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Reforma da Polícia e a Segurança Pública Municipal

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01/05/2003 às 00:00
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I - EXIGÊNCIAS PARA A ELABORAÇÃO DE UMA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA, NA ESFERA POLICIAL

Por que é tão difícil formular uma política de segurança pública, na esfera policial, para qualquer estado brasileiro? Em primeiro lugar, até para que se compreenda a resposta, é preciso separar o joio do trigo: o que se costuma chamar política de segurança quase sempre não passa de um conjunto de intervenções policiais, reativas e fragmentárias, determinadas pelas tragédias cotidianas, segundo a hierarquia de prioridades, ditada pela visibilidade pública e pelo varejo das pressões. Por que é tão difícil mudar a situação dramática da segurança pública, no Brasil? Em primeiro lugar, porque não há política, isto é, não há planejamento, sem diagnóstico, e não há diagnóstico sem informações qualificadas e consistentes. No campo da segurança pública, faltam informações; portanto, não se podem descrever com precisão as dinâmicas criminais, o que, por sua vez, inviabiliza a elaboração de uma política global, apta a permitir iniciativas preventivas e eficientes. O mais grave é que, sem política, isto é, sem planejamento, falta clareza quanto às metas, o que impede qualquer avaliação rigorosa. Como saber onde e quando se errou, se não há acompanhamento meticuloso dos métodos adotados e das intervenções planejadas? Por outro lado, esse acompanhamento crítico é impossível, na ausência de planejamento. Isso é fatal para qualquer política pública, digna desse nome. O importante é produzir mecanismos capazes de tornar o erro um instrumento a serviço do processo de autocorreção ou de monitoramento do processo. Somente assim, o caos da segurança pública será substituído por um sistema integrado e inteligente, com memória, história e capacidade de aprender com os próprios erros e de corrigir-se, constantemente.

Quanto à carência de informações, alguns dados são impressionantes: segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - PNAD (Anexo Vitimização) de1988, do IBGE, sabe-se que, em média, no país, cerca de 80% dos crimes contra o patrimônio (roubos e furtos), excluídos veículos (por motivos óbvios), não são denunciados às autoridades policiais, isto é, não são registrados nas delegacias. As razões alegadas são duas: falta de confiança na capacidade da polícia de recuperar os bens perdidos e prender os culpados; e medo de entrar em uma Delegacia. Portanto, os dados disponíveis na Polícia Civil sobre roubos e furtos constituem apenas uma pequena parcela dos fatos relevantes. A experiência internacional demonstra que a melhoria dos serviços policiais aumenta a confiança popular e reduz a taxa de subnotificação, ampliando o conhecimento sobre a dinâmica criminal, gerando um círculo virtuoso, uma vez que mais conhecimento propicia melhores resultados nas investigações, aprofundando a confiança. O paradoxo é que a melhora dos serviços policiais implica aumento do número de crimes registrados, o que poderia ser lido, equivocadamente, como crescimento da criminalidade. Outro exemplo de aumento de registros que não corresponde a crescimento da criminalidade, mas ao aprimoramento da segurança pública, é aquele verificado em conexão e em seguida à implementação de políticas especificamente dirigidas à proteção de determinados grupos sociais, como mulheres, minorias étnicas ou sexuais.

Se os crimes contra o patrimônio são subnotificados, dificultando a coleta de informações primárias indispensáveis ao trabalho policial, preventivo e investigativo, os crimes violentos e letais contra a pessoa também são pouco conhecidos. Tomemos um exemplo, seja pela gravidade dos dados, seja pela importância da cidade. Pesquisa (1) concluída em 1994 sobre inquéritos de 1992, relativos a homicídios dolosos, na cidade do Rio de Janeiro, revela que apenas 7,8% chegaram a ser aceitos pelo Ministério Público e considerados suficientemente instruídos, no prazo médio de dois anos. Destes, 64% referiam-se a crimes passionais, justamente aqueles de investigação mais fácil, que não envolvem carreiras criminais ou organização. Estima-se que esse tipo de crime não ultrapasse 16% do total de homicídios perpetrados na cidade, em 1992. Portanto, o mapa do círculo vicioso é lamentavelmente claro: falta investigação, falta confiança, faltam informações. Qualquer intervenção política que vise transformar esse quadro de impunidade, carência e descrédito, deve agir sobre os três tópicos: confiança (que depende de resultados e de esforços visíveis de moralização institucional); coleta e processamento de informações (que exige tecnologia e a modernização do aparelho policial); e agilização das investigações (que requer nova forma de gestão).

Uma dúvida pertinente questiona todo nosso argumento: e os policiais? Eles não conhecem o mundo do crime, as práticas criminais? Se eles conhecem, por que se está afirmando que não há informações? É verdade, os policiais sabem muito, sobretudo os mais experientes, tanto os investigadores da polícia civil, quanto os policiais militares, responsáveis pelo policiamento ostensivo. Entretanto, o que eles sabem está guardado em suas consciências e em suas memórias individuais. Quer dizer, todo esse patrimônio de conhecimentos está disperso e permanece inacessível aos gestores da segurança pública, em seus vários níveis, salvo em oportunidades muito especiais, quando certas circunstâncias fortuitas propiciam a reunião das peças do quebra-cabeças em uma unidade inteligível. Informação para valer é aquela que funciona como elemento automaticamente disponível, sempre que necessário.

Em outras palavras, sem um sistema organizado de informações automatizadas, estaremos condenados a derrotas, no combate ao crime, e não reverteremos o quadro de impunidade, que tem caracterizado nosso país. Nenhuma causa é mais poderosa, na geração da ambiência propícia para a prática criminosa, do que a impunidade. Por outro lado, para que o sistema de informações funcione com eficácia, capacitando policiais e gestores da segurança a se anteciparem ao crime e preveni-lo, é preciso que esse sistema se articule a um processo de diagnose-planejamento-monitoramento, o que, por sua vez, exige a adoção de um gerenciamento moderno e racional das instituições policiais.

Portanto, somente a combinação de todos esses ingredientes poderá reverter a situação caótica, em benefício da edificação de um sistema de segurança pública realmente eficaz, base de apoio e instrumento operacional de uma política consistente: profissionais qualificados; equipamentos adequados; tecnologia moderna; estrutura organizacional adequada à natureza de suas funções; gerenciamento racional, capaz de trabalhar com planejamento, monitoramento e avaliação de desempenho.

Tudo isso, entretanto, seria insuficiente ou inviável, se faltassem a participação comunitária e a agilidade para a captação de recursos. Afinal, mesmo os dados mais elementares sobre comportamento criminal dependem do registro das denúncias e, portanto, só existem se a população considerar que vale a pena procurar a Polícia, o que só acontecerá se a confiança for restabelecida, se a imagem de autoridade legítima da Polícia for restaurada.


II - OS PROBLEMAS DAS POLÍCIAS

A redução das taxas de criminalidade e violência é, hoje, no Brasil, do interesse de todos os segmentos sociais comprometidos com a institucionalidade democrática. Por dois motivos simples: todos têm sofrido seus efeitos e todos já começam a reconhecer que não haverá segurança pública para alguns, se não houver para todos. Por isso, a questão da segurança transcende o aspecto ideológico ou partidário, porque diz respeito a todos, na medida em que nos lança ante o dilema maior: civilização ou barbárie. Por sua vez, segurança para todos é aquela que decorre da ação do Estado e da sociedade visando a redução das fontes que geram a violência e o crime, e é também aquela que decorre das ações do Estado voltadas para tornar as polícias mais eficientes. Polícias eficientes para a democracia são aquelas que agem a serviço da cidadania e o fazem legalmente, no estrito cumprimento das leis, as quais, por sua vez, em contextos democráticos, orientam-se, em princípio, como as polícias que as aplicam: visando a preservação dos direitos de todos. Se a lei, em contexto democrático, garante ou deveria garantir a liberdade individual, cujo único limite seria o caráter universal desse benefício, isto é, seria o direito dos outros a essa mesma liberdade, a aplicação da lei, tarefa policial por excelência, corresponderia à defesa da liberdade, sempre que ela estivesse em risco pelo uso ilegítimo da liberdade individual, aquele que reduziria e desrespeitaria a liberdade alheia. Assim, compreende-se que a repressão policial, se orientada adequadamente e aplicada segundo o gradiente legal do uso da força, por definição compatível com os direitos humanos, não pode ser tratada de uma perspectiva unilateralmente negativa, como se fosse uma problemática suja e degradante, que não nos dissesse respeito e que jamais deveria ter curso na sociedade. A repressão de um gesto tirânico, de ações despóticas, de empreendimentos genocidas, de ataques racistas, misóginos e homofóbicos, de agressões às crianças e aos indefesos, de um crime, constitui um ato de defesa da vida e dos direitos civis.

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II.1 - Síntese do Diagnóstico

Algumas das mais destacadas deficiências comuns a ambas as Polícias são as seguintes:

  • coleta, registro, produção, distribuição e processamento precários das informações, gerando dados inconsistentes e pouco confiáveis, e inviabilizando diagnósticos, análises prospectivas e definição de orientações estratégicas;
  • ausência de planejamento, avaliação sistemática e de práticas corretivas;
  • atendimento, serviços e produtos de má qualidade; recrutamento deficiente e formação precária;
  • abandono dos cuidados preparatórios, necessários ao trabalho pericial: ausência da cultura técnico-policial nas esferas não envolvidas diretamente com os setores policiais especializados;
  • correição quase inexistente, em decorrência de inércia burocrática, restrições normativas, inoperância administrativa e, em alguns casos, comprometimento corporativista;
  • controle externo deficiente, em razão dos obstáculos à intervenção investigativa das ouvidorias e dos entraves à afirmação de direção interna;
  • dissociação conflitiva da outra instituição policial e dos demais agentes do sistema de justiça criminal (inclusive da secretaria de segurança), dada a autonomização atomizante das unidades (em particular, das delegacias distritais);
  • delimitação irracional (e disociada das circunscrições da outra instituição policial) dos territórios jurisdicionais;
  • despreparo no enfrentamento de questões específicas, como a violência contra as mulheres, as crianças, as minorias sexuais e os negros, o que determina incompetência na atuação das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres, por exemplo;
  • despreparo na aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente;
  • Formação mais voltada para repressão do que para prevenção (o que caracteriza o conjunto das instituições da segurança pública);
  • grande quantidade dos policiais exerce função extra (bico), para complemento salarial em razão dos baixos salários.

No caso específico da Polícia Civil, na maioria dos estados brasileiros, algumas caraterísticas específicas são encontradas:

  • atomização das unidades operacionais, segmentação das agências administrativas, fragmentação dos núcleos responsáveis por funções complementares: delegacias distritais formam arquipélago, sob o domínio de "baronatos feudais";
  • ausência de padrões universais de investigação, de métodos comuns de organização, de regimes de trabalho comuns, de escalas racionais;
  • ausência de mecanismos de informação e direção, que liguem as Delegacias ao comando da Polícia e as submetam à autoridade dos gestores públicos;
  • presença freqüente de cárceres nas delegacias, compondo um quadro de ilegalidade, desvio de funções e comprometimentos escusos;
  • perícia e departamentos de polícia técnica sucateados, desprovidos de equipamentos modernos, de treinamento especializado ou qualificação atualizada, e distanciados da comunidade científica e de suas instituições;
  • burocracia irracional, na ponta "operacional" e na retaguarda administrativa, implicando inútil e até mesmo contraproducente concentração de policiais em funções cartoriais e pseudo-administrativas;
  • privatização e pulverização das informações;
  • burocratização do inquérito como meio paradoxal de coligir provas e esclarecer crimes;
  • regulamentos disciplinares inexistentes, na prática cotidiana;
  • uso inadequado da força letal.

No caso específico da Polícia Militar, na maioria dos estados brasileiros, algumas características específicas devem ser destacadas, como particularmente problemáticas:

  • regulamentos disciplinares arcaicos que se preocupam mais com o comportamento dos policiais dentro dos quartéis do que nas ruas;
  • muitos graus hierárquicos, dificultando a relação entre policiais operacionais e o comando;
  • auditorias e Justiças Militares Estaduais, caracterizadores de foro privilegiado para julgar policiais;
  • excessiva presença de policiais em funções burocrático-administrativas, ainda que em escala inferior e em contexto menos irracional do que os verificados na Polícia Civil;
  • a média de suicídios nas Polícias Militares é muito maior do que aquela verificada na sociedade.

As conseqüências da realidade descrita são conhecidas: inviabilidade de aplicação de políticas públicas de segurança racionais; ineficiência (baixíssimas taxas de esclarecimento de crimes); descrédito público (gerando subnotificação de crimes, o que contribui para a redução da eficiência investigativa); práticas violentas (implicando medo da população); corrupção crônica (aprofundando desconfiança popular e concorrendo para a ineficiência generalizada); comprometimento capilar com a criminalidade.

A reversão do quadro descrito, respeitados os marcos legais em vigor, requer medidas simultâneas, em muitos níveis. Cada uma delas decorre da constatação tópica de cada problema específico. Seria ocioso apresentar em detalhes as propostas que formulo ou endosso. Estão todas sintetizadas no documento denominado Plano de Segurança Pública do Instituto Cidadania. Importa, aqui, destacar apenas a moldura geral, registrando que o ideal seria promover mudanças a partir de alterações constitucionais, conforme assinalado anteriormente: antes e acima de quaisquer considerações, urge realizar uma radical reforma gerencial, sem o que nenhuma medida encontrará as condições mínimas de implantação. Como qualquer grande organização moderna, as polícias precisam estruturar-se segundo parâmetros racionais, cujos eixos são a qualificação de dados, seu adequado tratamento analítico, através de diagnósticos consistentes, o planejamento, a avaliação sistemática e o monitoramento. Ao lado da reforma gerencial, impõe-se reafirmar a legalidade como princípio da ação policial (aplicar a lei, respeitando-a), o que corresponde ao reconhecimento de que eficiência policial e respeito aos direitos humanos não se contradizem, mas, ao contrário, necessitam-se mutuamente. Se acrescentarmos o reconhecimento de que, hoje, nas polícias brasileiras, o processo de modernização se superpõe ao processo de moralização, e que ambos dependem da transparência, do controle externo e da participação da sociedade, teremos os ingredientes mais importantes para uma transformação de nosso quadro institucional, na segurança pública.

Em outras palavras, eis a síntese do que urge fazer para que haja alguma chance de que se reduza a violência criminal no Brasil: (1) definição da construção social da paz como questão de Estado, não de governo, o que exige uma ampla coalizão política e um novo contrato social, a mobilização de todos os recursos governamentais e a sensibilização de toda a sociedade, para além das divisões partidárias e independentemente das divergências de interesses ou ideológicas; (2) reforma do Estado, para que as ações governamentais possam ser integradas e racionalmente orientadas para a interceptação tópica das dinâmicas geradoras da criminalidade violenta, sem prejuízo das indispensáveis mas demoradas intervenções estruturais; (3) implementação de políticas públicas sensíveis para a dimensão subjetiva, isto é, para a necessidade de valorização individual dos jovens, o que requer sintonia fina com as linguagens e o imaginário jovens; (4) reforma das polícias, via alteração constitucional e mudanças compatíveis com os marcos legais atualmente em vigência; (5) quanto a estas últimas, destaque-se a urgência da reforma gerencial e da racionalização do sistema, em benefício da implantação de políticas capazes de aprimorar a eficiência policial -reduzindo-se a impunidade- e que sejam compatíveis com os valores democráticos de respeito aos direitos humanos e civis.


NOTA

(1) SOARES, L. E. et al . Mapeamento da criminalidade letal. In: SOARES, L. E. et al. Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Iser e Relume Dumará, 1996. p. 217-242.

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Sobre o autor
Luiz Eduardo Soares

antropólogo, cientista político, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ex-secretário nacional de Segurança Pública

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Luiz Eduardo. Reforma da Polícia e a Segurança Pública Municipal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4097. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Texto da palestra "Reforma da Polícia e a Segurança Pública Municipal", proferida no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, em 11 de maio de 2002, dirigido pelo Prof. Leslie Bethel. Partes do presente texto correspondem a trechos do Plano de Segurança Pública do Instituto Cidadania, cuja coordenação foi partilhada com Antonio Carlos Biscaia, Benedito Mariano e Roberto Aguiar.

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