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Teoria Pura do Direito e sociologia compreensiva

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01/05/2003 às 00:00
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Conclusão

            A Teoria Pura do Direito foi desenvolvida relativamente há muito pouco tempo, mas já nasceu recebendo críticas por seu "reducionismo" de modo que é entendida, de maneira geral, como uma teoria "ultrapassada". A influência que exerceu na teoria do Direito parece ter sido grande, no entanto. Todos os autores a citam. Conceitos como o de pessoa jurídica ganharam sua marca e idéias como a de que os "direitos reais" não são direitos sobre coisas, mas a obrigação de todos frente a apenas um foram quase que unanimemente acatadas. Por outro lado, a marca de reducionista ainda é amargada por esta teoria.

            Que Kelsen "reduz" o Direito à um sistema de normas não há qualquer dúvida, mas há, por certo, no que diz respeito a ser isso um equívoco.

            Juristas afirmam, como Miguel Reale e Roberto Lyra Filho, que Kelsen perdeu em sua teoria duas dimensões essenciais do Direito: a dimensão fatual e a valorativa. Ao analisar o Direito como um sistema de normas sem referência à sua realidade social, Kelsen retirou dele a Sociologia. Ao não considerar a dimensão valorativa, retirou o que chama de "especulações metafísicas" ou "debates políticos".

            O Direito, no entanto, segundo dizem, seria um "fato social", seria parte da sociedade e deveria, por isso, ser estudado em suas "relações" com a mesma. (Sociedade é aqui entendida, basicamente, por um grupo relativamente grande de seres humanos em determinado espaço e tempo). Além disso, as normas jurídicas seriam a positivação de valores sociais, que são de alguma forma nascidos nas "relações sociais" ou "lutas de classes".

            Como a sociologia estuda estes fatos sociais, estas lutas de classes e estas relações sociais, é uma disciplina essencial ao Jurista e configura quase que a antítese da Teoria Pura do Direito de Kelsen.

            Procurei mostrar, ao longo deste trabalho, que esta oposição entre Kelsen e a sociologia decorre de que Kelsen assume uma postura de distinção entre ser e dever ser e a sociologia é entendida como uma disciplina capaz de revelar o dever ser real, correto ou justo, a partir de uma análise científica de fatos da ordem do ser, além de ser capaz de encontrar fatores sociais que explicam como e porque Kelsen formulou sua teoria, sendo ela própria uma espécie de dever ser (ideologia) que se podia explicar por fatos da ordem do ser.

            Se a sociologia efetivamente pudesse fazê-lo, haveria razão em contrapô-la à teoria pura do direito, no entanto, a sociologia não tem (ou ao menos não é algo unânime que o tenha) qualquer poder prescritivo ou normativo e as vinculações do pensamento kelseniano a fatos sociais são tanto contraditórias como pouco fundamentadas.

            Por outro lado, mesmo a crítica de que o autor sustenta ou legitima uma determinada ordem social, melhor dizendo, o status quo é infundada uma vez que o autor afirma não haver qualquer razão natural ou sobrenatural para a observância das leis estatais.

            Em um segundo momento, procurei mostrar que a Teoria Pura do Direito é perfeitamente compatível com uma sociologia não prescritiva, a sociologia weberiana, e que, não apenas o é para uma descrição do Direito, mas também pode com grande valia (para uma descrição e explicação compreensiva da ação social) ser aproveitada na análise da sociedade.

            Kelsen, no próprio prefácio da primeira edição de sua "Teoria Pura do Direito" já não esperava acolhida, justamente por ter como objetivo a explicação não-orientada por valores políticos do Direito. As críticas que a ele se dirigiram foram, em geral, dirigidos a esse objetivo.

            A sociologia, porém, não é estranha ao objetivo de Kelsen, e descrever a sociedade de maneira alheia aos valores políticos é ainda uma tarefa a ser realizada pelos sociólogos. Se, de fato, é um árduo trabalho descrever e compreender ou explicar a sociedade e o comportamento humano cientificamente, não é, porém algo de que a sociologia tenha desistido. Uma ciência da sociedade, hoje como ontem, não parece ainda mais útil que uma crença normativa a respeito dela, mas a sociologia assume o "ideal de toda ciência: objetividade e exatidão" (Kelsen, 2000: XIII).

            Por fim, gostaria de ressaltar uma contribuição de Kelsen para o conhecimento sociológico: a distinção entre a natureza e a sociedade. Esta distinção implica em uma separação entre ciências sociais normativas por um lado, e ciências sociais causais por outro, conforme estas estudem a sociedade como fatos relacionados causalmente ou como conteúdos de sentido relacionados normativamente. Esta ciência social normativa é, também, objetiva, mesmo lidando com valores, lógica, mesmo que seja diferente das ciências naturais e precisa, ainda que nem sempre empírica. A aliança desta ciência social normativa com a sociologia compreensiva (ciência social causal) pode resultar em um conhecimento acerca da sociedade que, se não chega a determinar leis causais e oferecer explicações exatas, ao menos pode ser preciso em suas afirmações e lógico em seu desenvolvimento.


Notas

            01. (Lyra Filho, 1999: 16) O autor dedica um capítulo inteiro para conceituar ideologia, mas penso que não prejudico seu pensamento com esta breve citação, lembrando apenas que o autor esclarece que a ideologia não é a falsa consciência de um indivíduo isolado, mas sim um fato social, condicionado pelas relações de produção e pelas lutas de classe.

            02. (Lyra Filho, 1999: 11) grifo do autor.

            03. Considero particularmente difícil distinguir, em certos autores como Lyra Filho e Boaventura de Sousa Santos, o que, dentre aquilo que dizem, refere-se à teoria e o que se refere à empiria. Tem-se a impressão de que a ciência cria o mundo empírico ou o modela pelo simples ato de descreve-lo. Assim, se o positivismo descreve o direito como sendo constituído única e exclusivamente pelas normas estatais, então não comete apenas um erro empírico, mas causa conseqüências maléficas. A teoria transforma o mundo. Da mesma forma, alargar a visão do direito, em Lyra Filho, ou propor uma transformação do paradigma, em Boaventura, não significa transformar o modo como a ciência olha para a realidade, mas transformar a realidade mesmo.

            04. (Lyra Filho, 1999: 30). Aqui, Lyra Filho apresenta o conceito positivista de Direito, que é bastante próximo de seu conceito de "legislação". No entanto, ao invés de travar a discussão com os termos comparáveis, Lyra insiste em criticar o positivismo por sua redução do Direito às leis. Dar este ou aquele nome ao conjunto de leis parece ser das mais irrelevantes questões, mas, a fim de ter uma presa fácil a que criticar, Lyra filho constrói seu adversário como um ser ambíguo que adota o conceito de Direito de Lyra Filho (ou seja, algo próximo ao conceito de Justiça) mas afirma que é a legislação. A questão é que, para Lyra Filho, o positivismo reduz a Justiça, e não a legislação ao conjunto de leis, mas a definição positivista de direito corresponde precisamente à legislação.

            05. (Lyra Filho, 1999: 33). grifo do autor.

            06. Por enquanto cumpre apresentar o pensamento de Lyra Filho, deixando para mais adiante uma comparação com Kelsen, mas devo registrar que Lyra Filho não cita a fonte das passagens que menciona, o que dificulta a pesquisa, no sentido de que não se pode saber em que obra ou trecho Kelsen faz as afirmações mencionadas. Entretanto, em nenhum lugar das obras pesquisadas de Hans Kelsen pude encontrar afirmações semelhantes. Não encontrei qualquer tentativa de legitimar o direito através do recurso à "paz social", como afirma Lyra Filho. Uma preocupação constante de Kelsen é a de supor o direito legítimo, ou seja, reconhecer que não há qualquer razão, jurídica, moral ou natural, para que se obedeça ao direito, a não ser a suposição de sua validade. As afirmações feitas são contrárias ao principal ponto da obra de Kelsen, o que me faz levantar suspeitas acerta do domínio que Lyra Filho tem da teoria de Kelsen.

            07. O que o autor chama de "positivismo de esquerda" é a aceitação de que o Direito é um conjunto de leis postas pelo Estado aliada à caracterização do Estado como um instrumento de dominação. Ou seja, positivista de esquerda é o pensamento marxista que não faz a distinção entre lei e Direito que Lyra Filho faz.

            08. (Lyra Filho, 1999: 50) grifo do autor.

            09. Na continuação da passagem citada o autor afirma que deve-se distinguir Sociologia do Direito de Sociologia Jurídica. Aquela seria acerca de um direito específico, enquanto que esta acerca do Direito em geral. Ora, se admitirmos o Direito como os princípios libertadores que emanam da práxis social, teremos que haveria uma sociologia acerca de cada princípio libertador. É nítido que Lyra Filho pretende aqui afirmar que haveria uma sociologia para cada Direito estatal, entendido como um conjunto de normas. É nítida a imprecisão conceitual ainda quando se pretende conceituar duas formas distintas da sociologia.

            10. é nítida a distinção deste conceito com o conceito Durkheimiano de anomia. Não se deve tomar um pelo outro.

            11. Poder-se-ia perguntar até que ponto Kelsen realmente entende a natureza como uma ordem criada pela mente humana. Mais sensato seria afirmar que o modo como o homem descreve a natureza, relacionando elementos segundo a lei da causalidade é artificial, no entanto, a descrição feita por tal meio é descrição de uma realidade empírica, de existência concreta. Por certo o metal não se expande ao ser aquecido por causa da lei causal que afirma a relação entre o metal e o calor, mas, de fato, o metal expande-se ao ser aquecido. O princípio da causalidade os elementos, que pela relação que lhes são atribuídos, são denominados "natureza".

            12. Talvez devesse tê-lo feito ao início da exposição sobre Hans Kelsen, mas achei que seria melhor tratar primeiramente das idéias e noções mais gerais, partindo da natureza, passando pela sociedade, pelo homem e pela ciência, para só então esclarecer como a ciência, aos olhos de Kelsen, vê o Direito, feito pelo homem, parte da sociedade e distinto da natureza.

            13. Segundo Kelsen: "Do ponto de vista de uma ciência do Direito que descreva o ordenamento jurídico em proposições jurídicas, a função daquele ordenamento consiste em ligar a certos pressupostos, por ele determinados, ,um ato de coerção, por ele igualmente fixado, como conseqüência" (Kelsen, 2000: 162)

            14. Houve casos de o autor citar uma frase de Kelsen, com precisão de página, que quando lida no contexto original, ou melhor no parágrafo original, assumia um sentido totalmente diverso daquele que o autor lhe atribuiu. Houve também um autor que afirma ser a "Teoria Pura do Direito" uma obra fundamental para compreender o pensamento burguês decadente, mas critica essa teoria fazendo referência apenas a seus comentadores, ou seja, sem citar a obra fundamental sequer uma vez ou fazer-lhe referência.

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            15. Kelsen afirma: "A autoridade política que cria o Direito, e, portanto, que deseja conservá-lo pode ter dúvida em saber se uma cognição puramente científica dos seus produtos, livre de qualquer ideologia política, é desejável. De modo semelhante, as forças inclinadas a destruir a ordem presente e substituí-la por outra supostamente melhor tampouco terão muita serventia para uma tal cognição do Direito. Mas uma ciência do Direito não faz caso nem de um, nem do outro. É tal tipo de ciência que a teoria pura do Direito deseja ser" (Kelsen, 2000b: XXXII)

            16. Segundo Kelsen: "É precisamente por seu caráter antiideológico que a teoria pura do Direito prova ser uma verdadeira ciência do Direito" (Kelsen, 2000b: XXXVII).

            17. Esta citação não é de qualquer texto de Hans Kelsen, mas de Edgar Bodenheimer.

            18. Genro afirma que a leitura da Teoria Pura do Direito é fundamental para compreender o pensamento da decadente burguesia, mas não a cita sequer uma vez em seu texto: "A obra que sintetiza a filosofia jurídica de Kelsen é a Teoria Pura do Direito. Uma leitura deste trabalho é fundamental para compreender o ponto de vista mais acabado da burguesia, já em crise profunda, sobre o Direito." (Genro, 1988; 27)

            19. Princípio segundo o qual uma norma posterior revoga a norma anterior. O tema será tratado mais adiante, quando da exposição da Teoria Pura do Direito, mais especificamente, daquilo que Kelsen chama de Dinâmica Jurídica.

            20. A distinção entre constituição em sentido formal e em sentido material, que será tratada mais à frente, é, em suma, a seguinte: constituição em sentido formal é o conjunto de normas postas em um documento que constitui a lei maior de um Estado, que tem por função regrar a produção de normas, mas pode conter normas de direito civil ou penal, por exemplo. Já constituição em sentido material é o conjunto de normas, pertencentes ou não ao documento constitucional, que regulamentam a produção e aplicação de normas.

            21. idem p 8.

            22. Maria Helena Diniz também explica o positivismo por suas bases sociais, mas de modo diferente de Lyra Filho: "O racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria kelseniana, expressão máxima do estrito positivismo jurídico, é uma repercussão ideológica de sua época, é uma conseqüência da decadência do mundo capitalista – liberal, marcada pela Primeira Guerra Mundial. Para a ciência jurídica, segundo essa doutrina, não importa o conteúdo do direito. Isto porque, como nos ensinam Machado Neto e Legaz y Lacambra, essa teoria, fruto da época denominada ‘racionalização do poder’, devia reconhecer a existência de ordens jurídicas de conteúdo político, diverso do conteúdo liberal ou social-democrático que exibia nos povos europeus ocidentais. Deveria constituir-se numa teoria do Direito que tivesse condições conceituais para admitir a existência, ao lado do direito democrático-liberal, de um direito soviético, fascista, nazista. Daí a sua vocação adiáfora da mais absoluta neutralidade em face do conteúdo político, ético, religioso, das normas jurídicas. A teoria pura nasce, portanto, como uma crítica das concepções dominantes na época sobre os problemas do direito público e da teoria do Estado." (Diniz, 1995: 105)

            23. "A comunidade consiste na ordem normativa que regula a conduta de uma pluralidade de indivíduos. Diz-se, na verdade, que a Ordem constitui a comunidade. Mas ordem e comunidade não são dói objetos distintos. Uma comunidade de indivíduos, quer dizer, aquilo que a estes ~e comum, consiste apenas neste ordem que regula a sua conduta." (Kelsen, 2000: 168)

            24. Segundo Lyra Filho, não se pode ver o Direito como restrição à liberdade: "Também é um erro ver o direito como pura restrição à liberdade, pois, ao contrário, ele constitui a afirmação da liberdade conscientizada e viável, na coexistência social; e as restrições que impõe à liberdade de cada um legitimam-se apenas na medida em que garantem a liberdade de todos. A absoluta liberdade de todos, obviamente, redundaria em liberdade para ninguém, pois tantas liberdades particulares atropelariam a liberdade geral" (Lyra Filho, 1999: 89). Uma concepção como esta é, a meu ver, bastante "conservadora", preocupada em garantir a ordem e sustentar o direito. A necessidade de afirmar-se progressista, aliada à veneração ao Direito, faz com que, na minha opinião, Lyra Filho sustente uma posição pretensamente "revolucionária" e praticamente "conservadora".

            25. Karl Popper (1974) notara esta forma de valorização do porvir, mostrando que a concepção de que o futuro será, necessariamente, melhor do que o presente, encerra em si a idéia de que o presente é, definitivamente, melhor do que o passado

            26. Note-se que o sentido que Kelsen dá à norma fundamental é o de um pressuposto, não o de uma legitimação de fato. Como uma norma só pode advir de outra norma e não há qualquer razão (norma) para que obedeçamos ao direito mas o jurista estuda o direito como um dever ser, Kelsen supõe a norma fundamental. A compreensão disto parece ser, de alguma forma, vedada a certos autores, fato que não consigo explicar de forma alguma.

            27. Esta apresentação do pensamento kelseniano não segue claramente o esquema de apresentação adotado por Kelsen, seja na Teoria Pura do Direito, seja na Teoria Geral do Direito e do Estado, o que implica na não percepção de um elemento interessante: o autor trata do fundamento de validade e dos princípios de tal fundamento (serão apresentados mais adiante) como referentes a um sistema de normas, e não a um sistema jurídico de normas, do qual o autor apenas trata mais à frente em sua obra, quando trata do fundamento de validade do Direito. Penso ser este um indício de que a Teoria Pura do Direito não é aplicável apenas ao Direito, mas antes, a qualquer ordem normativa.

            28. Acerca do conceito de Constituição, cf infra.

            29. Se aceitarmos que as ordens sociais podem ser objeto de um estudo normativo tal como o que Kelsen faz acerca do Direito, alguns ordenamentos, como o Direito Canônico teriam uma característica bastante interessante, a saber, têm a pretensão de ser válidos para a conduta de indivíduos que não os consideram como tais. Assim, um católico considera que todas as pessoas, qualquer que seja sua religião, estão obrigadas a não mentir, não adorar vários deuses, etc. Como as sanções nestes casos são aplicadas mesmo a tais indivíduos (também o não cristão que viole os Dez Mandamentos, expiará seus pecados no purgatório ou penará eternamente no inferno, além das sanções imanentes, como o desprezo, a exclusão, o ridículo, etc.) este ordenamento mesmo aí tem eficácia. Kelsen, por exemplo, não compartilha da opinião de Lyra Filho de que sua teoria deve ser capaz de ajudar a transformar a ordem estabelecida, mas mesmo assim recebe como sanção a crítica de ideológico, por não ter observado uma norma que não considera válida. Assim, o limite pessoal de validade de um ordenamento não é dado pela opinião subjetiva dos atores de que ele é válido, mas pelo próprio ordenamento, na medida em que é eficaz (capaz de impor sanções).

            30. Afirma o autor: "Como todas as normas de um ordenamento deste tipo já estão contidas no conteúdo da norma pressuposta, elas podem ser deduzidas daquela pela via de uma operação lógica, através de uma conclusão do geral para o particular" (Kelsen, 2000: 218).

            31. Toda ordem normativa tem uma constituição, mesmo a mais absoluta tirania. Neste caso o que a constituição estabelece é que se deva obedecer a toda e qualquer ordem, expressa por qualquer forma que seja, desde que postas por um determinado indivíduo, o tirano, sob pena de sofrer qualquer sanção que o mesmo tirano expresse.

            32. Quanto maior a competência para criação de normas por meio de negócio jurídico, diz-se que mais democrático é o ordenamento, uma vez que o negócio jurídico é um fato produtor de normas, e a democracia é um governo do povo, e o governo consiste justamente na criação e aplicação de normas.

            33. A sustentação de uma postura de neutralidade axiológica em nenhum momento leva Kelsen a impor o capitalismo como algo necessário ou como um bem, antes permite que ele, mesmo sendo confessadamente democrata, admita outros sistemas políticos como Direito, tanto em um plano cognitivo como a possibilidade fatual de os países capitalistas tornarem-se socialistas ou mesmo e os regimes totalitários baseados em preconceitos étnicos dominarem o Direito dos países ocidentais, o que, levando em consideração o período histórico em que escreve e vive o autor, constitui um intrigante problema para a sociologia do conhecimento.

            34. A obra de Kelsen intitulada "Natruraleza y Sociedad" (1945) é repleta de exemplos como o que segue, que Kelsen cita de Heckewelder: "Encontré asimismo que los indios, por una razón similar, respetaban grandemente a la serpiente de cascabel, a la que le llamaban su abuelo y no lo destruían por nada del mundo. Cierto día caminando con un indio viejo por los bancos del Muskingun, vi una gran serpiente cascabel tendida através de la senda, y me dispuse a matarla. El indio me lo prohibió inmediatamente; porque la serpiente, dijo, es el abuelo de los indios, y está colocada aquí intencionalmente, para guardarnos y avisarnos del peligro inminente con su cascabel, lo que es lo mismo que si nos dijera "¡alerta!" Además, agregó, si matáramos a algunas de ellas, las otras lo sabrían bien pronto, y toda la raza se alzaría contra nosotros y nos mordería. Le hice notar que los hombres blancos no sentían ese temor, ya que mataban todas las serpientes de cascabel que encontraban. Al oír esto preguntó si algún hombre blanco había sido mordido por aquellos animales, y contesté naturalmente en forma alternativa. ‘no es de extreñar, entonces’: replicó, ‘¡tenéis la culpa de ello! Lo que habeis hecho es como declararles la guerra, y vais a encontrar en vuestro país, donde no dejarán de hacer frecuentes incursiones. Son un enemigo muy peligroso; guardaos de irritarlas en nuestro país; ellas y sus nietos están en buenos términos e ni ellas ni nosotros no dañaremos" (Kelsen, 1945: 130).

            35. Na terminologia kelseniana, o uso do termo direito subjetivo é restrito à atribuição que um determinado indivíduo recebe do estado para entrar ou não com uma "ação" judicial contra um outro indivíduo de quem demande algo determinado. O direito subjetivo à vida, por exemplo, como reflexo da norma que proscreve o assassinato, não é, para Kelsen, um direito subjetivo, mas antes, um direito reflexo.

            36. Diz o autor: "A este respeito recorde-se uma vez mais que, se a proposição jurídica é formulada com o sentido de que, sob determinadas condições ou pressupostos, deve intervir um determinado ato de coação, a palavra ‘deve’ nada diz sobre a questão de saber se a aplicação do ato coercitivo constitui conteúdo de um dever jurídico, de uma permissão positiva ou de uma atribuição de competência (autorização), antes, as três hipóteses são igualmente abrangidas". (Kelsen, 2000: 133).

            37. Pessoa Jurídica não é sinônimo de corporação, esta, como qualquer comunidade, organização ou instituição são, para Kelsen, ordens normativas, enquanto que aquela é o conjunto de direitos e deveres de um determinado indivíduo ou corporação.

            38. Kelsen afirma: "Se apenas se toma em conta o Direito estadual, e não o Direito internacional, o estatuto de uma corporação representa uma ordem jurídica parcial em confronto com a ordem jurídica estadual como ordem jurídica global."(Kelsen, 2000: 197).

            39. Afirma Kelsen que " na medida em que a divisão do trabalho significa que certas funções não podem ser desempenhadas por todo e qualquer indivíduo e, portanto, que não o podem ser por todos os indivíduos sujeitos a uma ordem normativa, mas devem ser realizadas apenas por determinados indivíduos qualificados de certa maneira por aquela ordem normativa, e que a função nestas precisas circunstâncias é concebida como relativamente centralizada, divisão do trabalho e centralização relativa coincidem". (Kelsen: 2000: 176).

            40. Cumpre não confundir órgão com pessoa. Ambos têm sua conduta normatizada pela ordem, mas só aquele tem sua conduta normatizada segundo o princípio da divisão do trabalho.

            41. "Mas não há uma razão suficiente para não conceber a conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da causalidade, ou seja, para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito (...) Na medida em que uma ciência que descreve e explica por esta forma a conduta humana seja, por ter como objeto a conduta dos homens uns em face dos outros, qualificada de ciência social, tal ciência social não pode ser essencialmente distinta das ciências naturais". (Kelsen, 2000: 85).

            42. Afirma o autor: "Com referência a ‘formas sociais’ (em oposição a ‘organismos’), nós nos encontramos na situação, para lá da simples determinação das suas conexões e regras (‘leis’), de chegar a um resultado que é negado às ciências naturais (no sentido do estabelecimento e da formulação de leis causais referentes aos fenômenos e às formas, e da explicação destes através das mesmas leis): a sociologia pode ‘compreender’ o comportamento dos indivíduos que participam neste todo, ao passo que, contrariamente, não podemos ‘compreender’ o comportamento, por exemplo, das células, mas apenas apreendê-lo funcionalmente e, em seguida, determina-lo com a ajuda de deis às quais estão submetidos. Este maior resultado da explicação interpretativa em comparação com a explicação observadora tem certamente como preço o caráter essencialmente mais hipotético e fragmentário dos resultados obtidos pela interpretação. Mas ela é exatamente o específico do conhecimento sociológico." (Weber, 2001: 409).

            43. Afirma o autor: "Exemplos de aplicações do princípio da imputação no domínio das ciências sociais normativas são: quando alguém te fez algum bem, deves mostrar-te agradecido; quando alguém sacrifica sua vida pela pátria, a sua memória deve ser honrada; quando alguém pecou, deve fazer penitência." (Kelsen, 2000: 100).

            44. Afirmar que a teoria pura descreve os diferentes sistemas de conteúdos de sentido de forma não contraditória não é o mesmo que afirmar que a mente humana assim os criou, percebe ou deveria perceber. A descrição é que não pode ser contraditória, não o sistema de conteúdos de sentido. Kelsen admite que o legislador (que pode ser uma vontade supra-humana, um homem, o costume, etc.) pode pôr como devendo e não devendo ser um mesmo ato sob as mesmas circunstâncias e ao mesmo tempo. No entanto, este conteúdo de sentido é descrito como desprovido de sentido normativo e, portanto, irrelevante para a descrição da ordem normativa enquanto tal. Ademais constituiria um problema bastante sério afirmar que a mente humana organiza os conteúdos de sentido em sistemas não contraditórios, mas a descrição lógica e sistemática destes conteúdos leva a tal organização. Seria interessante analisar se, com o passar do tempo, a complexificação da sociedade não corresponde a multiplicação de tais ordens ou sistemas sociais.

            45. "A estabilidade do mero hábito se apoia essencialmente no fato de que aquele que não orienta a sua ação nela procede ou age de "modo impróprio", isto quer dizer, aceita de antemão incomodidades e inconveniências, maiores ou menores, durante todo o tempo em que a maioria dos que formam o seu meio-ambiente acreditam na existência do hábito e dirigem o seu comportamento por ele. A estabilidade de uma situação de interesses baseia-se, analogamente no fato de que alguém que não orienta o seu comportamento nos interesses dos outros – não os inclui no seu "cálculo" – provoca a sua resistência ou acarreta conseqüências não desejadas e nem previstas por ele, e, conseqüentemente, corre o perigo de prejudicar seus próprios interesses." (Weber, 2001: 423).

            46. Weber afirma: "Os meios de coação são irrelevantes. Também a admoestação fraternal – uma prática comum em muitas seitas como meio suave de coação frente ao comportamento dos pecadores – pertence a estes meios sempre que se orienta numa norma e quando é executada por um quadro de pessoas que existe exatamente para isso (...) Trata-se, portanto, de um ‘direito’, não interessa se este é garantido politicamente, ou por uma forma hierocrática, ou por estatutos de uma associação, ou pela autoridade de um patriarca, ou cooperativas ou qualquer outro tipo de associação (Weber, 2001: 427).

            47. Sobre a capacidade explicativa da norma acerca do comportamento humano, ver: Weber, 2001: 239 ss.

            48. Como uma última sugestão, deixo que a obra de Max Weber "a ética protestante e o espírito do capitalismo" pode ser entendida como a descrição do surgimento e entrelaçamento de duas ordens normativas, tanto assim que Weber se preocupa em descrever em detalhes as normas de conduta que cada ordem impõe como devida, como o "lembre-se de que tempo é dinheiro", e em mostrar em que a ética (que, definitivamente é um conjunto de normas, ou normas e crenças) protestante se difere da católica. De fato, a tese da obra é a de que a ética protestante, mesmo sendo desvinculada do espírito do capitalismo (que, aliás, poderia ser chamado a "ética do capitalismo", uma vez que é também um conjunto de regras de conduta), prescreveu condutas semelhantes que, portanto, foram reforçadas.


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Sobre o autor
Nelson do Vale Oliveira

sociólogo, mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson Vale. Teoria Pura do Direito e sociologia compreensiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4014. Acesso em: 24 abr. 2024.

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