É da condição humana ser errático.[1] Nos últimos dias, Lula é a bola da vez. Seu instituto teria recebido milhões de uma das suspeitas empreiteiras que, na nossa cleptocracia (Estado governado por ladrões), costumam (antidemocraticamente, antirrepublicanamente) “doar” dinheiro para todos os institutos e partidos que possam satisfazer seus inconfessáveis interesses. Mas, no mundo errático que sempre vivemos, somente o líder petista, neste instante, seria o torto ou todos nós também o seríamos? Errático é, antes de tudo, quem faz mau uso da liberdade. É errático quem usa a liberdade de eleição para eleger seu senhor de engenho (seu carrasco, seu algoz ou um inimigo dos interesses gerais). Essa liberdade de eleição, típica das democracias eleitorais (como a nossa), não eliminam os amos (os novos senhores de engenho de todas as cores ideológicas) nem acaba com a escravidão ou servidão (Marcuse). Oportunidades perdidas.
Nós somos, na essência, seres abertos, mas frequentemente vivemos em “jaulas de ferro” (Weber), que nós mesmos inventamos. Temos em muitas ocasiões chance de nos projetar, de crescer, de nos educar, mas preferimos nos submeter servilmente. Com graça, o filósofo renascentista italiano Pico de la Mirándola (1463-1494), rebelde considerado herege pela Igreja Católica (antes da sua conversão), narrou o seguinte:
“Concluída sua obra (de construção do universo), o grande Artífice queria alguém que admirasse a beleza da sua criação (…) inventou o humano e deu-lhe uma forma indeterminada. Disse a Adão: ‘Não dei a você nenhum posto fixo, nem uma imagem peculiar, nem um emprego determinado. Às demais criaturas prescrevi uma natureza regida por certas leis. Você marcará sua natureza segundo a liberdade que entreguei a você, pois não está submetido a nenhum regra fixa da natureza; não fiz você nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal. Você mesmo haverá de forjar a forma que prefira para você, pois é o árbitro da sua honra, seu modelador, seus desenhista. Com suas decisões você pode se rebaixar até igualar-se com os brutos ou pode levantar até as coisas divinas.” [2]
Os que possuem chance de crescer (pessoal ou coletivamente), de se elevar (moral e eticamente, por exemplo), mas não o fazem, são seres (ou países) profundamente erráticos, que se fecham, quando deveriam ser abertos; que se aniquilam, quando poderiam se emancipar; que paralisam suas vocações, quando poderiam se modelar exemplarmente. Quando tomado pelo comodismo, torna-se estacionário. Nesse estado, nem se rebaixa nem se levanta; nem abraça a vileza, nem se orgulha das alturas; porque não se empenha por construir-se, por elevar-se, por transcender-se. Não retrocede, nem avança. Vive, muitas vezes, em movimento, mas não cria novidade qualitativa nenhuma. Não modifica o tabuleiro da sua existência, nem cria jogadas que poderiam lhe transformar vertiginosamente.
Não cria uma imagem de mundo diferente, nem abre para si um estilo de vida distinto. Gira sempre sobre o mesmo eixo. Com frequência, falsamente. Sua atividade se esgota na atividade mesma. Vê que tudo está se tornando líquido (Bauman), mas não se move para alterar o rumo dos acontecimentos. Vive indignado, mas nada constrói para modificar sua situação. Fica angustiado com o vazio, mas nada faz para preenchê-lo. De novo nada produz. Não inova. Esquece que quem não se regenera, degenera (E. Morin). Que quem não cresce, decresce. Quando se mobiliza é para administrar as carências. O ser errático estacionário é fruto de uma sociedade estacionária, [3] que se movimenta para nada alcançar em termos de mudanças relevantes.
Notas
[1] SÁEZ RUEDA, Luis. Ser errático. Madrid: Editorial Trota, 2009, p. 11 e ss.
[2] Em SÁEZ RUEDA, Luis. Ser errático. Madrid: Editorial Trota, 2009, p. 31.
[3] SÁEZ RUEDA, Luis. Ser errático. Madrid: Editorial Trota, 2009, p. 32.