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Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes

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01/05/2003 às 00:00
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V. Casos Estaduais em Foco: Amapá, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro

Por motivos operacionais, que obstaram o processo de levantamento de informações, dois casos de grande relevância não serão tratados: Acre e Rio Grande do Sul. Ambos os estados são governados pelo PT e foram responsáveis por realizações importantes, na área da segurança pública. Destaquem-se, por exemplo, as seguintes contribuições:

(a) no Acre, o imenso esforço de moralização das instituições policiais, associado ao –e como movimento indispensável ao- combate ao crime organizado. O resultado foi o desmantelamento da principal quadrilha que dominava o crime e os segmentos corruptos das polícias, perpetrando toda sorte de crueldade, tiranizando comunidades e se infiltrando na política local. Esse feito, ainda que mais diretamente afeto à área da segurança, alterou drasticamente as condições sociais, culturais e políticas estaduais, com impacto sobre todo o país. As instituições públicas acreanas, em seu conjunto, receberam um sopro renovador de vitalidade e legitimidade. O Acre converteu-se em exemplo nacional.

(b) No Rio Grande do Sul, o notável esforço de integração das instituições policiais, de democratização da Brigada Militar –com a implantação do novo regulamento disciplinar, que passou a ser modelo para as polícias militares de todo o país- e de qualificação dos dados e dos profissionais, com a participação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Também se destacaram as iniciativas de controle dos desvios de conduta e de valorização dos servidores públicos que atuam na segurança. Foi também marcante a abertura promovida pela secretaria de Justiça e Segurança à participação da sociedade, diretamente, através de Conselhos Comunitários, e indiretamente, através da Ouvidoria. O relacionamento dialógico, respeitoso e construtivo com os movimentos sociais constituiu outra virtude importante. Criou-se o Programa de Proteção às Testemunhas, o "Protege", e investiu-se bastante em equipamentos (coletes, armas e viaturas). Finalmente, mas não menos relevante, implantou-se o "Termo Circunstanciado", que autoriza a Brigada Militar a cumprir uma função simples, mas fundamental –convencionalmente exclusiva da Polícia Civil-, imprimindo grande agilidade aos atendimentos policiais: trata-se da elaboração de documento equivalente ao "boletim de ocorrência".

Cabe ainda observar que uma descrição completa das políticas voltadas para a área denominada "segurança pública", entendida em seu sentido mais amplo, deveria referir-se a todas as instituições que envolvem a Justiça Criminal, o que estenderia o espectro da presente exposição para que fossem incluídas análises do funcionamento do Ministério Público, da Justiça e do Sistema Penitenciário. Além disso, idealmente dever-se-iam incluir também considerações sobre a atuação das agências privadas de segurança, já que, mesmo fiscalizadas e regulamentadas por órgãos federais, elas interferem na conjuntura dos estados. Isso não foi feito, seja porque ultrapassaria a esfera de responsabilidade dos poderes executivos, no caso do MP, do Sistema Judiciário e até da segurança privada, seja porque escaparia ao campo limitado pelos propósitos do projeto que o presente estudo realiza: é o caso do Sistema Penitenciário, cujas peculiaridades e complexidades exigem um tratamento especializado. O Plano de Segurança Pública, elaborado pelo Instituto Cidadania, avança em várias das matérias aqui não abordadas.

V.1. A Política de Segurança do Estado do Amapá (governado pelo PSB, em aliança com o PT), descrita a partir de relato da diretora presidente do Centro de Formação e Desenvolvimento de Recursos Humanos do Estado do Amapá/CEFORH, Rita de Cássia Lima Andréa, que coordena as políticas de Formação de Segurança Pública desde 1996 e complementado por Katia Tork, assessora da vice-governadoria:

  1. A base conceitual que fundamenta a compreensão dos problemas, subjacente à política adotada, é a teoria da Complexidade, tal como elaborada por Edgard Morin, em cujos termos impõe-se como primado a perspectiva do sistema. Isso significa que as medidas não se devem perder na fragmentação, mas, ao contrário, articular-se de modo sistêmico, formando a unidade de uma política. Considerar uma questão complexa impõe uma mudança de paradigma e implica romper com o modelo simplificador dos fenômenos sociais.
  2. O primeiro ponto destacado nessa política -que vem mudando o Amapá e despertando o reconhecimento nacional- é a qualificação da polícia (através do Programa de Formação e Atualização Permanente em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania), enquanto instituição voltada para a cidadania. Em outras palavras, é a qualificação do corpo de servidores da segurança pública enquanto profissionais a serviço dos cidadãos, das cidadãs e da proteção de seus direitos. O investimento na formação é entendida como suporte da mudança de paradigma; a formação está no centro da mudança de atitudes. A meta visada é a integração de todo sistema de segurança pública cidadã, no Amapá.
  3. PM inclui batalhões, nos quais se incluem polícia ambiental e polícia interativa (interatividade envolve relações intra-institucional, inter-institucional e com a sociedade).
  4. Delegacias cedem lugar a Centrais Integradas de Segurança Pública, responsáveis por zonas identificadas e analisadas por diagnósticos da criminalidade.
  5. Haverá uma central que incluirá central de dados, Polícia Militar, Polícia Civil, Perícia (que é subordinada operacionalmente à Secretaria de Segurança, mas independente das Polícias –articula-se operacionalmente via comitê gestor), Tribunal de Justiça, Ministério Público, etc...
  6. Há módulos locais, envolvendo viatura e bicicletas, que garantem a capilaridade da presença policial integrada e a qualidade de sua intervenção, a qual requer sensibilidade (especialmente desperta e disciplinada) para as especificidades das configurações contextuais de problemas.
  7. Parceria com Guarda Municipal (agentes da cidadania -desarmados) é particularmente valorizada.
  8. Interiorizar e descentralizar, sobretudo via polícia ambiental, é a orientação política e administrativa estratégica.
  9. Salas de vidro como espaços para interrogatório estão sendo construídas, para promover a mudança das condições infraestruturais que, no passado, estimulavam a prática da tortura.
  10. A secretaria de Segurança é coordenadora de toda a política, via comitê gestor.
  11. Os dados criminais primários estão sendo revistos e corrigidos, através da introdução da informática e da central de ensino e pesquisa, com ênfase na interdisciplinaridade (exemplo de objeto: identificação das zonas de criminalidade). Essa revisão corresponde à reinvenção de todos os mecanismos gerenciais do aparelho institucional de segurança, cujas ações passam a ser regidas pelo tríptico racional: diagnóstico-planejamento-avaliação/monitoramento corretivo, que converte os erros e as falhas em instrumentos de autocorreção sistêmica.
  12. O traço distintivo que sustenta a eficácia desse conjunto de medidas é que elas são efetivamente tratadas como uma política pública de governo (idealmente, de Estado), à qual se infunde toda força política.
  13. A polícia interativa (ou comunitária) é ativa, não mais espera o chamado das comunidades. A formação envolve exame crítico da prática cumprida depois da primeira fase da qualificação. O Conselho Interativo (ou Comunitário) é que define a política do bairro, inclusive retirando policiais. Integração entre as políticas públicas é capital, para além da área específica da segurança: a formação envolve outros órgãos do governo e os próprios conselhos. Unificar sem integrar –por decreto- não funciona, pois não se unifica o diferente. Por isso, é necessário começar pela integração. Há uma lei para o sistema integrado. As academias estão se reunindo. O módulo integrado será oferecido na Universidade. Manter-se-ão as especificidades.
  14. É necessário assumir a incompletude da secretaria de Segurança, que não poderá dar conta das necessárias interfaces sociais.

V.2. A Política de Segurança do Estado do Mato Grosso do Sul (governado pelo PT), descrita a partir de relato do secretário de Segurança, Almir Paixão:

  1. No início do governo Zeca, as amplas alianças (PDT assumiu, inicialmente, a segurança) conduziram a uma solução provisória que afastou a secretaria de Segurança do PT. O governador encontrou o Estado falido e a falta de credibilidade era generalizada, contaminando também as instituições policiais. O processo de transformações teve início com a reforma do poder executivo, que fundiu as secretarias de Justiça e Segurança. A falta de controle sobre os órgãos interessava aos maus funcionários. No início do mandato, o quadro de caos administrativo e gerencial caracterizava as instituições públicas, de uma maneira geral. Dr. Almir Paixão, advogado e defensor público (em São Paulo, acumulara experiência como agente penitenciário) foi convidado, inicialmente, para ser auditor geral. Desde esse momento até assumir a secretaria de Justiça e Segurança enfrentou enorme resistência. Sua primeira medida foi acabar com a descentralização que duplicava ou triplicava instâncias adminstrativo-burocráticas e deslocar policiais para atividades-fim. Unificou-se a atividade administrativa dentro da secretaria. A unidade orçamentária é a da segurança pública (as corporações deixaram de ser unidades orçamentárias). A integração impôs expressiva economia –por exemplo, nas diárias.
  2. A nova gestão da segurança pública, sob o comando do Dr. Paixão e, portanto, do PT, evitou reduzir sua política à compra de armas, fardamento e viaturas. Preferiu investir em políticas públicas de segurança, as quais se definiam por reconhecer o caráter multidimensional da segurança. Para identificar áreas para localização de policiais, por exemplo, foram mobilizados outros órgãos governamentais.
  3. Privilegiaram-se as intervenções globais circunscritas territorialmente, nas quais a presença policial era acompanhada de atendimento social. Os resultados foram compensadores. Houve significativa redução dos crimes contra o patrimônio. As ações policiais passaram a guiar-se pela análise detida dos dados e a elaboração de diagnósticos sobre as dinâmicas criminais. Isso conduziu a estratégias que provocaram, por exemplo, a redução da violência contra a mulher, que tendia a concentrar-se em determinados períodos (próximo ao final do mês). Unidades integradas foram implantadas segundo mapeamento da criminalidade, atendendo aos princípios do planejamento racional e superando a tendência mais frequente do trabalho policial brasileiro, que se esgota no padrão reativo-inercial e fragmentário.
  4. A interação vaga entre polícia e sociedade não basta. É necessária a convivência para mudar a imagem que a sociedade formou da polícia e para conferir a esta a eficiência que só se alcança com presença contínua capilar e conhecimento das especificidades locais.
  5. Três unidades integradas estão sendo construídas especialmente para oferecer proteção às escolas que se situam nas áreas mais problemáticas.
  6. Campo Grande foi dividida em sete regiões. Haverá um comando integrado (articulando as polícias civil e militar) em cada área. Cada comando será responsabilizado pela criminalidade local, o que viabilizará avaliações sistemáticas do desempenho policial e o indispensável monitoramento corretivo, sempre com a participação da sociedade civil.
  7. Foram adquiridos (com recursos do Fundo Nacional, apoiado pelo Plano Nacional do Governo Federal) equipamentos de informática que permitirão a integração das comunicações. Será criado um Centro Integrado de Operações, cuja base será a análise regular geoprocessada de Campo Grande. As ocorrências serão atendidas de acordo com tipos e localidades. O sistema computadorizado indicará local de onde provém a chamada e localizará a viatura mais próxima, procedendo ao despacho automático. Jovens dispensados do serviço militar e que estejam cursando uma universidade (em certas áreas) serão selecionados: 130 universitários farão o atendimento no centro de operações. Os supervisores (policiais militares civis e membros do Corpo de Bombeiros) serão responsáveis pela intervenção operacional (caso a unidade acionada não esteja atuando adequadamente). O Centro Integrado de Operações se dedicará também à análise criminal, com base em um boletim único de ocorrência criminal (no qual constarão informações sobre tipo de crime, horário e local da ocorrência –com indicação de pontos de referência-, perfil da vítima e do suposto perpetrador, indicando também se a vítima é beneficiária de algum serviço do governo, etc...). Pretendem-se identificar, na medida do possível, as condições propiciatórias das diferentes modalidades de práticas criminosas. O Ministério Público terá acesso à Central de Operações e, portanto, ao geoprocessamento, para reduzir o risco de que haja desvio nos inquéritos, segundo interesses corruptos ou políticos. O Governador também poderá ter esse acesso aos dados.
  8. A secretaria de Segurança defende unificação, em nome do cumprimento de ciclo completo, e procura criar condições que favoreçam sua realização futura. Os policiais civis defendem a unificação. Na PM, é unânime a defesa da unificação entre as praças. A resistência cresce na medida em que se avança na hierarquia. Defende-se a tese de que a integração não pode ser apenas operacional. Tem de começar pelo planejamento e pela formação.
  9. Segundo o secretário, não há crime organizado; há, sim, segurança desorganizada;
  10. Destaca a experiência bem sucedida da polícia unificada, que se realiza no departamento de operações de fronteira.
  11. As polícias não devem ser subordinadas diretamente ao governador, mas ao(à) secretário(a) de segurança.
  12. Houve redução dos crimes contra a vida, no Mato Grosso do Sul, durante a gestão do PT, ainda que a mesma tendência não se tenha verificado no caso dos crimes contra o patrimônio.
  13. Há oito Delegacias de Defesa da Mulher, no estado, e quem define suas respectivas localizações é a coordenadoria de políticas para a mulher, vinculada ao gabinete do Governador, em diálogo com a secretaria de Segurança.
  14. Investe-se na criação da Escola de segurança pública, que formará os policiais até o nível médio. A academia de polícia formará os oficiais. Haverá currículo único para a área da segurança pública (envolvendo profissionais distintos, como bombeiros, agentes penitenciários, policiais civis e militares), sem prejuízo das especializações. Faz parte dos planos a inclusão de disciplinas como direitos humanos e questão de gênero.

V.3. A Política de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, elaborada e implementada no período em que o PT participou da coalizão de governo (de janeiro de 1999 a março de 2000) e retomada, com adaptações, pelo governo Benedita da Silva - cujo mandato se estendeu de abril a dezembro de 2002 - e seu secretário de Segurança, Roberto Aguiar:

  1. Investimos na reorganização institucional, respeitando os limites constitucionais: através da criação de uma autarquia, em dezembro de 1999, o Instituto de Segurança Pública, que celebraria um contrato de gestão com o Estado, re-selecionaríamos os policiais --segundo critérios éticos, psicológicos e profissionais- que exerceriam a atividade policial nos quadros da nova instituição, seja no Departamento de Polícia Ostensiva, seja no Departamento de Polícia Judiciária. Sua lotação continuariam sendo as Polícias, mas seu exercício seria transferido para o ISP. Todos os policiais seriam submetidos ao crivo. Os que não fossem aprovados por razões profissionais, teriam novas chances, depois de se subordinarem a processos de requalificação, ou seriam incorporados mediante a condição de se submeterem a cursos de reciclagem, no âmbito das iniciativas de capacitação do ISP. Aqueles que fossem reprovados por razões éticas ou criminais seriam definitivamente afastados da Polícia. O ISP proporcionaria formação básica comum, sem prejuízo das especializações, que continuariam sendo ministradas pelas acedemias policiais, todas, entretanto, reorganizadas no âmbito do ISP. A capacitação ou o investimento permanente na qualificação profissional consistiria em um dos eixos fundamentais e distintivos do ISP. Além da formação comum, as orientações tático-estratégicas também seriam integradas, graças à articulação orgânica entre os comandos, propiciada pela supervisão comum: o presidente do ISP, necessariamente o secretário de Segurança, trabalharia ao lado dos diretores dos departamentos responsáveis pelas polícias civil e militar, que seriam seus respectivos chefes, para evitar duplicidades e competições autofágicas. A corregedoria do ISP seria única e supracorporativa, operando segundo regimentos disciplinares modernos e flexíveis, que permitiriam rápidas respostas, ante eventuais desvios de conduta, sem ferir direitos e prejulgar os policiais: separando correição administrativa de acusação crminal, evitaríamos a subordinação do ritmo ágil da gestão do ISP ao tempo lento da Justiça. As atividades-meio seriam unificadas, o que não implicaria fusão entre as Polícias Civil e Militar e, portanto, não agrediria a Constituição Federal, mas implicaria economia e racionalização.
  2. Redefinimos as circunscrições territoriais sob responsabilidade dos Batalhões da PM e das Delegacias Distritais da Polícia Civil, de modo a fazê-las coincidir e a adaptá-las ao desenho instituído pelos Municípios e pelo Estado, em seus planejamentos estratégicos, adequando-as às Regiões Administrativas, aos Bairros e/ou aos limites municipais –e as fazendo corresponder a múltiplos dos setores censitários do IBGE, para tornar os dados criminais relativos às áreas comparáveis entre si, através da relação localizada com as informações demográficas. A redefinição criou 34 Áreas Integradas de Segurança Pública, no estado do Rio de Janeiro, tornando possível a análise do desempenho policial e o exame prospectivo sobre disponibilização de recursos, cujo cálculo depende da consideração de variáveis geográficas, demográficas e urbanísticas, entre outras. As Áreas Integradas constituem bases comuns de operação para as Polícias, as quais, mesmo antes da implementação plena do ISP, já começaram a experimentar, na prática, o planejamento solidário de ações e a avaliação compartilhada de resultados, pré-condições para o monitoramento integrado, prefigurando a integração mais ampla que o ISP materializaria. As AISPs entraram em funcionamento em agosto de 1999. A cada AISP corresponde um Conselho Comunitário de Segurança.
  3. A Delegacia Legal é o novo modelo de Delegacia e a plataforma operacional em que se reestruturam funções e rotinas, na Polícia Civil. Inauguramos quatro unidades, em 1999, e implantamos a Delegacia Legal modelo, na qual se situa o banco de dados central. As novas rotinas significam uma extraordinária economia de procedimentos burocráticos (eram regulados por livros cartoriais: havia 64, em média, no modelo tradicional de Delegacia, que foram reduzidos para 6, na Delegacia Legal), agilizando as investigações e deslocando o foco das atenções para o atendimento aos cidadãos. Redefinidas as rotinas, foram criados –sempre em parceria com a COPPE/UFRJ- quase 200 softwares, com os quais informatizamos o trabalho que se realiza nas DPs. Criamos um banco de dados, cercado de toda a segurança, e instalamos uma Central de Gestão de Informações, capaz de interconectar todas as Delegacias do estado, assim que estejam reformadas. Acesso a informação, troca de dados, intercâmbio interno e comunicação inteligente, e em tempo real, com outras instituições e seus bancos de dados são peças chave de qualquer política de segurança digna desse nome. Na Delegacia Legal eliminamos a carceragem, para cuja viabilização implementamos um programa de construção de Casas de Custódia. Em lugar da carceragem, construímos uma pequena sala de custódia, cujas dimensões destinam-se a impedir sua conversão perversa em nova carceragem, no futuro –afinal, a carceragem nas Delegacias é uma dessas ilegalidades com as quais a sociedade brasileira acostumou-se a conviver: portanto, dizer-se da nova Delegacia que é legal significa mais do que adjetivá-la com qualificativo simpático e próprio a um nome fantasia. Incorporamos atendentes universitários para recepcionar o público e um administrador, em cada Delegacia Legal, exclusivamente dedicado à manutenção dos equipamentos, do material de uso corrente e das instalações físicas. O espaço da nova Delegacia é tão aberto e transparente quanto possível, evitando-se salas isoladas, onde práticas ilegais tornaram-se usuais. Delegacia Legal é sinônimo de um outro comportamento policial: mais atencioso, mais rápido, mais eficiente, mais respeitoso dos direitos humanos. Celebramos convênios com o Tribunal de Justiça para que Juizados Especiais funcionem em espaços contíguos –oferecidos pela própria polícia-- a algumas Delegacias, viabilizando maior agilidade no tratamento dos casos correspondentes à aplicação da Lei 9 099, que constituem a grande maioria das ocorrências.
  4. O Centro Unificado de Polícia Técnico-Científica (CUPTEC) foi concebido e planejado para substituir os institutos de medicina legal, de identificação e de perícia, convertendo-os, inteiramente reformados, física e tecnologicamente, em Departamentos de uma mesma instituição, cujo princípio elementar era descentralização com integração sistêmica. Haveria 14 postos de polícia técnico-científica, equipados com unidades móveis, no estado, e núcleos radicados em todas as Áreas Integradas de Segurança. A política de pessoal seria reformulada, valorizando-se o aperfeiçoamento profissional contínuo e a colaboração com a comunidade científica. Ambos os objetivos dependeriam de convênios com as universidades, que começamos a celebrar, com a mediação da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia. O CUPTEC seria certificado pelo FBI e pela Scotland Yard.
  5. Desenvolvemos uma política específica para as mulheres, contra a violência de gênero e a violência doméstica, orientada para o aprimoramento dos meios de prevenção, a repressão e o atendimento às vítimas, em parceria com organizações da sociedade civil. Começamos a criar núcleos de atendimento à mulher em todas as Delegacias distritais; centros de atendimento especializado, em vários hospitais do estado, em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde; requalificamos todos os prifissionais que servem nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher; introduzimos a temática em todos os cursos oferecidos aos policiais --em 1999, 16 mil policiais foram submetidos a cursos. Em colaboração com o Disque-Denúncia, criamos o Disque Denúncia da Mulher, para cuja implantação treinamos atendentes para ouvir com sensibilidade e orientar, psicológica e praticamente, denunciantes de violência doméstica ou de violência contra a mulher. Afixamos cartazes com orientações à mulher, em caso de estupro, em todas as Delegacias e distribuímos cartilhas com informações relevantes, em todo estado (os serviços deveriam estar disponíveis na internet, no futuro imediato).
  6. Criamos Centros de Referência contra o Racismo, a Homofobia, de Proteção do Meio-Ambiente, de Proteção de Crianças e Adolescentes, em parceria com organizações da sociedade civil, identificando agendas de problemas, hierarquizando prioridades, definindo políticas específicas e organizando comissões representativas dos grupos envolvidos para acompanhar a aplicação das políticas e sugerir correções de rota e de metodologia, em cada caso. Os parceiros da sociedade civil participaram dos cursos de requalificação profissional dos policiais, oferecendo seminários temáticos, ligados a suas áreas respectivas de especialização e engajamento cívico. Criamos o DDH, Disque Defesa Homossexual com a participação de voluntários especialmente treinados para o atendimento personalizado e a orientação prática.
  7. Criamos a Ouvidoria da Polícia, órgão inteiramente independente, destinado, por sua autonomia e credibilidade, ao controle externo das Polícias, cuja função é decisiva, no esforço de mudança do comportamento policial e de recuperação da confiança popular nas instituições policiais. Essa recuperação é indispensável não só por razões éticas, mas também por razões práticas, pois a eficiência depende do respeito à cidadania, às leis e aos direitos humanos, conforme demonstram pesquisas empíricas internacionais. Portanto, nada mais equivocado do que a velha dicotomia: ou a polícia é eficiente ou respeita os direitos humanos. Essa falsa oposição tem sido politicamente manipulada, ao longo dos anos, por demagogos oportunistas e irresponsáveis, defensores da barbárie como arma contra a barbárie.
  8. Incluímos o estado do Rio de Janeiro no plano nacional de defesa de testemunhas, criando nosso Programa de Proteção às Testemunhas, gerenciado pela ONG Provita, conforme determina o convênio firmado com a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos.
  9. O esforço pioneiro em capacitação profissional dos policiais traduz-se no conceito de formação contínua para os policiais civis admitidos no programa Delegacia Legal, em cujo âmbito passaram a receber bolsa de R$500,00, assim como no conceito de requalificação continuada para policiais militares, reagrupados em vários núcleos novos (GEATs –Grupamentos Especiais de Ação Tática-, GEPAT –Grupamento Especial de Policiamento em Áreas Turísticas-, GEPE –Grupamento Especial de Policiamento em Estádios- e GETAMs –Grupamentos Especiais Tático-Móveis), que lhes estimula a autoestima, redefine a prática e modifica a imagem pública. Uma esfera chave de investimento em qualificação é o policiamento comunitário, cujo papel é crucial na política de segurança implantada em 1999.
  10. O Mutirão pela Paz visava oferecer policiamento ostensivo permanente e regular, de tipo comunitário (supervisionado com rigor com a participação da sociedade local), nas comunidades carentes, fazendo-o acompanhar da ação social do Estado, nas áreas de educação, saúde, cultura, esporte e lazer, saneamento, desenvolvimento urbano, habitação, transporte, etc...
  11. Foram abertas quatro mil vagas para a PM, das quais 2000 foram preenchidas. Mil viaturas foram compradas, em 1999. Além disso, auditorias organizacionais foram iniciadas, com vistas à racionalização do uso de recursos humanos, para que se reduzisse de 15% para 5% o efetivo aplicado em atividades meio, ampliando a disponibilidade de policiais para as atividades fim. As jornadas de trabalho irracionais (24 por 72 horas ou 12 por 48 horas) seriam revistas, em benefício da continuidade do trabalho e do aprimoramento das condições de vida dos policiais.
  12. Foi criada a primeira unidade multissetorial de investigação de lavagem de dinheiro, visando combater o tráfico de armas e drogas, na dimensão atacadista, já que o varejo estaria sendo enfrentado via Mutirões pela Paz. Segundo seu desenho original, participariam dessa unidade ou força-tarefa, liderada pela secretaria de Segurança, as polícias, militar e civil, a Procuradoria Geral do Estado, a Procuradoria da Justiça, a Secretaria de Fazenda, a Receita Federal, o Banco Central e a Polícia Federal. Esse é um exemplo que assinala a importância da cooperação entre as instituições e, especialmente, entre as esferas de poder federal, estaduais e municipais. Sem essa articulação, dificilmente uma política de segurança terá êxito.
  13. Foi deflagrada, em parceria com o Viva Rio e entidades da sociedade civil, a Campanha de Desarmamento, sob o lema "a consciência desarma o cidadão; a polícia desarma o criminoso". O combate ao tráfico de armas tornou-se prioritário, em função de seu papel indutor da expansão das práticas criminosas e da intensificação da violência envolvida na perpetração dos crimes. As tarefas do Estado concentravam-se em três focos: (a) capacitar os policiais no uso da arma (aproveitando-se para qualificá-lo no uso da força e na abordagem pessoal e de veículos –a blitz passaria a ser registrada em video pela própria PM e os procedimentos só teriam valor se fossem detectados pela câmera), seja oferecendo cursos de tiro, seja fazendo-os assimilar e automatizar as regras reconhecidas internacionalmente, segundo as quais o uso da arma pela polícia só é legítimo quando a vida, do policial ou de terceiros, está em risco; (b) Aumentar a eficiência na apreensão de armas; (c) Organizar um banco de dados sobre armas apreendidas e iniciar investigações sistemáticas sobre tráfico de armas.
  14. Sistema integrado de segurança
  15. nos bairros visava treinar porteiros na PM e prepará-los para ações de vigilância solidária, criando-se anéis de proteção mútua. Parcerias com empresas de telefonia celular garantia comunicação rápida com as unidades policiais locais, capilarizando, qualificando e conferindo mais agilidade ao atendimento policial. O sistema previa ampla participção comunitária, atribuindo responsabilidades aos condomínios e aos estabelecimentos comerciais dos bairros. Previa também a fiscalização rigorosa da segurança privada (o que exigia celebração de convênio autorizativo com o Ministério da Justiça) e a negociação de protocolos de ação concertada entre as empresas aprovadas –culos profissionais deveriam ser treinados pelas polícias, com custos assumidos pelas empresas- e as polícias. A Guarda Municipal seria uma parceira chave, nesse programa, que apenas começou a ser implementado, já em fins de 1999 e início de 2000.
  16. Circuito da Paz
  17. visava ocupar com cultura (sobretudo música e teatro), esporte e lazer os espaços nos quais se concentram os homicídios dolosos, nos dias e horários de risco: noites de sexta e sábado (esses fenômenos apresentam elevada taxa de regularidade, tornando-se previsíveis e, portanto, evitáveis).

As metas dos programas e projetos articulam-se, complementam-se e formam uma unidade orgânica. Eram as seguintes, as metas:

  1. integração
, ainda que não fusão, entre as polícias, seja na formação básica, seja no trabalho cotidiano (projeto das Áreas Integradas de Segurança Pública), seja nas atividades meio, seja na supervisão operacional, na orientação estratégica e na correição (projeto Instituto de Segurança Pública). Tudo isso só tem valor porque pode transformar radicalmente o comportamento policial, reduzindo a corrupção e a brutalidade, e reaproximando as polícias da comunidade;
  • reforma radical da Polícia Civil e das Delegacias
  • , atentando para organização e processamento informatizado de informações, atendimento civilizado aos cidadãos, agilização das investigações, eliminação das carceragens nas Delegacias e aproximação com a Justiça (projeto Delegacia Legal) e reforma da polícia técnica (projeto CUPTEC). A nova delegacia suprime a atomização das unidades distritais, que constitui a infra-estrutura da ineficiência e da corrupção: a fragmentação impede a universalização de procedimentos, o controle sobre o trabalho na ponta, a partilha e a centralização das informações, a avaliação sistemática das medidas adotadas e das ações realizadas. A nova delegacia visa, antes e acima de tudo, promover uma revolução gerencial na polícia civil (e não só aí), transformando o arquipélago ingovernável de unidades dispersas em uma instituição orgânica, o que, por sua vez, propicia a renúncia ao voluntarismo reativo, o abandono da praxe inercial e a instalação de uma administração racional, em que dados consistentes dêem lugar a diagnósticos rigorosos, aptos a sustentar planejamentos regulares, avaliações permanentes e monitoramentos corretivos.
  • o combate à violência de gênero e à violência doméstica, ao racismo e à homofobia, contra a agressão ao meio ambiente e a violência especificamente voltada contra crianças e adolescentes
  • : projeto Centros de Referência.
  • aproximação entre polícias e comunidades
  • , via participação comunitária e investimentos na moralização, rompendo radicalmente com o corporativismo (projetos Áreas Integradas, via Conselhos Comunitários de Segurança, Centros de Referência, Policiamento Comunitário, Mutirões pela Paz, Circuito da Paz, Sistema Integrado de Segurança, Campanha de Desarmamento, Ouvidoria e Programa de Proteção às Testemunhas);
  • capacitação profissional
  • , em cujo processo, aspectos técnicos seriam combinados com orientações dirigidas a formar policiais voltados para a proteção dos cidadãos e não do Estado (projeto Instituto de Segurança Pública);
  • melhoria das condições de trabalho e valorização dos policiais
  • , que seriam alcançadas com a aquisição de melhores equipamentos, a construção de ambientes mais apropriados e dignos, e com políticas salariais ou de gratificações, associadas a salários indiretos –saúde familiar, habitação, educação dos filhos (projeto Premiação das AISPs por redução da criminalidade; gratificação para capacitação, acoplada ao projeto Delegacia Legal; valorização profissional via projeto ISP).

    Em suma, estas são as linhas de ação privilegiadas, de janeiro de 1999 a fins de março de 2000: modernização tecnológica (sobretudo, equipamentos e interconexões, produção, organização e transmissão de dados); modernização gerencial (nossas estruturas policiais eram arcaicas e geridas irracionalmente, não havia sequer a cultura do diagnóstico, do planejamento, da avaliação e do monitoramento corretivo, institucional); modernização institucional (é possível avançar bastante, no campo das reformas organizacionais, sem ferir os limites estipulados constitucionalmente); moralização (sem a mudança profunda de nossas polícias, sem rigoroso filtro ético-disciplinar, qualquer esforço será vão, pois policiais cúmplices do crime evitarão o sucesso da luta contra o crime e aprofundarão o abismo que separa a população das instituições policiais, maculando as instituições e atingindo a imagem dos policiais honrados, que constituem a grande maioria); participação comunitária (a aproximação reverte práticas, imagens e torna o policiamento mais eficiente, conforme demonstra o êxito internacional do policiamento comunitário e dos conselhos locais).

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    Sobre o autor
    Luiz Eduardo Soares

    antropólogo, cientista político, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ex-secretário nacional de Segurança Pública

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    SOARES, Luiz Eduardo. Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4096. Acesso em: 28 mar. 2024.

    Mais informações

    Apresentação das políticas implementadas na área de segurança pública, nos estados do Amapá, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e no município de Porto Alegre, segundo dados expostos por Rita Andréa, Katia Tork, Almir Paixão e Luiz Eduardo Soares, em reunião promovida pelo ILDES (Fundação Friedich Ebert) e pela Secretaria Nacional do PT, coordenada pelo Deputado Federal Jorge Bittar, em 25 de março de 2002, em São Paulo, cujos organizadores foram Cássio França, Regina Toscano e Jorge Bittar.

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