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A interrupção da prescrição pela citação:

Confronto entre o novo Código Civil e o Código de Processo Civil

01/05/2003 às 00:00
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Não são poucas as repercussões do novo Código Civil sobre o sistema processual, o que certamente decorre, dentre outras circunstâncias, da função instrumental que exerce o Direito Processual em relação aos valores consagrados no plano material do ordenamento.

Nesse contexto, convém chamar a atenção dos operadores do Direito para o disposto no art. 202, I, da nova legislação, segundo o qual a prescrição é interrompida "por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual" (grifo nosso). Aludido dispositivo, em certa medida, parece reproduzir a regra então vigente sob égide do Código de Processo Civil de 1939, segundo a qual "a prescrição considerar-se-á interrompida na data do despacho que ordenar a citação, ficando inválido para esse efeito, o despacho, se a citação não for promovida pelo interessado no prazo de dez dias, contados da data do despacho, prazo que poderá ser prorrogado até o máximo de noventa dias, a critério do juiz, por motivo fundamentado" (art. 166, § 2.º; grifo nosso).

Como se sabe, a regra do art. 219, § 1.º, do Código de Processo Civil de 1973, em sua redação original, adotava essa mesma orientação, repetindo-se o texto anterior, apenas com o desdobramento em parágrafos diversos. Esse dispositivo, contudo, foi alterado pela Lei n. 8.952/94, passando a vigorar a regra de que a "interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação" e permanecendo as mesmas condições antes impostas pela lei (isto é, que o autor promova, forneça meios para a citação nos prazos ali assinalados).

A questão que se põe com importantes repercussões práticas é a de saber, diante da nova legislação, em que momento se reputa interrompida a prescrição pela citação, supondo sempre que o autor não permaneça inerte e que, como exige a lei, "promova" a citação nos prazos constantes da lei processual.

Salvo opinião mais autorizada, uma interpretação sistemática há de levar à conclusão de que a interrupção da prescrição retroage – ou continua a retroagir – à data da propositura da demanda (desde que, como visto, o autor cumpra o ônus já mencionado, não podendo ser prejudicado pela demora inerente ao serviço judiciário (CPC, art. 219, § 2.º)). Sob o ângulo da técnica jurídica, tal se justifica porque, embora o novo Código Civil pareça revitalizar as regras constantes do Código de Processo Civil de 1939 e de 1973 em sua redação original (o que faria ao falar na interrupção "por despacho do juiz, ainda que incompetente, que ordenar a citação"), fato é que a nova lei foi também expressa ao remeter à lei processual, que, como visto, é peremptória ao fazer retroagir à data da propositura o momento da interrupção (sempre na premissa de que o autor não seja desidioso). Ora, o art. 219 do Código de Processo Civil de 1973, em sua redação original (a exemplo do que já fazia o art. 166 do estatuto precedente), já dizia – e a rigor continua a dizer – que a interrupção ocorre pela citação, embora depois ressalve a retroação desse efeito para o momento do despacho que ordenara o ato. A retroação do efeito interruptivo para marco anterior à citação, portanto, não é regra desconhecida do sistema, nem no Código de Processo Civil de 1939 nem no de 1973, seja em sua redação primitiva, seja em sua redação atual. Se é assim, isto é, se a retroação desse efeito para momento anterior ao da citação foi e é admitida pelo sistema, parece mais correto dizer que a retroação alcança o ajuizamento e não apenas o despacho que ordenar a citação, porque essa é a forma ditada pela lei processual, à qual, como dito, reporta-se expressamente a nova lei civil.

Sob o ângulo histórico, que também se considera parâmetro de interpretação, é preciso lembrar que o texto projetado que redundou no novo Código Civil permaneceu por longos anos no Congresso Nacional, de tal sorte que a regra constante do art. 202, I, da nova lei não pode ser tomada apenas em sua literalidade, mas sim no confronto com a opção feita pelo legislador quando da edição da citada Lei n. 8.952/94 e que, como visto, alterou o sistema para fazer o efeito interruptivo retroagir ao momento do ajuizamento.

Convém lembrar que, mesmo quando a lei processual falava – como hoje fala a lei civil – em "despacho que ordenar a citação", parte expressiva da jurisprudência já reputava suficiente a apresentação da petição inicial no protocolo, conforme anotou Theotonio Negrão, não se furtando o inolvidável causídico à observação de que tal interpretação era "mais de acordo com a nossa realidade forense"(grifo nosso) (1). E, de fato, além do argumento mais rigorosamente técnico, há, ainda sob o ângulo sistemático, o argumento de que a lei deve ser interpretada de forma compatível com o texto constitucional, que garante o devido processo legal, o acesso à Justiça e que, portanto, deve considerar a aplicação da lei sob o ângulo da eficiente prestação jurisdicional. Sob essa ótica, eventual interpretação no sentido de que a interrupção atinge o momento do "despacho que ordenar a citação" representaria evidente e indesejável retrocesso, criando dificuldades para as partes e para os próprios magistrados, compelidos estes a precipitar o exame de toda petição inicial nos casos em que estivesse prestes a se consumar a prescrição – o que certamente viria em detrimento do exame de outras situações urgentes não por força da lei, mas por força da realidade das coisas; situações essas que já não são pouco numerosas e que apanham um Judiciário já sobrecarregado. Por razões de ordem técnica e pragmática, portanto, alvitra-se que as normas do novo Código Civil e as do Código de Processo Civil sejam conciliadas, entendendo-se que, cumprindo o autor o ônus de promover a citação nos prazos legais, a interrupção da prescrição há de retroagir ao momento do ajuizamento.


Notas

01. NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 24.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 184-185, nota n. 15 ao art. 219.

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Sobre o autor
Flávio Luiz Yarshell

advogado em São Paulo, doutor em Direito Processual, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YARSHELL, Flávio Luiz. A interrupção da prescrição pela citação:: Confronto entre o novo Código Civil e o Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4089. Acesso em: 19 abr. 2024.

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