INTRODUÇÃO
A violência doméstica contra a mulher é um drama vivido por milhares de mulheres, em diversos países e culturas. Neste trabalho, propomos pontuar uma das tipificações da violência, a saber, a violência psicológica contra a mulher na relação conjugal, cuja repercussão se configura como um sorrateiro e perverso insulto à integridade feminina, sendo tão prejudicial quanto os outros tipos de violência.
Para introduzirmos a temática, pontuaremos duas principais categorias que circunscrevem a violência contra a mulher, a saber, gênero e violência. É oportuno assinalarmos que a questão da violência contra a mulher começou a ser discutida e adentrou a agenda pública muito recentemente. O que não significa que se trata de um fenômeno recente; ao contrário, há muito tempo que milhares de mulheres vivenciam violências em seus lares, enfaticamente, por seu companheiro, ex-companheiro ou namorado.
No entanto, o assunto, que era considerado de cunho privado, ‘entre quatro paredes’, torna-se público recentemente, adquirindo o status de ‘questão social’ com o movimento feminista, requerendo do Estado intervenção através de políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. Em 1975, com a declaração do Ano Internacional da Mulher pela ONU, alavancou-se em nível mundial a discussão da condição feminina.
O movimento feminista no cenário brasileiro se consolidou sobretudo na década de 1970, marcado pela contestação da ordem política instituída no país desde o golpe militar de 1964. Tal movimento trouxe mudanças no trato das questões relacionadas à mulher, tanto nas esferas das instituições sociais e políticas, como no modelo tradicional das relações familiares de caráter autoritário e patriarcal, arraigado na cultura ocidental.
A partir dos estudos desse movimento, houve abertura para reflexões sobre a categoria ‘gênero’, possibilitando questionar e desmistificar a sobreposição masculina sobre a feminina, alicerçada na diferenciação biológica, assinalando a necessidade de discutir as violências enquanto campos de conhecimento e de intervenção social.
O movimento feminista tinha como uma das bandeiras de luta a emancipação das mulheres dos subjugos sob os quais historicamente estiveram, tanto na esfera pública como na privada; buscou a construção de uma nova subjetividade feminina e masculina, que mudasse esse quadro histórico de opressão vivenciado pelas mulheres. Para tal, realizou estudos e análises de elementos como o gênero, a violência e o poder simbólicos, que perpassam questões como a interiorização inconsciente do discurso de dominação pelo dominado, que, na maioria das vezes, o faz cúmplice da sua própria dominação. (MORAES, 2007, p. 16).
No enfrentamento das várias formas de violência contra a mulher, abordadas pelo movimento feminista, o trato especial da questão da violência psicológica contra a mulher na relação de conjugalidade se configura um desafio, uma vez que se encontra no cerne dos delicados vínculos afetivos, sendo necessário transpor as fronteiras da vida privada para seu enfrentamento, bem como outros obstáculos presentes no recinto familiar, na cultura, e nos costumes de vieses machistas, patriarcais e simbólicos.
1 GÊNERO E VIOLÊNCIA
Para adentrarmos a questão da violência psicológica contra a mulher na relação conjugal, requer-se, a priori, compreender melhor as complexas relações sociais nas quais estão inseridos homens e mulheres; para tal, nos valeremos da categoria gênero, que permite a apreensão das relações desiguais e hierárquicas presentes historicamente na sociedade, que não se explicam a partir do fator puramente biológico, mas também das construções sociais destas diferenças, que favorecem as desigualdades entre os sexos.
No cenário brasileiro, no final dos anos 80 e início dos anos 90, as mudanças teóricas nos estudos feministas começam a substituir a categoria “mulher” pela categoria “gênero”, devido ao entendimento de que o termo “gênero” possibilita um novo paradigma nas análises das questões referentes às mulheres. Em outros termos, o gênero analisa a relação do feminino e do masculino como uma relação socialmente construída.
A principal referência nos estudos sobre gênero no Brasil é a historiadora e feminista Joan Scott, evidenciada principalmente no seu artigo publicado em 1988, sob o título: “Gender: A useful category of historical analysis” (Gênero: uma categoria útil de análise histórica), em que conceitua gênero sob duas proposições: como um elemento constitutivo das relações sociais, alicerçado em diferenças percebidas entre os sexos; e como uma forma primária de significação das relações de poder.
Assinala Scott que gênero enquanto categoria de análise desconsidera o caráter fixo e permanente da oposição binária, homem/mulher, mas que gênero é mais amplo e se articula com outras formas de desigualdades sociais, se redefinindo em conjunto com outros elementos como social e política, mercado de trabalho, educação, parentesco, não só o sexo, mais também a classe, a raça e a etnia. Enquanto relação de poder, estão presentes os conflitos, as tensões, a hierarquia, a obediência e a desigualdade, seja por meio da manutenção dos poderes masculinos, seja na luta das mulheres pela ampliação e busca do poder.
Existem outros estudiosos que discorrem sobre gênero, pois conceituar o termo é mais abrangente do que apenas as diferenças biológicas. Nesse entendimento, ressaltamos a definição expressa por Cunha (2007), quando esta resume a concepção de gênero pautando-se nos estudos de Teresa de Lauretis:
[...] gênero é um conceito, um termo ou, ainda, uma categoria que designa o fenômeno que expressa um padrão específico de relações existentes entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres. Essas relações que, na maior parte das vezes, são marcadas pela desigualdade, são construídas pela própria sociedade em seu movimento. Assim, o gênero não é “natural”, não é fixo, imutável ou intransponível; mas pelo contrário, varia de acordo com as necessidades particulares de cada sociedade e de cada contexto histórico. (CUNHA, 2007, p. 33)
As teóricas Heleieth Saffioti e Sueli Souza Almeida as primeiras autoras brasileiras que utilizam a palavra gênero para as análises das desigualdades entre homens e mulheres na obra Violência de gênero: poder e impotência, também são referências relevantes. Postula Saffioti, citada por Cunha (2007, p.33), que a concepção de gênero se refere à construção social do masculino e feminino. Nessa perspectiva, Saffioti considera que:
[...] não se trata de perceber apenas corpos que entram em relação com outro. É a totalidade formada pelo corpo, pelo intelecto, pela emoção, pelo caráter do EU, que entra em relação com o outro. Cada ser humano é a história de suas relações sociais, perpassadas por antagonismos e contradições de gênero, classe, raça/etnia. (SAFFIOTI,1992, p. 210)
Para examinar a questão da violência contra a mulher, Saffioti utiliza o termo ‘patriarcado’. Na perspectiva marxista do patriarcado, inserida no Brasil pela socióloga Heleieth Saffioti, atrela a dominação masculina aos sistemas capitalista e racista. Nestes termos, o protagonista e beneficiado do patriarcado-capitalismo-racismo é homem, é rico e branco. E que o patriarcado além de se constituir um sistema de dominação, moldado pela ideologia machista, é ainda um sistema de exploração. Enquanto a dominação se situa, sobremodo, no âmbito político e ideológico, a exploração se reporta ao econômico. Segundo Saffioti, ‘patriarcado’:
[...] representa um poderoso instrumento de análise. Portanto, é muito importante mostrar que o gênero qualificado – o patriarcal – também constrói imagens do masculino e do feminismo, só que com base no processo de dominação-exploração de que as mulheres são alvo dos homens. (SAFFIOTI apud CUNHA, 2007, p.34)
Teoriza Saffioti que a ideologia machista socializa o homem para dominar a mulher e esta para se submeter ao "poder do macho" e que a violência contra as mulheres resultaria da socialização machista e por esse prisma, o homem se julgaria no suposto ‘direito’ de espancar sua mulher. Saffioti não comunga com a ideia de que as mulheres sejam "cúmplices" da violência, como assinalam alguns autores, em que se relativizam as noções de dominação masculina e vitimização feminina, apreendendo violência como uma forma de comunicação e um jogo no qual a mulher não é "vítima" senão "cúmplice".
Saffioti trabalha a questão da violência contra a mulher concebendo a ideia de vítima. Contudo, apesar de tê-la como "vítima", a socióloga também as conceitua como "sujeito" dentro de uma relação desigual de poder com os homens em que numa situação de violência, as mulheres se submetem, não porque "consintam", mas porque são forçadas a "ceder" porque têm menor poder.
Ressalta Saffioti nas palavras de Cunha (2007, p.35) que “como a ideologia de gênero não garante totalmente a obediência das vítimas potenciais às ordens do patriarca, este necessita fazer o uso da violência”. Nesse ínterim, a dominação masculina pelo viés patriarcal é influenciada pela perspectiva feminista e marxista, entendendo violência como expressão do patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social independente, no entanto, historicamente violentada pelo controle social masculino. Por isso, em suas análises utiliza a expressão ‘violência contra a mulher’, e não a ‘violência de gênero’, pois compreende que o termo “violência de gênero” é mais amplo e não se restringe apenas à mulher, podendo também abranger crianças, adolescentes independente do sexo.
É notória em nossa sociedade, a forte presença do ideário machista e discriminador contra a mulher, expresso de diversas formas, desde propagandas publicitárias com forte apelação sexual da imagem da mulher aos vários tipos de violência que ferem e interferem na saúde da mulher, na sua integridade física, moral e social. Num panorama mais abrangente, a violência é uma grave violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Segundo Teles e Melo:
Violência, em seu significado mais frequente, quer dizer uso de força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano. (TELES e MELO, 2003, p. 15)
Nesse aspecto, a pessoa agredida sofre uma série de violações, tendo sua liberdade tolhida, submetendo-se a um patamar de inferiorização, de anulação. Ressaltamos uma concepção interessante de violência trabalhada por Marilena Chauí, a qual apreende a violência como uma relação de força, no âmbito das relações interpessoais e das relações interclasses sociais. De acordo com seus estudos, a violência é:
Conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. [...] A violência deseja a sujeição consentida ou a supressão mediatizada pela vontade do outro que consente em ser suprimido na sua diferença. [...] a violência perfeita é aquela que resulta em alienação, identificação da vontade e da ação de alguém com a vontade e a ação contrária que a domina. (CHAUÍ, 1985, p. 35-37).
Pautamos-nos no que postula Chauí, salientamos que a violência psicológica que acontece contra a mulher na relação conjugal tem esse poder de submeter a mulher à vontade do companheiro, seja de forma “consentida” ou suprimida, reduzindo ou anulando sua alteridade para transformá-la em objeto e mantê-la à sua disposição, visando banir toda capacidade de resistência. (SILVA, 2008, p.32) Ainda é possível inferir que a violência psicológica contra a mulher, além de ser um tipo de violência dissimulada e perversa, se faz presente em todos os outros tipos de violência e prepara o “ambiente” para outras manifestações de violências, posto que, como explica Hirigoyen:
A maior parte dos cônjuges violentos primeiro prepara o terreno, aterrorizando a companheira. Não há violência física sem que antes não tenha havido violência psicológica. [...] Muitas das vítimas dizem que é a forma de abuso mais difícil de agüentar no quadro da vida de um casal. (HIRIGOYEN, 2006, p.29)
De acordo com a autora Hirigoyen (2006, p.14), “se quisermos diminuir as assustadoras estatísticas da violência no casal, será preciso intervir a partir do surgimento dos primeiros sinais, isto é, bem antes de ter início a agressão física”. Desse modo, é pertinente e relevante que se discuta e conheça mais sobre a violência psicologia contra a mulher, uma vez que esta fere e interfere na saúde psicofísica da mulher e em sua vida social, constatação esta ratificada por outros autores, como explicita Cunha (2007, p.37) ao postular que a violência contra a mulher e suas expressões “é um problema de saúde pública, que abala a integridade corporal e o estado psíquico e emocional da vítima, além de comprometer seu sentimento de segurança”; podendo ser os efeitos permanentes, como baixa auto-estima e auto-imagem, e tornarem as mulheres mais propensas à depressão e às vezes ao ideário suicida.
2 A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NA RELAÇÃO CONJUGAL
O desvelamento da violência psicológica contra a mulher vem ganhando espaço, porém, ainda é pouco discutida e publicizada, considerando sua gravidade e complexidade. Grosso modo, é comumente vista como uma violência “menos grave”, como se fosse um problema menor, quase insignificante se comparada às outras violências como a física ou sexual.
Podemos salientar que, a olhos nus, há uma aceitação social quando se trata da violência contra a mulher na relação conjugal, sendo apreendida no senso comum, como algo natural e alheio a intervenção de terceiros, que apenas causa indignação aquela que lesa o corpo, que deixa marcas visíveis; por vezes, até para quem a sofre a ignora ou não a associa à violência. Há uma tendência em materializar a violência psicológica, daí a dificuldade em identificá-la e reconhecê-la, porque se desconsidera a subjetividade dos atores, as segundas intenções das ações e as pesares das palavras proferidas.
Assim, as manifestações da violência psicológica contra a mulher na relação conjugal, muitas vezes, são desapercebidas pela vítima, pois podem aparecer diluídas por estarem associadas aos sentimentos. Segundo Cunha (2007) isso acontece porque:
A mulher vítima que ama o companheiro quase sempre não o identifica como uma pessoa capaz de arquitetar ou praticar atos violentos que possam prejudicá-la. Para ela, é difícil acreditar que o seu parceiro a faz sofrer deliberadamente, fazendo-a sentir o sabor do poder que ele detém. (p.105)
As mulheres estão conscientes de que a violência física é inaceitável, no entanto, o mesmo não se aplica no que se refere à violência psicológica. É mais comum acreditar que sua percepção da realidade é falsa, que é ela que está interpretando mal as coisas, que está exagerando. Duvidando do que sente e vive, por vezes é preciso que uma outra testemunha confirme o que ela não ousa expressar ou enxergar. (HIRIGOYEN, 2006, p.90)
Para melhor entendimento sobre a violência psicológica, a psiquiatra e psicanalista Hirigoyen (2006) traz uma concepção que ilustra as sutilezas dessa violência. De acordo com a autora:
Fala-se de violência psicológica quando uma pessoa adota uma série de atitudes e de expressões que visa a aviltar ou negar a maneira de ser de uma outra pessoa. Seus termos e seus gestos têm por finalidade desestabilizar ou ferir o outro. [...] Trata-se de um maltrato muito sutil: muitas vezes as vítimas dizem que o medo começa com o um olhar de desprezo, uma palavra humilhante, um tom ameaçador. Trata-se de, sem desferir qualquer golpe, causar um mal-estar no parceiro ou parceira, de criar uma tensão, de amedrontá-lo, a fim de mostrar o próprio poder. (p.28)
A partir desse entendimento, podemos apreender que a violência psicológica manifesta-se inicialmente de modo sorrateiro, os primeiros sinais se mostram de forma lenta e perspicaz, que progride em intensidade e conseqüências, desencadeando uma série de outras violências, como demonstra o ciclo da violência.
Considerando esse ciclo, postulado por Leonore Walker apud Ministério da Saúde (2001), em que são descritas as fases da violência no relacionamento conjugal, observa-se que nem todas as fases são marcadas pela agressão física, sendo relevante, nesse ínterim, compreender esse processo para que se possa prevenir e interromper a violência em seu estágio embrionário, ou seja, logo no início.
Na figura abaixo, podemos visualizar esse processo cíclico da violência na relação de conjugalidade e a presença da violência psicológica.
Figura 1 – Ciclo da violência no casal
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Fonte: Ministério da Saúde, 2001.
Evidencia-se entre a fase de lua-de-mel e a fase da tensão e entre esta e a fase do episódio agudo, o processo sutil da manifestação da violência psicológica e a ausência da agressão física nesse intervalo. Visualmente, expõe como esse processo sutil inicia, intensifica-se e propicia a incidência de outras violências, além de permanecer presente nas outras fases favorecendo a manutenção do ciclo da violência no casal. (SILVA, 2008, p.69)
Observa-se, no exposto, a constância da violência psicológica, com consequente cronificação e repetição, o que dificulta a ruptura do ciclo logo no início, em virtude, pode-se assim dizer, da ausência das “marcas no corpo da mulher”.
O reconhecimento legal da violência psicológica é recente, somente com a constituição da Lei Maria da Penha, Nº 11.340/2006, no Capítulo II, art. 7 e inciso II, é que a violência psicológica passou a ser classificada como forma de agressão doméstica e familiar contra a mulher. Anterior a esta Lei não havia nem na Constituição Federal de 1988, e nem no Código Penal Brasileiro, algum artigo específico que criminalizasse esse tipo de violência. Conforme rege a Lei Maria da Penha, a violência psicológica perpetrada contra a mulher é:
[...] entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. (Lei Nº 11.340/2006, Cap.II, art. 7, inciso II)
Ampliando as manifestações da natureza da violência psicológica contra a mulher na relação conjugal, pontuamos exemplos rotineiros, a saber: impedir a mulher de trabalhar fora de casa, privá-la financeiramente, ameaçá-la de espancamento e de morte, de tirar-lhe os filhos caso ela o deixe, de se suicidar ou se vingar dos parentes dela; criticá-la por meio de ironias e piadas a seu corpo; insinuações que ela o trai. Ou seja, uma série de coações psicológicas que, em linhas gerais, pode levar a mulher à depressão, ansiedade, distúrbios da alimentação e do sono, ao uso de álcool e drogas, à vergonha e à culpa, fobias e síndrome de pânico, inatividade física, tabagismo, baixa auto-estima, comportamentos instáveis, comportamento sexual inseguro. São efeitos colaterais difíceis de serem sanados, posto como assevera Hirigoyen (2006, p.173) “as marcas de uma agressão física acabam desaparecendo, ao passo que as ofensas, as humilhações deixam marcas indeléveis.” Na perspectiva da autora, alguns males da violência psicológica permanecem na mulher mesmo quando esta sai do contexto onde sofre a violência, ou se afaste do seu agressor, no caso, do marido ou companheiro.
Destarte, a violência psicológica representa um grave problema para a saúde da mulher, não podendo ser subestimada ou ignorada em relação a outras formas de violência contra a mulher na conjugalidade.
A relação conjugal é um ambiente muito propício para as expressões da violência contra a mulher, posto que, possui peculiaridades, que diferentes de outras violências, o agressor é alguém próximo, que convive com a vítima, que tem acesso direto a ela a qualquer hora, que conhece suas fragilidades devido à intimidade e liberdade que o casamento ou a união estável oferece. Este vínculo e contexto acabam potencializando a gravidade e sutileza da violência.
Histórica e culturalmente, a mulher fora tratada como propriedade do homem, mesmos nas relações estáveis ou consensuais, expresso nos termos como “minha mulher”, respaldando a idéia de posse e de supremacia masculina no controle da mulher como objeto, negando-lhe a autonomia e excluindo a condição de sujeito de direitos e igualdade. Alguns homens não aceitam o fim do relacionamento, a separação, pois, acreditam que a mulher lhes pertence e não será de outros, ou seja, coisifica a mulher, preferindo vê-la morta e acabam ponto fim a vida da companheira.
Constatou-se a partir da pesquisa realizada pela Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher nas casas-abrigo no Brasil, que o índice de violência conjugal foi de 91,31%, num total de 2.245 mulheres abrigadas, sendo que 22,31% sofreram violência por parte do marido; 68,68% do companheiro; 0,22%, do ex-companheiro; e 0,09%, do namorado. (ROCHA, 2007, p.50) Índices esses cada vez maiores, alarmantes, mesmo com as penalidades e medidas protetivas instituídas pela Lei Maria da Penha.
A visibilidade adquirida através das lutas feministas da violência conjugal contra a mulher, enquanto um problema público e o reconhecimento como uma violação aos direitos da mulher, requereu do Estado a formulação de políticas públicas com respostas institucionais de prevenção, segurança e punição.
É oportuno sublinharmos o papel das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher, enquanto uma das respostas apresentadas pelo Estado, com o dever de averiguar, apurar e tipificar os crimes cometidos contra as mulheres, através das quais as mulheres puderam denunciar seus agressores; proporcionando quantificar a incidência dessas violências, revelando à sociedade a envergadura do fenômeno da violência cometida contra as mulheres no âmbito doméstico e conjugal.
Conforme a pesquisa de Silva (2008, p.87), a incidência da violência psicológica registrada na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher da capital São Luís do Estado do Maranhão, no ano de 2005, as denúncias de ameaças (entendidas como violência psicológica), representou uma grande parte das ocorrências, passando a frente até das lesões corporais, sendo as ocorrências de ameaças 1.983, e as de lesões corporais 1.039.
Contudo, mesmo com a criação dessas delegacias especiais no Brasil, na década de 80, na prática, não se observou a redução dos crimes cometidos contra a mulher. Diariamente, os noticiários mostram casos de mulheres que perderam suas vidas por conta da violência cometida pelos maridos ou companheiros, mesmo tendo estas registrados diversos boletins de ocorrências, constando as ameaças de morte (violência psicológica).
Outra alternativa às mulheres que sofrem violência são as casas-abrigo criadas uma das ações do programa de políticas públicas de prevenção, assistência e combate à violência doméstica, conjugal e de gênero. São locais de moradia protegida e de atendimento integral a mulheres em situação de risco de vida iminente e aos seus filhos de menor idade. Trata-se de um serviço de caráter sigiloso e temporário, no qual as mulheres podem permanecer por um prazo determinado, aproximadamente 90 dias, período esse em que devem reunir condições necessárias para retomarem o curso de suas vidas. “Normalmente, a reação de uma mulher ante a agressão é, na maioria dos casos, limitada pelas opções que ela dispõe no momento em que é agredida.” (SILVA, 2008, p.90) E quando a mulher decide sair de casa, é porque já esgotaram suas forças e esperanças.
A busca externa por ajuda significa que as mulheres estão tentando romper com o ciclo de violência no qual estão inseridas. Na maioria das vezes, elas só denunciam quando suas forças e a esperança na mudança do comportamento do marido ou companheiro já se esgotaram, chegaram ao limite; ou saem de casa ou se sujeitam completamente a masmorra psíquica e as agressões físicas. Partindo para o tudo ou nada denunciam os companheiros, saem de casa e procuram abrigos. (SILVA, 2008, .83)
Do exposto, evidencia-se que as políticas públicas, leis e instituições voltadas para a coibição da violência contra a mulher são conquistas relevantes de reconhecimento dos direitos das mulheres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Procuramos no decorrer desse artigo problematizar a questão da violência contra a mulher no âmbito da questão de gênero, com enfoque na violência psicológica e suas manifestações sutis na relação conjugal.
A violência psicológica assim como as outras formas de violência contra a mulher, também se constitui um grave problema de saúde pública e, como tal, requer espaço de discussão, de forma que se amplie sua prevenção, bem como de políticas públicas específicas para o seu enfrentamento. Como expressa Hirigoyen (2006, p.13) “O parceiro, sem desferir o menor golpe, consegue destruir o outro.” Sendo de interesse público e imprescindível para a comunidade científica, o estudo desse abuso psicológico contra a mulher na conjugalidade; compreender como se inicia, com ar inofensivo, mas que gradativamente se instala emergindo relações de dominação e sujeição. De acordo com Hirigoyen, a violência física não acontece desvinculada da violência psicológica:
Na realidade, é impossível estabelecer uma distinção entre violência psicológica e violência física, pois quando um homem estapeia sua mulher a intenção não é de deixá-la de olho roxo, e sim de mostrar-lhe que é ele quem manda e que ela tem mais é que se comportar. O ganho visado pela violência é sempre a dominação. (HIRIGOYEN 2006, p.13)
A violência doméstica e conjugal que assola mulheres de várias faixas etárias, classes sociais e níveis culturais, torna-se cada vez mais estridente, não se trata de uma questão simplória e não deve ser banalizada como meras “brigas” de casais ou meio de resolver conflitos. A violência contra a mulher é uma clara violação aos direitos fundamentais da pessoa humana. Como também se constitui uma agressão à saúde da mulher, seu bem estar psicológico, pessoal e social. E não está desvinculada dos valores sociais estabelecidos, sendo pertinente o envolvimento da sociedade e ações governamentais no seu enfrentamento.
Por se tratar de um fenômeno diretamente relacionado à questão de gênero e às construções sociais abrangendo o homem e a mulher, é mister criar-se novas relações sociais entre os sexos bem mais igualitárias, de forma que se conviva com respeito, superando as práticas machistas inscritas histórica e culturalmente na sociedade. Sem transformar as diferenças em desigualdades.
A partir da sanção da Lei Maria da Penha houve maior visibilidade às ações de combate à violência contra a mulher, com aplicações concretas em relação ao agressor como sua prisão,e o fim das cestas básicas; maior segurança e proteção à mulher agredida através de espaços como casas- abrigo e assessoria jurídica especializada para questões legais. No entanto, ainda há muitos desafios a superar. Por exemplo, ações preventivas que publicize os primeiros sinais da violência psicológica facilitando a identificação logo que se manifeste evitando, que se agrave ou favoreça outras tipificações de violência.
Ademais, não podemos deixar que sejam tolhidos ou desacreditados os espaços e formas já instituídos de coibir a violência contra a mulher, nos fazendo retroceder em nossas conquistas. O esperado é a evolução de sua efetividade, uma constante conquista, partindo do pressuposto de que devem acompanhar a dinâmica de suas manifestações, para satisfazer o ideal de Justiça, uma vez que todas as formas de violências contra a mulher são uma violação aos direitos humanos e seu enfrentamento requer políticas públicas preventivas e resolutivas, respeitando o direito da mulher a uma vida livre de violência.
REFERÊNCIAS
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