 2004

MIRANDA, Jorge et al., Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Wolters Kluwer, Coimbra, 2010

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OXFAM, Sobre a Lei da violência domestica contra a mulher Por Oxfam Solidariedade em Moçambique.

SERRA, Vaz, RLJ, Ano 99º

Sobre o autor
Carlos Pedro Mondlane

- Juiz de Direito em Maputo (Moçambique);- Formador no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ); - Membro do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ);- Membro da Associação Moçambicana de Juízes (AMJ); - Promotor de Direitos Humanos;- Mestre em Direito Empresarial pela Universidade Católica de Moçambique - Licenciado em Direito pela Universidade Eduardo MondlaneAutor de:- Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança, Anotada e Comentada- Código de Processo Civil, Anotado e Comentado- Colectânea dos 15 Anos da Lei de Terras: Venda de Terra em Moçambique: Mito ou Realidade?- Manual Prático dos Direitos Humanos (no prelo)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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