A restrição da responsabilidade penal nos crimes de abandono intelectual da criança:uma questão séria e ignorada

11/07/2015 às 21:16
Leia nesta página:

Procura tratar uma questão não analisada ainda a sério pela doutrina nacional e que possui relevância interdisciplinar, sob aspecto do direito de familia e direito penal.

A sociedade assiste atualmente uma série de questões relacionadas com o futuro da criança e do adolescente, dentre elas a redução da menoridade penal. Essas matérias encontram amparo nas diretrizes implementadas pelo Constituinte  que elevaram a formação da criança e do adolescente ao status de matéria de absoluta prioridade. Essa mudança de perspectiva supera a teoria da situação irregular que objetivava sobretudo fiscalizar e neutralizar o menor infrator e ‘’delinquente’’.

            Conforme expresso na Constituição Federal:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

            Neste contexto passa a ser relevante tratarmos da Lei n° 8.069/90(Estatuto da Criança e do Adolescente) que disciplina a obrigação dos pais de matricular e garantir a formação acadêmica primária de seus filhos na rede regular de ensino, configurando o crime de abandono intelectual do art. 246 com a seguinte dicção:

Art. 246"Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena - detenção, de quinze dias a um mês ou multa."

           

Uma relevante questão que ainda não foi observada pela doutrina consiste no fato de que a norma penal restringiu a punir apenas a figura dos pais do menor, desconsiderando a eventual responsabilidade de tutores, e de outros representantes legais. Isso decorre do fato de ter sido empregada a expressão ‘filho’ o que por sua vez acarreta na necessidade de se estabelecermos uma exegese restritiva, evitando-se o alastramento da responsabilidade penal de sorte a violar o principio da reserva legal.

O ECA dispõe, nos termos do 129, inciso V, do ECA, o dever de fiscalizar e acompanhar o rendimento escolar de seus filhos, visando contribuir para a formação moral e profissional dos mesmos. A inobservância dos deveres pode causar a perda do poder familiar pelo abandono intelectual[1]. Esse dever é amplamente discutido na doutrina especializada, como se denota do magistério de Andréa Rodrigues Amin (2009, p.20).

Família, seja natural ou substituta, já tem um dever de formação decorrente do poder familiar, mas não só. Recai sobre ela um dever moral natural de se responsabilizar pelo bem-estar das suas crianças e adolescentes, pelo vínculo consanguíneo ou simplesmente afetivo. Na prática, independente de qualquer previsão legal, muitas famílias já garantiam instintivamente primazia para seus menores. Quem nunca viu uma mãe deixar de se alimentar para alimentar o filho ou deixar de comprar uma roupa, sair, se divertir, abrir mão do seu prazer pessoal em favor dos seus filhos? É instintivo, natural, mas também um dever legal.

A ausência de norma clara, em razão da inexistência de expressões que ampliem a responsabilidade penal constitui um absurdo jurídico, violando a proteção integral do menor e especialmente a isonomia material, uma vez que tanto pais como tutores ou responsáveis exercem na prática os mesmos deveres e encargos, que teleologicamente se voltam para a formação de um futuro cidadão e sujeito de direito com capacidade plena.

A restrição da responsabilidade abre margem para a impunidade, pois deixa de considerar segmentos relevantes da sociedade.  A uniformização entre pessoas, ligadas entre si pela mesma razão jurídica é a base da isonomia material, que foi negligenciado no regramento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Como muito bem aduz Silva (2009): “O entendimento da igualdade material, deve ser o de tratamento equânime e uniformizado de todos os seres humanos, bem como a sua equiparação no que diz respeito a possibilidades de concessão de oportunidades”.

A questão foi muito bem retratada por  Victor Eduardo Rio Gonçalves (2011, p.583), no seguinte teor:

O crime de abandono intelectual consiste no descumprimento, por parte dos pais, do dever de prover à instrução intelectual dos filhos menores em idade escolar. A instrução primária a que se refere o texto penal é, atualmente, chamado de ensino fundamental (art. 210 da Constituição Federal). A Lei nº 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - complementa o tipo penal em estudo (norma penal em branco), estabelecendo a obrigatoriedade dos pais ou responsáveis em efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental (art. 6º). Este é obrigatório, dura nove anos e tem por objetivo a formação básica do cidadão (art. 32). Assim, cometem o crime os pais que não efetuam a matrícula, sem justa causa, quando a criança atinge a idade escolar (seis anos), bem como aqueles que permitem a evasão do ensino antes completado o ciclo de nove anos mencionado na Lei de Diretrizes. Apesar de a Lei nº 9.394/96 obrigar também os responsáveis legais pelo menor a efetuar sua matrícula, o tipo penal do art. 246 só pune quem não matricula os próprios filhos.”

A norma penal inclusive encontra em descompasso com norma civil do mesmo diploma- Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que esta última amplia o sentido do dever de matricula para os responsáveis.[2]Isso por sua vez evidencia uma falha do legislador ordinário que deveria observar com maior acuidade a técnica legislativa, ainda mais partindo do pressuposto de que noções civis e penais de uma mesma lei devem estar alinhadas para que o objetivo previsto seja efetivado.

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Referência Bibliográfica:

 

AMIN, Andréa Rodrigues. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: Aspectos Teóricos e Práticos. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 6, Editora Saraiva, 7º Edição , 2010.

GONÇALVES, V. E. R. Direito Penal Esquematizado - Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 2011.

SILVA, Marcelo Amaral daDigressões acerca do Princípio Constitucional da Igualdade. Disponível no site: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4143>. Acesso dia 11 de Julho de 2015, às 18h50min


{C}[1]{C} Para Carlos Roberto Gonçalves, “abandono também pode ser imoral e intelectual, quando importa em descaso com a educação e moralidade do infante”.

[2]{C} Art. 55: “Os pais ou responsáveis, tem a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”.

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Sobre o autor
Adriano Resende

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-Graduando em Ciências Penais pela PUC/MG. Pesquisador PRUNART. Advogado.

Informações sobre o texto

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