Relativização da coisa julgada: confronto entre a justiça e a segurança jurídica

Exibindo página 3 de 3
Leia nesta página:

CONCLUSÃO

É perceptível os reflexos que o advento de novos meios tecnológicos trazem para o mundo jurídico, na proporção que novas técnicas surgem para garantir uma maior precisão para a aferição da verdade fática da demanda posta em juízo. Desta feita, o direito como ciência social não pode se manter eqüidistante desta realidade, pois se assim procedesse estaria abrindo graves precedentes para o cometimento de iniqüidade na prestação da tutela jurisdicional.

O órgão judicante deve se valer dos meios probandis admitidos em lei para perseguir a verdade e, por fim, alcançar a justiça nas suas decisões. Todavia, existindo no processo o confronto entre a Segurança jurídica conferida pela imutabilidade da coisa julgada material e o prevalecimento da justiça, o judiciário não deve se ater a dogmas caducos em detrimento da possibilidade de se alcançar a verdade do caso em apreço.

No emblemático posicionamento do insigne Marinone:

A ‘tese da relativização" contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por "justiça" e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema. Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por qualquer cidadão médio (l’uomo della strada), o que a torna imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência, nos termos a que se refere Canaris.

O grande filósofo alemão Gustav Radbruch há muito já criticava a inconsistência que advém da falta de uma concepção adequada de justiça, quando dizia que a "disciplina da vida social não pode ficar entregue, como é óbvio, às mil e uma opiniões dos homens que a constituem nas suas recíprocas relações. Pelo fato de esses homens terem ou poderem ter opiniões e crença opostas, é que a vida social tem necessariamente de ser disciplinada duma maneira uniforme por uma força que se ache colocada acima dos indivíduos. [23]"                     

O problema da falta de justiça não é fato que aflige apenas o sistema jurídico. Outros sistemas sociais apresentam injustiças gritantes, mas é equivocado, em qualquer lugar, destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida.

Evidentemente, quando se trata de valores jurídicos é preciso fazer um juízo de ponderação, uma vez que, no que pese os ditames dos princípios jurídicos, é cediço que num confronto entre princípios, nenhum princípio impera de forma absoluta. Destarte, faz necessário parcimônia do órgão judicante para que no exame do caso em concreto pondere e fundamente sua decisão em prol da feição que melhor atenda os pressupostos para o prevalecimento da lídima justiça.

 Infere-se que a problemática da relativização da coisa julgada material é um dos fenômenos mais complexos dentro do mundo jurídico, haja vista que o uso imoderado e/ou banalizado do instituto, sob o pretexto de estar se buscando atender a justiça no caso em concreto, pode conduzir a injustiças ainda maiores, na medida em que daria ensejo à perda da confiabilidade dos provimentos jurisdicionais, uma vez que estes poderiam ser flexibilizados todas as vezes que a parte prejudicada alegasse que estaria exposta a uma situação injusta.

Assim é imperativo seguir parâmetros legais criteriosos para a admissibilidade e efetivação da relativização da res iudicata, pois a flexibilização inadvertida e negligente conduziria a um estado de insegurança jurídica em que a instabilidade e a injustiça seriam vertentes mais gravosas.

Destarte a garantia Constitucional da coisa julgada insculpida no art. 5º, inciso XXXVI, é um preceito inerente ao Estado Democrático de Direito que deve ser respeitado e a sua relativização só deve ser admitida em caráter excepcional, mediante a demonstração do preenchimento das hipóteses legais de admissibilidade e por meio de instrumento processual apto para tal fim.


REFERÊNCIAS

ASSIS, Araken de. Eficácia da Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 4 ed., 2004.

BERALDO, Leonardo de Faria. A Relativização da Coisa Julgada que Viola a Constituição. Rio de Janeiro: América Jurídica, 3 ed. 2003.

BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural, tradução de Sérgio Bath. Brasília: UnB, 1997.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da Coisa Julgada Material. Rio de Janeiro: América Jurídica, 4 ed. 2004.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a Coisa Julgada Material. São Paulo: Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n.º 55/56, 2002.

MACEDO, Alexandre dos Santos. Apud: NASCIMENTO, Carlos Valder do. Coisa Julgada Inconstitucional. 4 ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004.

MARINONE, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conheciemento. 5 ed., São Paulo: RT, 2006.                       

RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental, tradução de Breno Silveira. 2. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1967, Livro Quarto.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. A coisa julgada e a Rescindibilidade da sentença. Revista Jurídica n. 219, jan/96, pág. 20.

THEODORO JÚNIOR, Humberto e FARIA, Juliana Cordeiro. A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle. 4 ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004


Notas

[1]  KELSEN, Hans. O que é justiça?, tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 21.

[2] BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural, tradução de Sérgio Bath. Brasília: UnB, 1997, p. 33.

[3] Idem, p. 37.

[4] BOBBIO, op. cit., p. 111.

[5] Aristóteles defendia que, para se chegar à melhor solução, dever-se-ia lançar mão daquela opção que estivesse no meio termo entre os extremos, ou seja, para o filósofo, a justiça da decisão encontrava-se numa espécie de média aritmética.

[6] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 350.

[7] LIEBMAN, op. cit., p. 79.

[8] Como assinala Marinone “a imutabilidade que se verifica em relação as sentenças homologatórias (art.269, incisos II, III e V,do CPC) não é precisamente inerente à sentença, mas decorrente do ato jurídico perfeito homologado. E o ato jurídico perfeito que a sentença homologatória reconhece que opera a estabilidade – com status Constitucional idênticos ao da coisa julgada.

[9] Nesse sentido, na jurisprudência recente, cf. STJ, REsp 748.452/SC, Rel. Ministro Castro Meira, 2.ª T., julgado em 16.02.2006, DJ 13.03.2006 p. 278.

[10] A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle. 3ª ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, pag. 93.

[11] No mesmo sentido, na doutrina brasileira, é o que escrevem, dentre outros, Cândido Rangel Dinamarco, Litisconsórcio, 7. ed., Malheiros, 2002, n. 64.6, p. 288; Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, 10. ed., Forense, 1998, v. I, n. 304, p. 205.

[12] Trata-se de orientação há muito tempo pacífica no STF e no STJ. A respeito, cf. os seguintes julgados:

STF, RE 63677-GO, rel. Min. Amaral Santos, 1.ª T., j. 21.08.1969; STF, RE 96696-RJ, rel. Min. Soares Munoz, j. 22.10.1982, DJ 17.12.1982, p. 13210, RTJ 104-02, p. 826; STF, RE 97.589-SC, rel. Min. Moreira Alves, Pleno, j. 17.11.1982, DJ 03.06.1983, p. 7883.

STJ, REsp 26898/SP, Rel. Ministro Dias Trindade, 3.a t., , julgado em 28.09.1992, DJ 26.10.1992 p. 19050; REsp 18550/SP, Rel. Min. Pádua Ribeiro, 2.ª T., julgado em 20.10.1993, DJ 22.11.1993 p. 24931; STJ, REsp 23.182/GO, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4.ª T., julgado em 25.10.1994, DJ 19.12.1994 p. 35318; STJ, REsp 97928/RJ, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, 3.ª T., julgado em 13.08.1996, DJ 29.10.1996 p. 41645; STJ, REsp 459.351/SP, Rel. Ministro Castro Filho, 3.ª T., julgado em 22.05.2003, DJ 16.06.2003 p. 338; STJ, AgRg no REsp 599.505/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., julgado em 28.10.2004, DJ 29.11.2004 p. 331.

[13] Enrico Tullio Liebman, a propósito, escreveu que “il diffeto delle condizioni dell´azione non riguarda qual determinato processo, ma l’azione in sè, non potrà proporsi nuovamente um altro processo finchè non mutano le circostanze di fatto rilevanti (se, per. es. non sopravviene l´interesse ad agire, che prima era mancante)” (Manuale di diritto processuale civile. 4. ed. Milão, 1980, vol. I, n. 80, p. 156). Sob este prisma, a sentença que acusa a ausência de uma condição da ação é, a rigor – e embora se diga estar diante de sentença que extingue o processo sem julgamento do mérito – algo até mais grave, perante o ordenamento jurídico, que a sentença que julga improcedente o pedido. A sentença terminativa aí proferida declara que a ação sequer poderia ter sido proposta, porquanto ausentes os requisitos minimamente exigidos pelo sistema, para isso ocorresse.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

[14] Cf., no mesmo sentido, Cândido Rangel Dinamarco, Relativizar a coisa julgada material, in Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa julgada inconstitucional, América Jurídica, 2002, p. 33-75; Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle, in Coisa julgada inconstitucional, cit., p. 77-123

[15] Afirmando que, no caso, “possível é a solução pela via da ação ordinária”, cf. STJ, REsp 19241/SP, Rel. p/ Acórdão Ministro Menezes Direito, 3.ª T., julgado em 02.03.2000, DJ 11.09.2000 p. 249. No mesmo sentido, mais recentemente: STJ, REsp 331850/RS, Rel. Ministro Menezes Direito, 3.ª T., julgado em 21.03.2002, DJ 06.05.2002 p. 288.

[16] STJ, REsp 12586/SP, Rel. Ministro Waldemar Zveiter, 3.ª T., julgado em 08.10.1991, DJ 04.11.1991 p. 15684.

[17] STJ, 3.ª T., REsp 245647-SC, rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 19.02.2001, DJU 02.04.2001, p. 290.

[18] Direito Civil – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2001, pág. 510

[19] CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da Coisa Julgada Material. Rio de Janeiro: América Jurídica, 4ª ed. 2004, pág. 200.

[20] A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle. 4ª ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, pag. 108/109.

[21] Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pag. 188.

[22] DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO. I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. II – Nos termos da orientação da Turma, "sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza" na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade".IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.

[23] Gustav Radbruch, Filosofia do Direito, cit., p. 178.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Alberto Mendonça de Melo Filho

Bacharel em Direito pelo UNIPÊ. Universidade situada na cidade de João Pessoa-PB. Graduando-se no ano de 2004.Especialista em Processo Civil pela UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina) em parceria com o Instituto Brasileiro de Processualista Civis (IBPC).Servidor Público efetivo no cargo de Analista Judiciário do STM.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

trata-se de trabalho monográfico.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos