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Fontes do direito e fato jurídico.

Resposta a Tárek Moysés Moussallem

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01/05/2003 às 00:00
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3. Fontes do direito em Paulo de Barros Carvalho.

Parece-nos pertinente, antes de continuarmos a analisar e a responder as críticas formuladas por Tárek Moussallem, procedermos uma investigação sobre o tema das fontes do direito na obre do próprio Paulo de Barros Carvalho.

Embora nos Fundamentos da incidência tributária não se trate do tema, o professor paulista remodelou o capítulo III do seu Curso, adaptando sua concepção sobre as fontes do direito à sua teoria. Ao fazê-lo, seguiu na trilha perlustrada por seus discípulos. Segundo ele, as fontes do direito seriam os "focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo sistema para produzirem normas, numa organização escalonada" (40). Seriam, pois, "os acontecimentos do mundo social, juridicizados por regras do sistema e credenciados para produzir normas jurídicas que introduzam no ordenamento outras normas (...)" (41).

Para a teoria carvalhiana, as fontes do direito positivo são eventos compostos em uma estrutura hierárquica, previstos como conteúdos de normas, estando no ápice a assembléia constituinte. Todavia, parece-nos cediço que uma predisposição hierarquizada de eventos exigiria incisivamente a existência de uma prévia e necessária valoração. Os eventos, enquanto eventos, são fatos brutos. Quando os hierarquizamos, dispomos conforme valores. Se as fontes do direito, para a teoria carvalhiana, são eventos ou fatos sociais, é necessário então perquirir como ocorre essa sua valoração escalonada de puros eventos. Noutras palavras, por que se deve colocar no ápice das fontes do direito a assembléia constituinte? Qual o critério para definir a hierarquia das fontes?

A resposta de Paulo de Barros Carvalho é surpreendente: os eventos (as fontes do direito) são conteúdo de normas; o evento da assembléia constituinte ganha sua juridicidade da norma fundamental de Kelsen (42). Desse modo, a assembléia constituinte seria fonte de direito porque uma norma anterior assim teria disposto que ela seria, ainda que essa norma tenha validade apenas epistemológica.

Desse modo, teríamos uma estrutura escalonada de normas jurídicas introdutoras, bem como de normas jurídicas introduzidas. Paralelamente, teríamos também uma estrutura escalonada de fontes do direito, ou seja, de órgãos competentes para validamente expedirem documentos normativos. Essa duplicação de escalonamento de normas, de um lado, e fontes do direito (enunciação, evento), de outro lado, esconde uma confusão teórica ineliminável. Quem superficialmente refletir sobre essa teoria, imaginará que as fontes do direito, os eventos, é que produzem as normas. Teríamos, então, no início de todo sistema um evento, ou seja, um órgão competente ejetor de normas, como creu Eurico de Santi. Porém, qual não é a surpresa ao se perceber que, em verdade, esse órgão é havido por competente apenas porque há uma norma anterior que o qualifica como tal, a norma fundamental. Afirma-o Paulo de Barros Carvalho: "É preciso dizer que na idéia que reduz a ordem jurídica ao complexo das normas existentes, está contida, por certo, uma concepção normativista do direito, que identifica o órgão juridicamente legitimado ou o fato credenciado para a construção das unidades normativas, na medida estrita em que houver regras que incidem nos órgãos, qualificando-os como tais e outorgando-lhes a específica competência, assim como tipificando fatos, aos quais se atribuem a força de produzirem outras normas" (43).

A crítica que Paulo de Barros Carvalho faz a teoria tradicional das fontes é a mesma que lhe pode ser oposta. Segundo ele, "(...) afirmar ser a lei fonte do direito positivo não significa mais do que postular que normas criam normas, direito cria direito, numa proposição evidentemente circular, que deixa o primeiro termo como resíduo inexplicado (...)" (44). Ora, esse resíduo inexplicado é justamente a norma fundamental de Kelsen, utilizada pela teoria carvalhiana como a norma que credencia a fonte do direito primígena, vale dizer, a assembléia constituinte. Toda a construção da teoria das fontes do direito, em Paulo de Barros Carvalho, é dependente de uma norma anterior, que qualifique o evento ou órgão como fonte. Afinal, "Para que tais eventos adquiram o predicado de fontes, mister se faz que encontrem qualificação em hipótese de normas válidas do sistema" (45). Deu-se uma roupagem nova e ambígua para uma velha e consolidada teoria.

Aliás, não é sem razão que a teoria carvalhiana dedique poucas linhas às fontes propriamente ditas, preocupando-se mais com os veículos introdutores das normas jurídicas, classificados em primários e secundários.


4.. Explicando o ovo e a galinha: significante e significação.

A teoria carvalhiana costuma tomar o signo como uma relação triádica indecoponível entre significante (suporte físico, expressão material), significado (objeto lingüisticamente designado) e significação (idéia, representação mental), como de resto faz boa parte das teoria semióticas, com mudanças apenas de nomenclatura. De acordo com a exposição feita por Tárek Moussallem, a palavra é o suporte físico (significante), o significado é dado pela definição do objeto semanticamente convencionado e a significação é a idéia – representação mental -, a construção de sentido que atribuímos ao significante (46). Para que essa relação triádica fosse realmente indecomponível, os significantes (os enunciados) teriam significação, que não lhes seria adjudicada de fora, porém que eles trariam consigo, na forma convencionada pela gramática de uma dada língua. Ou seja, se a palavra "mesa" é suporte físico (significante) que se refere ao conceito de "mesa" semanticamente convencionado, é porque a significação da palavra foi atribuída por uma convenção anterior à sua aplicação, dialeticamente presente na construção intersubjetiva de sentido, ou não haveria como ser útil ao processo comunicacional nos jogos de linguagem. Se emissor e receptor não estivessem previamente acordes com a significação da palavra "mesa", é evidente que a mensagem não haveria como chegar sem ruídos ao seu destinatário. Todavia, para Paulo de Barros Carvalho, o significante (texto, suporte físico) não contém significação, sendo ela atribuída pelo intérprete no ato de construção de sentido: "(...) os enunciados lingüísticos não contêm, em si mesmos, significação. São objetos percebidos pelos nossos órgãos sensoriais que, a partir de tais percepções, ensejam, intra-subjetivamente, as correspondentes significações. São estímulos que desencadeiam em nós a produção de sentido. (...) Impossível seria retirar conteúdos de significação de entidades meramente físicas. De tais enunciados partimos, isso sim, para a construção das significações, dos sentidos, no processo conhecido como interpretação" (47).

A norma jurídica (significação), para a teoria carvalhiana, seria construída pelo intérprete no ato de aplicação do direito, a partir do texto jurídico (significante). O significante, todavia, não conteria nenhuma significação: seria mera dimensão gráfica e material do signo. Essa a razão pela qual reprochamos severamente a teoria de Paulo de Barros Carvalho, porque levaria a um relativismo hermenêutico extremado, ficando a norma, como significação, a mercê da construção individual do intérprete (48). Como entabular um consenso, se cada qual produz a "sua" norma a partir de um mesmo texto positivo?

A separação entre enunciado (texto, significante) e significação é, como se vê, essencial para a construção do ceticismo hermenêutico de Paulo de Barros Carvalho, razão pela qual insiste ele na distinção entre "normas", como complexo de significações construídas pelo intérprete, e o plano do significante (plano da expressão), que seria apenas o veículo que expressaria graficamente o direito escrito (49). Não por outro motivo, procede ele a separação entre os três subsistemas da "unidade do texto jurídico-positivo": o conjunto dos enunciados, tomados no plano dos significantes; o conjunto de conteúdos de significação dos enunciados prescritivos; e o domínio articulado de significações normativas.

De conseguinte, apenas é possível a afirmação de Paulo de Barros Carvalho de que a norma seria criada ab ovo pelo intérprete, porque separa o significante da significação, não estando ela contida nele, como se fora uma jóia involucrada. Noutras falas, para a teoria glosada, o liame entre o significante e a significação seria arbitrário, construído pelo intérprete no processo de adjudicação de sentido. Aliás, essa separação entre texto e norma é a mãe daquel’outra entre evento e fato. Fato seria a significação do evento constituída pelo enunciado.

Nesse contexto, soa estranho o exemplo dado por Tárek Moussallem para refutar minha crítica à teoria carvalhiana. Assere ele (50): "Observemos agora a expressão: ‘ Getúlio Vargas cometeu suicídio’. Fato é o enunciado (‘Getúlio Vargas cometeu suicídio’) ou a significação (a idéia de que o ex-presidente se matou)?". Para mim, o fato seria o enunciado e a significação, porque sustento que a significação não é construída arbitrariamente pelo intérprete, mas se conteria no texto, como um dado, "o que aí se encontra", na intersubjetividade do simbolismo da comunidade do discurso. Já para o relativismo hermenêutico, haveria de ser dito que fato seria a significação, e não o enunciado. Se o enunciado "proibido fumar", escrito em uma placa, fosse interpretado como "fume muito e sem limites" ou mesmo "voe de asa delta", a significação que o intérprete atribuiu ao significante seria válido, porque a significação não estaria contida no texto, sendo construção subjetiva de sentido. Ao tomar o enunciado "Getúlio Vargas cometeu suicídio" com uma significação precisa, evidentemente que Tárek Moussallem, sem o querer, endossou a minha crítica.

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Aliás, justamente por negar o relativismo hermenêutico, mesmo sem o saber ou admitir, formulou duras críticas aos meus textos. De fato, não raras vezes afirmou ser "falsa" alguma interpretação que dei às falas de Paulo de Barros Carvalho. Se minha interpretação do texto de Paulo de Barros Carvalho, ou de qualquer outro texto, pode ser reputada "falsa", é porque a interpretação não pode ser arbitrária, ou seja, não pode ser um processo de construção de sentido apenas do intérprete. Qualquer interpretação pode ser controlada e criticada porque há um sentido comum, construído intersubjetivamente (e não intra-subjetivamente, apenas), que serve de critério de aferição da validade de uma proposição. Assim, na ânsia de me refutar, refutou a sua própria teoria, quebrando o relativismo tão decantado pela teoria carvalhiana.

A crítica que estou fazendo à teoria carvalhiana é muito próxima àquela feita incisivamente por Paolo Becchi a Riccardo Guastini, autor que inspirou Paulo de Barros Carvalho a proceder a distinção entre texto e norma. Enquanto para os juristas usualmente o termo "norma" denota tanto o enunciado normativo (significante) que deve ser submetida à interpretação, quanto o enunciado que resulta produzido dessa atividade de interpretação (significação), para Guastini e Paulo de Barros Carvalho apenas no segundo sentido se poderia usar adequadamente a palavra "norma" (51). Essa é a afirmação crucial da teoria carvalhiana, o ponto de partida de todo o seu esforço teórico, de modo que negá-la é atingir às inteiras um dos seus pilares.

Feitas essas digressões necessárias, podemos agora superar a crítica feita por Tárek Moussallem à separação insistente que procedi entre evento, fato e o elemento intercalar, que denominei de ato de enunciação ou relato.

Em primeiro lugar, diga-se logo que não utilizei o signo "enunciação" no sentido de atividade de produção de enunciados, como o faz Tárek Moussallem em seu livro e em sua crítica. Já por aí se observa a inanidade do reproche assacado, porque desvirtuou toda a exposição que fiz. De fato, afirmo que, na teoria carvalhiana, o evento se constitui em fato pela sua enunciação protocolar e denotativa. Entre o evento e o fato está sempre o enunciado (documento positivo, texto, suporte físico, lançamento) a que denominei de ato de enunciação ou relato. O ato de enunciação ou relato, no contexto do meu texto, nada tem a ver com a "enunciação", enquanto mero evento de produção do enunciado (52). Não por outra razão, quando menciono a carta que noticia à família o sucesso do acidente automobilístico ocorrido, afirmo que o evento é o sucesso ocorrido no mundo fenomênico, a carta é o enunciado que o historia, e o fato, a significação do texto. Desse modo, afirmei naquele meu escrito: "Temos, pois, que distinguir – como fizemos acima – o evento, o ato que o relata (ato de enunciação, veículo introdutor, texto) e o produto do relato: o fato (ou a significação jurídica do evento)" (53).

A distinção empreendida visa justamente demonstrar que não se pode, na intimidade da teoria carvalhiana, falar apenas em fato e evento, sem ser explicada a natureza jurídica do instrumento positivo que veicula o enunciado. Afinal, se para a teoria carvalhiana é fundamental a separação entre texto e norma, sendo essa a construção de sentido feita pelo intérprete, é evidente que o enunciado não conteria em si mesmo o "fato", sendo ele – como norma individual e concreta – criação do intérprete a partir do texto ou enunciado. O auto de infração e o lançamento, assim como o contrato de locação, apenas seriam textos: fato seria o seu significado, que constituiria o evento. Assim, o evento se torna fato jurídico pelo enunciado protocolar e denotativo, mas o que tornaria jurídico o enunciado mesmo (lançamento, contrato, auto de infração, enquanto suporte físico do enunciado)? Ou bem seria ele também relatado (ou constituído) por outro ato de enunciação (no sentido de texto), ou seria ele mero evento, sem significação jurídica alguma. Pois bem, essa objeção que lancei terminou, indiretamente, sendo acatada por Tárek Moussallem, porque sem pejo algum ele afirma que o evento (o não-jurídico) é que cria o jurídico (54). Nesse sentido, meus esforços restaram sobejamente atendidos quanto ao ponto: o demonstrar que a lógica da teoria carvalhiana implica em retirar da pura facticidade a juridicidade: o não-jurídico criaria o jurídico.

Agora, podemos responder à questão levantada pelo professor assistente da PUC/SP: "De que importa se a palavra ‘fato’ é empregada como enunciado (suporte físico) ou proposição (significação)? O fato é tanto um quanto o outro. Não há preposição sem enunciado e vice-versa (...)" (55). Ora, para os que, como eu, sustentam que há uma relação íntima entre significante e significação, não importa absolutamente em nada essa separação entre texto e norma, enunciado e fato etc. Todavia, para os que, como os relativistas hermenêuticos, sustentam que o texto não contém significação (é dizer, que o enunciado não contém em si mesmo um fato ou proposição), tal distinção deveria importar muito, porque sobre ela Paulo de Barros Carvalho gastou muita tinta e esforço mental, na construção de sua teoria. (56)

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Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Fontes do direito e fato jurídico.: Resposta a Tárek Moysés Moussallem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4049. Acesso em: 22 nov. 2024.

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