A política é uma sucessão de acertos e de erros. Mas os acertos cometidos hoje podem se transformar em erros amanhã, assim como alguns erros praticados no passado as vezes se transformam em acertos no futuro.
Ao divulgar sua Carta aos Brasileiroshttp://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u33908.shtml, Lula abandonou a retórica revolucionária e incorporou o personagem “Lulinha paz e amor”, que despertou intensa discussão entre os especialistas em política. A melhor avaliação dele foi feita por Victor Bulmer-Thomas:
"...Para Victor Bulmer-Thomas, diretor do Royal Institute of Foreign Affairs, em Londres, o verdadeiro Lula é mesmo "paz e amor".
"Eu não acredito que alguém possa atravessar uma campanha tão longa fingindo ser algo que não é. Meu medo, por sinal, é que aconteça exatamente o oposto e que Lula se curve desde o primeiro dia às pressões para acalmar o mercado", afirmou Bulmer-Thomas.” http://noticias.uol.com.br/bbc/eleicoes/2002/10/28/ult1090u107.jhtm
Um dos primeiros atos de Lula como presidente pode ter sido salvar a Rede Globohttp://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u43340.shtml . Fato, que, aliás, ao clá Marinho nega ter ocorrido http://memoriaglobo.globo.com/acusacoes-falsas/bndes-e-renegociacao-da-divida.htm e que continua sendo objeto de intenso debate parlamentarhttp://www.robertorequiao.com.br/requerimento-ao-bndes-sobre-emprestimos-da-rede-globo/.
Supondo que esta operação financeira tenha ocorrido, Lula deve ter considerado que sua ação foi um acerto. O empréstimo do BNDES à Rede Globo impediu a falência de uma grande empresa (salvando milhares de empregos) e poderia apaziguar os ânimos de inimigos poderosos e perigosos. O clã Marinho havia derrubado Fernando Collor e impedido a vitória do próprio Lula em 1989 editando com propósitos eleitoreiros o debate entre os presidenciáveis.
O erro de Lula ficou claro quando a Rede Globo ajudou a inventar e a amplificar o “escândalo marca Mensalão” para desmoralizar o PT, destruir vários petistas e impedir a reeleição do presidente. O escândalo não surtiu efeito desejado pela imprensa em razão do sucesso econômico do governo Lula. Com a reeleição do petista, o Mensalão ficou em banho-maria durante todo o segundo mandato de Lula até ser intensamente requentado durante as eleições de 2010. Para desespero geral dos donos do poder, Dilma Rousseff foi eleita presidenta e o Mensalão naufragou em algumas condenações sem cumprir sua missão política. E então um novo mega escândalo começou a ser assoprado pela imprensa (o Petrolão, conduzido pelo Juiz Sérgio Moro).
Se tivesse deixado a Rede Globo falir em 2002, Lula seria imediatamente excomungado pela imprensa como se fosse um ogro. E seguiria sendo intensamente odiado pelos amigos e empregados do clã Marinho. Mas ele teria criado um novo paradigma. O presidente do Brasil deixaria de ser cortejado, atacado e chantegeado pelos barões da mídia e passaria a ser temido pela imprensa. A crise criada pela falência da Rede Globo seria, com o tempo, vista como uma oportunidade pelos concorrentes do clã Marinho e em uma década a imprensa teria se reestruturado e passaria a se relacionar de maneira diferente com o poder Executivo.
Durante seus dois mandatos, Lula foi extremamente generoso com as empresas de comunicação e não se esforçou muito para regular a mídia. Não confrontar os interesses econômicos e o poder político dos barões da mídia pode ter sido um acerto temporário no passado. Mas isto também se mostrou um imenso erro na atualidade. Sob intensa oposição da imprensa e pressionada por um contexto econômico desfavorável Dilma Rousseff se tornou tão impopular quanto Fernando Collor.
À medida que o PT perde a iniciativa e/ou a predominância no “campo político”, as sedes do PT vão sendo acintosamente atacadas pelos fascistas que perceberam a fragilidade estrutural do governo petista. Com quase todas as empresas de comunicação comprometidas com o neoliberalismo tucano e sem uma grande empresa de comunicação pública para defender os interesses nacionais, os eternos “amigos dos EUA” no Brasil já cogitam privatizar a Petrobras e modificar o regime de partilha do pré-sal.
Quando os acertos se tornam erros, a estratégia tem que ser revista. Mas para fazer isto é preciso recorrer à autoridade dos clássicos:
“A última chance de Florença de assegurar suas liberdades surgiu em 1494, quando os Médici foram novamente exilados e a república foi plenamente restaurada. Nesse momento, porém, os novos líderes da cidade, sob a direção de Piero Soderini, cometeram o erro mais fatal de todos ao deixar de adotar uma política que, segundo Maquiavel, é absolutamente indispensável sempre que ocorre uma mudança de regime. Qualquer um que ‘lê a história antiga’ sabe que, dado o passo ‘da tirania para a república’, é essencial matar ‘os filhos de Bruto’. Mas Soderini ‘acreditava que, com paciência e bondade, conseguiria vencer o desejo dos filhos de Bruto* de voltar sob outro governo’, pois julgava que ‘poderia extinguir as facções má’ sem derramar sangue e ‘eliminar a hostilidade de alguns homens’ com recompensas. O resultado dessa espantosa ingenuidade foi que os filhos de Bruto – isto é, os partidários dos Médici -, sobrevivendo, destruíram Soderini e restauraram a tirania dos Médici após o fiasco de 1512.”(Maquiavel, Quentin Skinner, L&PM Pocket, vol. 896, Porto Alegre, 2010, p. 98/99).
Victor Bulmer-Thomas, do Royal Institute of Foreign Affairs disse que “o verdadeiro Lula é mesmo ‘paz e amor’ ". Ele também poderia ter dito que o pacifismo e a amabilidade do líder petista - que são virtudes num homem comum e defeitos terríveis num estadista - poderiam ser como de fato foram utilizadas contra o próprio Lula. Dilma Rousseff não é Lula e já provou que não é apenas um poste dele. Neste exato momento nossa presidenta também está sendo convocada a matar os filhos de Bruto. Se Dilma não fizer o que for necessário, a Petrobras e o Pré-Sal serão perdidos para sempre e ela mesma poderá acabar como Piero Soderini. O fim da “república florentina” erigida nos trópicos pelo PT ainda não ocorreu. Mas para salvá-la a presidência terá que deixar de ser exercitada com “paz e amor” à moda inventada por Lula.
*filhos de Bruto: Júnio Bruto foi o principal arquiteto da destruição da tirania de Tarquínio o Soberbo em 496 aC se transformando num dos pais fundadores da República de Roma. Os filhos de Bruto haviam participado da tirania e dela se beneficiado, razão pela qual eles foram executados com a aquiescência e a presença de Júnio Bruto.