A possibilidade de interrupção do serviço público prestado por concessionárias diante do inadimplemento do usuário

16/07/2015 às 20:36
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Este trabalho visa a determinar sobre a possibilidade de as concessionárias interromperem a prestação do serviço público frente ao inadimplemento do consumidor, demonstrando ambos os posicionamentos presentes na doutrina e na jurisprudência brasileiras.

1. INTRODUÇÃO

Cabe ao Poder Público a prestação de serviços considerados essenciais. Pode fazê-lo diretamente ou por meio de concessionárias ou permissionárias, devendo sempre ser respeitados os princípios que o tornam adequado, dentre eles, a continuidade. Nesse contexto, este trabalho visa a determinar sobre a possibilidade de as concessionárias interromperem a prestação do serviço público frente ao inadimplemento por parte do consumidor, demonstrando ambos os posicionamentos presentes na doutrina e na jurisprudência brasileiras.

2. DESENVOLVIMENTO

Nos termos da Constituição Federal (CF), notadamente em seu artigo 175, incumbe ao Poder Público a prestação dos serviços públicos diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, na forma da lei.

São serviços públicos, nesse sentido, “todo aquele prestado pela administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado”[1].

Devido à sua imprescindibilidade, especialmente dos essenciais, a prestação de serviços públicos está sujeita a determinados princípios, podendo ser citados: a generalidade ou igualdade entre os usuários, a modicidade das tarifas, a mutabilidade do regime jurídico e a continuidade[2].

Quanto a este último, a continuidade, é de se reconhecer que os serviços públicos não podem, em princípio, ser interrompidos, não cabendo ao contratante opor contra a Administração a “exceção do contrato não cumprido”, nem cessar o suprimento por razões de greve ou de exoneração e, se o particular pleitear rescisão de contrato descumprido pelo Poder Público, segundo o parágrafo único do artigo 39 da Lei 8.987/95, os serviços não poderão ser paralisados até o trânsito em julgado da decisão judicial[3].

Há, entretanto, a questão dos serviços públicos prestados por concessionárias, na forma da Lei 8.987/95: considerando que são remuneradas por tarifa ou preço público, poderia cessar a prestação (uti singuli) quando houver inadimplemento por parte do usuário? Há na doutrina pátria posicionamento tanto no sentido de obrigação de continuidade, quanto no de possibilidade de interrupção, a depender da ótica através da qual se visualiza a questão.

Aqueles que tomam partido pela impossibilidade de interrupção baseiam seu posicionamento nos ditames do Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei 8.078/90. Segundo o texto expresso na lei consumerista (art. 22), os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias ou permissionárias, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Além disso, a cobrança de dívidas não deve causar constrangimento (art. 42 do CDC), nem recair sobre a pessoa ou sobre a família do consumidor, apenas sobre seu patrimônio.

Nesse sentido já se manifestou o STJ ao decidir o REsp 201.112 (fornecimento de água) e o AgRg no REsp 298.017 (fornecimento de energia elétrica), justificando que a concessionária terá meios próprios para efetuar a cobrança de usuário inadimplente, que não implicam a paralização do serviço, e fundamentou-se ainda na necessidade de garantia da dignidade da pessoa humana.

Doutro lado, a corrente que permite a interrupção, que nos parece mais razoável, sustenta que é favorável ao interesse público a paralisação diante do inadimplemento, por garantir a sua continuidade para os demais usuários, haja vista que a concessionária não pode indefinidamente arcar com as tarifas dos consumidores que não pagarem pelos serviços, ainda que essenciais.

Retira-se da própria legislação a autorização para tanto, senão vejamos: o artigo 175, parágrafo único da CF conferiu à lei a incumbência de dispor sobre a “obrigação de manutenção de serviço adequado”. A Lei 8.987/95 veio responder ao comando constitucional, inserindo em seu artigo 6º e parágrafos a obrigação de prestação de serviço adequado, criando duas exceções para a regra da continuidade da prestação: primeiro, informa que não se caracteriza descontinuidade a interrupção motivada por razões de ordem técnica ou de segurança; e, segundo, por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade, desde que precedida de aviso a interrupção.

O STJ atualmente se filia a esta posição, tendo decidido por sua Corte Especial, em julgamento ao REsp 363.943, que “é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica mantém inadimplência no pagamento da respectiva conta”, a não ser que o consumidor seja pessoa jurídica que preste serviços cuja paralização seja inadmissível, e observada a dignidade da pessoa humana. A paralização seria respaldada pelo interesse público, pela continuidade para a coletividade e pela vedação do enriquecimento ilícito.

Concomitantemente, a Lei n. 11.445/07, que regula a prestação de serviços no setor de saneamento, posiciona-se no mesmo sentido, dispondo que poderá haver a interrupção do serviço de abastecimento de água na hipótese de inadimplemento do usuário do serviço, após ter sido formalmente notificado.

Vê-se justo tal entendimento na medida em que a prestação de serviço público não obriga as concessionárias a fazê-lo gratuitamente: pelo contrário, isso impediria a sua manutenção para os demais. Assim, deve o CDC ser interpretado no sentido de ser justa a interrupção, desde que seja concedido aviso prévio e dada a oportunidade ao particular de sanar a dívida, respeitadas, evidentemente, as situações excepcionais em que esteja em risco a dignidade da pessoa humana.

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3. CONCLUSÃO

Em conclusão, apesar de ser característica da prestação de serviço adequado a sua continuidade, em especial os essenciais, não se pode pretender que as concessionárias de serviço público arquem com as tarifas dos inadimplentes, eis que isso prejudicaria a coletividade, ao impossibilitar a continuidade de funcionamento da prestadora. Assim, desde que precedida de aviso, é justa a interrupção do serviço diante do inadimplemento, observada em todos os casos a dignidade humana.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MEIRELLES, Celso Antônio Bandeira de. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003.

NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2012.


[1] MEIRELLES, Celso Antônio Bandeira de. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003.

[2] NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 455-458.

[3] NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 457.

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Sobre o autor
Joana de Souza Sierra

Advogada atuante em Direito Civil. Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp (rede LFG). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC). Graduada em Administração Empresarial pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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