Direitos humanos internacionais:defesa dos inocentes ou legitimação ideológica de intervenção?

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O artigo estuda o uso dos Direitos Humanos como mecanismo de encobrimento dos reais motivos das intervenções "humanitárias" em nome destes direitos e da democracia. Para isto é estudado o conceito de ideologia nos seus sentidos positivo e negativo.

            Palavras cheias, ou palavras viajantes são aquelas que recebem significados distintos no tempo e no espaço. Palavras e expressões como liberdade, direitos humanos e democracia tem significados distintos em tempos e em culturas diferentes. O uso destas expressões e a construção do seu sentido comum tornou-se uma forma importante de poder e a construção do sentido de determinadas palavras centrais para a compreensão do mundo é fundamental para o poder nas suas diversas expressões. Há uma competição global dos diversos poderes, pela construção do sentido destas palavras. A hegemonia do sentido de palavras como ecologia, desenvolvimento, direitos humanos, liberdade, democracia representa a hegemonia de um projeto de poder e de uma compreensão de mundo.

            Para compreendermos estas relações de poder e desocultarmos os interesses que se escondem nos discursos dos chefes de estado, da grande mídia e de outros porta vozes difusos do mega poder econômico, é fundamental discutirmos o significado de palavras como ideologia, real, realidade, fantasia, entre outros.

            Entre diversas palavras centrais para o poder, no campo do direito internacional e das relações internacionais, palavras como direitos humanos e democracia tornaram-se essenciais para justificar as mais variadas formas de intervenção, boa parte destas rotuladas como humanitárias.

            Uma questão muito interessante nestes discursos que justificam as intervenções por meio de sanções econômicas e ações militares, com consequências graves para a população, é o fato de que elas são hoje, facilmente desmentidas. A fragmentação dos meios de informação e outros meios alternativos de comunicação possibilita que tenhamos acesso a informações e imagens que permitem desocultar os interesses escondidos sob o rótulo de intervenções humanitárias, direitos humanos e democracia. Entretanto, mesmo com o aumento da possibilidade de informação e acesso a meios alternativos, uma parcela expressiva da opinião pública repete o discurso da grande mídia, e uma outra parcela expressiva permanece inerte.

            Há ainda uma constatação mais grave: nas escolas fundamentais, de ensino médio e nas universidades, e mesmo nos cursos de pós-graduação, o discurso uniforme e pacificado da busca da paz social, direitos humanos e liberdade, é repetido à exaustão de uma maneira inocente em um jogral desconectado do real. Como uma realidade construída a partir de conceitos sacralizados. Lembrando o filosofo italiano Giorgio Agambem, a sacralização de determinadas palavras, práticas e pessoas, significando a retirada do livre uso comum por meio de um rito (ritual) sustentado por um mito, é um exercício de poder importante que precisa ser desmascarado. A profanação destes espaços sacralizados, retirados do livre uso, é fundamental para o processo de desmascaramento dos discursos fáceis, das puras intenções humanitárias que escondem poderosos jogos de poder.

            Neste artigo pretendemos refletir sobre estas práticas de encobrimento que se tornaram comuns e aceitas nas discussões do direito internacional e das relações internacionais, a partir da discussão do sentido das palavras ideologia, fantasia, real e realidade. 

IDEOLOGIA

Iniciemos o presente estudo partindo da premissa de que há uma estrutura ideológica em tudo o que vivenciamos como realidade. Acreditamos que a palavra ideologia pode ser utilizada para designar desde um sistema interno de ideias, experiências e pré-compreensões, por meio do qual um indivíduo tem acesso à realidade, e a interpreta no meio em que vivencia suas relações com uma estrutura social, até os encobrimentos e idéias falsas que legitimam os atos de um poder político dominante.

Pensando a Ideologia como um complexo conjunto interno de compreensões do mundo, sua função é construir uma fantasia que sirva de esteio à própria realidade do sujeito, proporcionando uma ilusão que o estrutura para vivenciar as suas efetivas relações sociais. Assim, o indivíduo mascara um insuportável núcleo do Real, impossível de ser alcançado.

Percebemos que não há uma linha demarcatória clara que separe a ideologia da realidade. Mesmo assim, acreditamos que seja possível tentar assumir um lugar que nos permita uma certa libertação dessa “fantasia ideológica” que estrutura o nosso campo de visão. Desse lugar, poderemos denunciar a ideologia, na qualidade de sujeitos de um olhar livre de pré-conceitos históricos e culturais. Para isso, precisamos ter mente que nossos “óculos”, cujas lentes enxergam o mundo ideológico que criamos e contamos para nós mesmos, devem ser constantemente tirados, de forma que tentemos enxergar o que subjaz a uma simples visão.

Um ponto interessante que devemos ter em mente para esse exercício é o lema do psicanalista Jacques Lacan de que “no Real nada falta”, de que toda percepção de uma falta, ou de um excesso ("não há o bastante disto", ou "há demais daquilo") implica sempre em um universo simbólico, ou seja, ideológico.

Tomemos como exemplo a percepção ideológica incrustada no pensamento pré-conceituoso de um norte-americano racista que diz: “Há muçulmanos em excesso nas ruas de Nova Iorque!”. Ora, qual a “lente ideológica” que lhe proporciona essa percepção? Como se estrutura o seu espaço simbólico para que ele possa perceber como um excesso perturbador o fato de muçulmanos andarem pelas ruas de sua cidade?

Uma outra lição a ser extraída no tocante ao campo interno da ideologia é o “descortinamento” do que chamamos de “crença”. Diante da noção althusseriana de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), podemos verificar a existência da ideologia nas práticas, rituais e instituições ideológicas, de onde vêm a “crença” que sustenta a base ideológica que estrutura as nossas relações sociais.

Em Um Mapa da Ideologia[1], o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek diz que a fé religiosa, por exemplo, não é apenas uma convicção, ou uma crença interna, mas é a Igreja como instituição ideológica, e seus rituais (orações, batismo, crisma, confissão, etc), os quais, longe de serem uma simples externalização secundária de uma crença íntima, representam os próprios mecanismos que a geram. Ele explica que, quando ALTHUSSER (1970) repete, seguindo Pascal, “Aja como se acreditasse, reze, ajoelhe-se, e você acreditará, a fé chegará por si”[2], ele delineia um complexo mecanismo reflexo de fundação "autopoiética" retroativa que excede em muito a afirmação reducionista da dependência da crença interna em relação ao comportamento externo.

Assim, ZIZEK (1996) entende que “a lógica implícita dessa argumentação é: ajoelhe-se e você acreditará que se ajoelhou por causa de sua fé — isto é, o fato de você seguir o ritual é uma expressão/efeito de sua crença íntima; ao ser executado, o ritual "externo" gera sua própria base ideológica”.[3]

Uma outra prática de “desencobrimento” que verificamos é a estudada por Michel Pêcheux, filófoso francês fundador a Escola Francesa da Análise do Discurso, que deu continuidade às elaborações teóricas de Louis Althusser. Pêcheux trabalhou os mecanismos discursivos que geram a “evidência” do sentido, explicando como a ideologia pode se materializar na linguagem. Ele foi precursor da análise do discurso, de onde se extrai que as pessoas são filiadas a um saber que não se aprende, mas que produz seus efeitos por intermédio da ideologia e do inconsciente. Para Pêcheux (1997), toda descrição “está exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar um outro.”[4]

Ainda em Um Mapa da Ideologia, Zizek vai de encontro com o pensamento de Michel Pêcheux, ao explicar que um dos estratagemas fundamentais da ideologia é a referência a alguma evidência: “Olhe, você pode ver por si mesmo como são as coisas!” ou “Deixe os fatos falarem por si só!”. Para Zizek, estes discursos constituem a arqui-afirmação da ideologia, considerando-se, justamente, que os fatos nunca "falam por si", mas são sempre levados a falar por uma rede de mecanismos discursivos.

Seguindo esse mesmo caminho, Zizek cita o filósofo argentino Ernesto Laclau, que afirmava que o sentido não é inerente aos elementos de uma ideologia como tal — antes, esses elementos funcionam como "significantes soltos", cujo sentido é fixado por seu modo de articulação hegemônica. Zizek explica que “a palavra Ecologia, por exemplo, nunca é a "ecologia como tal", mas está sempre encadeada numa série específica de equivalências: pode ser conservadora (defendendo o retorno a estilos tradicionais de vida), socialista (a causa primordial dos problemas ecológicos reside na exploração capitalista dos recursos naturais, voltada para o lucro), liberal-capitalista (os danos ambientais devem ser incluídos no preço do produto, deixando-se ao mercado a tarefa de regular o equilíbrio ecológico), feminista (a exploração da natureza segue a atitude masculina de dominação), autogestora anarquista (a humanidade só poderá sobreviver se se reorganizar em pequenas comunidades autônomas que vivam em equilíbrio com a natureza), e assim por diante”.[5]

Percebemos que nenhum desses encadeamentos é o “verdadeiro” em si, ou seja, não há nada insculpido na natureza da problemática ecológica que defina o seu sentido de forma taxativa. Dessa maneira, esses discursos estão inseridos em uma luta pela hegemonia discursiva, e se “apropriarão” da ideologia dependendo do resultado dessa luta no campo ideológico dos indivíduos inseridos em suas estruturas sociais.

Podemos também perceber que a ideologia pode estar perfeitamente inserida em um falso “poder de escolha”, ou seja,  que há uma “lógica ideológica” por trás das nossas supostas “livres” escolhas, as quais, de acordo com CHESTERTON (1955), de escolhas nada têm, uma vez que nos são impostas de forma oculta. Vejamos:

Em termos gerais, podemos afirmar que o livre pensamento é a melhor de todas as salvaguardas contra a liberdade. Aplicada conforme o estilo moderno, a emancipação da mente do escravo é a melhor forma de evitar a emancipação do escravo. Basta lhe ensinar a se preocupar em saber se quer realmente ser livre, e ele não será capaz de se libertar.[6]

Em Bem vindo ao Deserto do Real, ZIZEK (2003) conclui o pensamento de Chesterton:

“A lógica oculta é evidentemente a mesma que está por trás da escolha imposta: você tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a escolha certa.”[7]

Aprofundemos um pouco mais nas falsas liberdades de escolha. Para isso, devemos lembrar da teoria marxista clássica dos Aparelhos de Estado, que foram chamados por Louis Althusser[8] de Aparelhos Repressivos de Estado, dentre os quais se encontram o governo, o exército, a polícia, as prisões, os tribunais, etc.

Seguindo essa linha, chegamos a um segundo caminho criado por Althusser (uma teoria correspondente à marxista), a qual denominou Aparelhos Ideológicos do Estado - AIE. Para ele, os Aparelhos Repressivos de Estado funcionam, primordialmente, através da violência e, secundariamente, através da ideologia, enquanto que os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam, predominantemente, através da ideologia e, em segundo lugar, através da violência, seja ela atenuada, dissimulada ou simbólica. Nos dizeres de Althusser:

“Enumeramos nas formações sociais capitalistas contemporâneas, um número relativamente elevado de aparelhos ideológicos de Estado: o aparelho escolar, o aparelho religioso, o aparelho familiar, o aparelho político, o aparelho sindical, o aparelho de informação, o aparelho cultural, etc.”[9]

Na visão althusseriana, a escola é o mais expressivo AIE de nossas sociedades. Mas por que a Escola? Porque desde a mais tenra idade, a Escola ensina os saberes contidos da ideologia dominante, inserindo-os no ensino das crianças, de todas as classes sociais. É lá que é construída a ideologia interna de cada cidadão, que, acreditando em suas “livres escolhas”, passa a saber qual o papel deverá desempenhar na sociedade. Se for de explorado, saber receber ordens. Se for de explorador, saber falar aos seus subordinados. Se for de policial, saber mandar e ser obedecido, etc.

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Finalizamos o campo interno da ideologia com um caso contado por Slavoj Zizek sobre o do indivíduo típico da Alemanha do fim dos anos 30:

“Ele é bombardeado pela propaganda anti-semita, que retrata o judeu como uma encarnação monstruosa do Mal, como o grande manipulador atrás dos bastidores etc. Mas, ao voltar para casa, encontra-se com o sr. Stern, seu vizinho, um bom homem com quem se pode conversar à noite e cujos filhos brincam com os dele. Porventura essa experiência cotidiana não cria uma resistência irredutível ao constructo ideológico? A resposta, evidentemente, é não. Quando a experiência cotidiana cria essa resistência, é porque a ideologia anti-semita ainda não nos captou realmente. Uma ideologia só "nos pega" para valer quando não sentimos nenhuma oposição entre ela e a realidade — isto é, quando a ideologia consegue determinar o modo de nossa experiência cotidiana da própria realidade. Assim, como haveria nosso pobre alemão, se fosse um bom anti-semita, de reagir a essa divergência entre a imagem ideológica do judeu (maquinador, arquitetador de tramas secretas, explorador de nossos homens decentes, etc.) e a experiência cotidiana comum de seu bom vizinho, o sr. Stern? Sua resposta seria transformar essa divergência, essa própria discrepância, num argumento a favor do anti- semitismo: "Está vendo como eles são mesmo perigosos? É difícil reconhecer sua verdadeira natureza. Eles a escondem por trás da máscara da aparência cotidiana — e é exatamente essa ocultação da verdadeira natureza, essa duplicidade, que constitui um traço básico da natureza judaica." Uma ideologia logra pleno êxito quando até os fatos que à primeira vista a contradizem começam a funcionar como argumentos a seu favor. Então, uma ideologia é necessariamente "falsa"? Não. Quanto a seu conteúdo positivo, ela pode ser "verdadeira", muito precisa, pois o que realmente importa não é o conteúdo afirmado como tal, mas o modo como esse conteúdo se relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu próprio processo de enunciação. Estamos dentro do espaço ideológico propriamente dito no momento em que esse conteúdo — "verdadeiro" ou "falso" (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideológico) — é funcional com respeito a alguma relação de dominação social ("poder", "exploração") de maneira intrinsecamente não transparente: para ser eficaz, a lógica de legitimação da relação de dominação tem que permanecer oculta. Em outras palavras, o ponto de partida da crítica da ideologia tem que ser o pleno reconhecimento do fato de que é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade”.[10]

Passemos, a partir de agora, ao campo externo da ideologia. Vamos percebendo como as nossas “lentes ideológicas” internas (nosso sistema de compreensões do mundo, como é o caso da ideologia anti-semita), podem ser afetadas por ideologias externas, aplicadas por um poder dominante.

Tomemos como exemplo um texto divulgado pela mídia explicando que as razões de uma potência ocidental que interveio em um país de terceiro mundo foram as diversas violações dos direitos humanos sofridas por seus cidadãos. Esse texto não menciona se houve interesses políticos ou econômicos por parte desse poder dominante, mas é focado tão somente no caráter humanitário e despolitilizado dessa intervenção.

O exercício da crítica à ideologia é tentar perceber se há algum “pano de fundo”, alguma lacuna, que separe o sentido público oficial desse texto da sua verdadeira intenção. De fato, pode ser absolutamente verídico que, nesse país que sofreu a intervenção, direitos humanos elementares dos sujeitos não tenham sido respeitados, e que o quadro dos direitos humanos irá melhorar a partir dela. Mas, será mesmo, que tal humanitarismo, que se apresenta como uma defesa pura dos inocentes contra as máquinas cruéis do Estado, não tem nenhum interesse “extra-oficial” por parte da potência hegemônica?

Entendemos que a legitimação para uma intervenção é "ideológica" na medida em que os seus verdadeiros motivos, tais como interesses econômicos e políticos, são encobertos, por meio do discurso de uma política supostamente despolitizada de ajuda aos impotentes.

De fato, é necessário irmos além de interesses políticos e econômicos encobertos, na medida em que vamos percebendo que a ideologia de intervenção e dominação em um país de terceiro mundo sempre vem acompanhada da promessa de “liberdade” ao seu povo, chamada: capitalismo liberal-democrático e inserção na economia de mercado mundial.

Vejamos a derrubada de Saddam Hussein, liderada pelos Estados Unidos em 2003. Foi realizada a ocupação no território iraquiano sob a alegação de que Saddam mantinha um arsenal de armas químicas que ameaçavam a paz mundial. Tropas militares internacionais chegaram a um a 150 mil soldados estrangeiros e diversos acordos econômicos foram criados para que os Estados Unidos garantissem a posse sob as reservas de petróleo do Iraque. Depois da guerra, a situação do país passou a ser ainda mais complicada do que antes e estima-se que a presença norte-americana foi responsável por centenas de milhares de mortos no Iraque.

Pois bem. Uma intervenção legitimada em termos de por fim ao sofrimento do povo iraquiano, sob o argumento de uma política meramente humanitária, anti-política e libertadora, de prevenir o sofrimento e manter a paz mundial equivaleu, além das milhares de mortes e das garantias econômicas feitas ao poder intervencionista, a uma proibição implícita ao seu povo de optar por qualquer sistema que não se incluísse nos moldes ocidentais de desenvolvimento.

Lembremos, por outro lado, dos bombardeios da OTAN ocorridos na antiga Yugoslávia, onde acontecia uma das grandes Guerras do Bálcãs, que durou de 1991 a 2001. Nesse conflito ocorreram várias limpezas étnicas em áreas sérvias dentro da Ex-Iugoslávia, com o objetivo de criar-se um Estado habitado por maioria de etnia Sérvia. O ideal de uma "Grande Sérvia"[11] foi a meta principal dos líderes e combatentes sérvios que, numa guerra sangrenta, deixaram dezenas de milhares de não-sérvios mortos e centenas de milhares desabrigados.

A guerra despertou grande preocupação na comunidade internacional, pois os países Europeus passaram a perceber que esses conflitos lhes ameaçavam, em especial pelo alto fluxo de refugiados e pelas linhas de combate instaladas em suas zonas limítrofes. Além disso, as Forças de Paz então presentes na Ex-Iugoslávia pareciam não “barrar” a matança e a expulsão de milhares de pessoas. De certa forma, esse processo acentuou-se pela possibilidade da Ex-Iugoslávia se dividir ainda mais, com a centralização do poder nas mãos do líder Slobodan Milosevich.

Esta preocupação foi externada ao mundo com um discurso intervenção em prol da defesa dos direitos humanos das populações civis atingidas pela guerra étnica. Todas as mídias mostraram como forças da OTAN interviram em um país, não por interesses econômicos ou estratégicos específicos, mas, simplesmente, porque nesse país foram cruelmente violados os direitos humanos elementares de um determinado grupo étnico.

Em seu artigo Contra os Direitos Humanos[12], ZIZEK (2010) cita o ensaio de Vaclav Havel, ex-presidente da Checoslováquia e da República Checa, intitulado "Kosovo e do Fim do Estado-Nação", por meio do qual ele explica que o bombardeio da OTAN na Iugoslávia “coloca os direitos humanos acima dos direitos do Estado. A República Federal da Iugoslávia foi atacada pela Aliança sem um mandato direto da Organização das Nações Unidas. Isso não ocorreu de forma irresponsável, como um ato de agressão, ou de desrespeito pelo Direito Internacional. Aconteceu, pelo contrário, por respeito à Lei, uma Lei que está acima do que a Lei que protege a soberania dos Estados”.

Para Zizek, Vaclav Havel especifica esta Lei maior, quando afirma que "Os direitos humanos, das liberdades humanas, e da dignidade humana têm suas raízes mais profundas em algum lugar fora do mundo perceptível. [...] Enquanto o Estado é uma criação humana, os seres humanos são a criação de Deus."

Zizek percebeu que uma conclusão se impôs às duas declarações de Havel: que a OTAN foi autorizada a violar a Lei Internacional existente, uma vez agiu como um instrumento direto da Lei Maior, a Lei de Deus.

Podemos ver que não houve, em nenhum momento, menção a qualquer interesse estratégico de algum Estado na justificativa de intervenção da OTAN. Entretanto, a problemática colocada por Zizek não é a retórica vazia dos direitos humanos, onde os interesses particulares foram encobertos. O que é problemático para ele é “a legitimação ética puramente humanitária, que despolitiza a intervenção, transformando-a em uma intervenção a uma catástrofe humanitária fundamentada em razões puramente morais, e não uma intervenção em uma luta política bem definida.”

Ele explica que “o problema com o pacifismo militarista (este foi o termo cunhado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck a propósito da intervenção da OTAN nos Balcãs, que estamos nos aproximando da era do humanismo militarista, ou até mesmo o pacifismo militarista), não reside no “militarista”, mas no “humanismo”, ou “pacifismo”. O problema reside na forma como a intervenção militarista é apresentada, para ajudar as vítimas da etnia e assim por diante, o ódio e a violência, justificados diretamente em Direitos Humanos universais despolitizados”.

Ainda no contexto do que subjaz aos nossos “óculos ideológicos”, há uma breve história contada por Zizek sobre um trabalhador suspeito de roubar no trabalho. No final do dia, ao sair da fábrica, os guardas inspecionavam cuidadosamente o carrinho de mão que ele empurrava, mas nunca encontravam nada. Estava sempre vazio. Um belo dia, a ficha caiu: o que o trabalhador roubava eram os próprios carrinhos de mão.

O filósofo esloveno conta esta história com o intuito de explicar a violência “moderna”. Para ele, há sempre um “pano de fundo” no que entendemos como um ato de violência. Há uma violência invisível aos nossos olhos, que se encontra encoberta, por trás dos cenários que entendemos como violentos.

Em sua obra Violência, ZIZEK (2014) explica que:

“Os sinais mais evidentes de violência que nos vêm à mente são atos de crime e terror, confrontos civis, conflitos internacionais. Mas devemos aprender a dar um passo para trás, a desembaraçar-nos do engodo fascinante desta violência ‘subjetiva’ diretamente visível, exercida por um agente claramente identificável. Precisamos ser capazes de perceber os contornos dos cenários que engendram essa explosões. O passo para trás nos permite identificar uma violência que subjaz aos nossos próprios esforços que visam combater a violência e promover a tolerância”.[13]

Dando continuidade ao tema, para o filósofo, a violência subjetiva é a aparente, mas esta tem a violência objetiva como premissa subjacente:

“é somente a parte mais visível de um triunvirato que inclui também dois tipos objetivos de violência. Em primeiro lugar há uma violência ‘simbólica’ encarnada na linguagem[14] e em suas formas. (…) Essa violência não está em ação apenas nos casos evidentes – e largamente estudados – de provocação e de relações de dominação social que nossas formas de discurso habituais produzem: há uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence à linguagem enquanto tal, à imposição de um certo universo de sentido. Em segundo lugar, há aquilo que eu chamo de violência sistêmica, que consiste nas consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas econômico e político. A questão é que as violências subjetivas e objetivas não podem ser percebidas do mesmo ponto de vista: a violência subjetiva é experimentada enquanto tal contra o pano de fundo de um grau zero de não violência. É percebida como uma perturbação do estado “normal” de coisas. A violência objetiva é uma violência invisível, uma vez que é precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual percebemos algo como subjetivamente violento”.

Relembrando, novamente, o exercício de “descortinamento”, há de ser dado um passo para trás, para que tentemos, ao invés de simplesmente confrontar um ato de horror, olhar para a situação de um outro lugar, de modo que consigamos enxergar se há alguma premissa subjacente ao que nos é diretamente visível.

Enfim, os Direitos Humanos são mesmo os direitos daqueles que estão morrendo de fome, ou expostos a uma violência assassina? Acreditamos que não. Em um nível geral, concordamos com o texto Contra os Direitos Humanos, onde Zizek diz que a política supostamente despolitizada dos Direitos Humanos é, na verdade, uma ideologia do intervencionismo militar, que serve a fins político-econômicos específicos. E colocando em uma forma leninista de ver o problema, ele conclui que:

“Hoje, o que os “direitos humanos de vítimas sofredoras do Terceiro Mundo” efetivamente significam, no discurso dominante, é o direito das próprias potências do Ocidente de intervir política, econômica, cultural e militarmente em países do Terceiro Mundo de sua escolha, em nome da defesa dos direitos humanos.”

CONCLUSÃO   

            Neste diálogo com Zizek, e outros autores, importante para nos ajudar a desvendar o propositalmente oculto no discurso dos direitos humanos e da democracia nas relações internacionais e no direito internacional, podemos perceber a importância da compreensão das palavras ideologia, real, realidade e fantasia para a desconstrução do discurso hegemônico contemporâneo de liberdade, democracia e direitos humanos, como mecanismo de ocultamento da sistemática violação da mesma ideia que estas palavras podem representar. E o que pode parecer mais grave, como que, muitas vezes, a intervenção em nome da defesa destas ideias, representadas por estas palavras, mesmo que real, oculta outros interesses contraditórios às mesmas.

            Começando pela palavra liberdade, o seu uso ideológico é central na hegemonia do projeto “liberal capitalista” e sua “democracia representativa”, expressões que fundamentam ideologicamente o poder de grandes empresas e um restrito grupo de pessoas que concentra riqueza equivalente à de 99% da população. Importante lembrar que não só a luta pelo conceito de liberdade é fundamental, mas, o que está mais escondido, é o fato de tornar a palavra “liberdade” e sua discussão, como central e universal, o que não corresponde à realidade em diversas culturas. A centralidade da palavra liberdade para parte da cultura dita “ocidental” não é universal. Outras culturas têm outros valores que fundamentam as suas relações sociais, como harmonia para algumas culturas da Ásia ou complementaridade para culturas andinas.

            O mesmo problema se repete com a palavra democracia, desde sua redução à democracia “representativa aristocrática”, na versão norte-americana, como forma democrática ideal, até a negação de outras práticas de organização para construção da vontade comum e decisão social como sendo “legitimamente” democrática. Ainda, da mesma forma, direitos humanos como pretensão universal, sustenta um falso universalismo, como diria Imanuel Wallernstein, um universalismo europeu, onde direitos que são frutos de processos de transformação histórica e cultural, em determinadas culturas que se tornaram culturalmente hegemônicas, são impostos como universais pela construção de um discurso falso de naturalização do que é histórico.

            Mas, além disto tudo, o mais, grave: as melhores intenções de levar esta democracia, estes direitos humanos, e esta liberdade, irá ocultar os reais interesses que movimentaram as máquinas de guerra e solidariedade internacionais.

            Por este motivo é importante trazer o debate realizado neste artigo. O que é ideologia e como a relação do real e nossa ideologia podem se transformar em uma realidade distorcida por um poder externo. Em outras palavras: o “real”, o que nos atinge mesmo que não queiramos, que independe de nós, é, ou pode ser, a base sobre a qual construímos nossa “realidade”, ou seja, a interpretação do real a partir de nossos sentidos e nossas pré-compreensões (nossa percepção sensorial e racional de tudo). Podemos chamar estas percepções sensoriais e racionais de sistema ideológico interno por meio do qual acessamos o real. A partir desta compreensão torna-se mais fácil compreender a força que um poder ideológico tem quando é capaz de intervir no processo de construção deste sistema interno de pré-compreensões (por meio da escola ou da igreja, por exemplo) ou quando intervém distorcendo o real, fazendo com que construamos nossa “realidade” não sobre o “real”, mas sobre um véu ou uma tela que encobre e/ou distorce este real.

           

Referências Bibliográficas:

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução de Joaquim Joséde Moura Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 1970.

CHESTERTON, Gilbert Keith. Orthodoxy. San Francisco. Ignatius Press : 1955.

Pêcheux, Michael. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução: Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas : Pontes, 1997. Edição Original: 1983.

ZIZEK, Slavoj. Um Mapa da Ideologia. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Contraponto, 1996.

ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao Deserto do Real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo : Boitempo Editorial, 2003.

ZIZEK, Slavoj. Contra os Direitos Humanos. Mediações – Revista de Ciências Sociais. Volume 15, Ano: 2010.

ZIZEK, Slavoj. Violência : seis reflexões laterais. São Paulo : Boitempo, 2014.

ZIZEK, Slavoj. Como Ler Lacan. Rio de Janeiro : Zahar, 2010.


[1] ZIZEK, Slavoj. Um Mapa da Ideologia. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Contraponto, 1996. Pg. 17.

[2] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução de Joaquim Joséde Moura Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 1970.

[3] Um Mapa da Ideologia. Pg. 17.

[4] Pêcheux, Michael. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução: Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas : Pontes, 1997. Edição Original: 1983. Pg. 53.

[5] Op. cit. Pg. 17.

[6] CHESTERTON, Gilbert Keith. Orthodoxy. San Francisco. Ignatius Press : 1955. p. 114.

[7] ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao Deserto do Real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo : Boitempo Editorial, 2003. p. 17.

[8] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa : Martins Fontes. p. 42.

[9] Op. Cit. Pg. 55.

[10] Op. Cit. Pg. 75.

[11] O termo “Grande Sérvia” teve o objetivo de unir todos os sérvios em um Estado e também da inclusão a esse Estado de áreas onde sérvios eram uma minoria. Foi o projeto de uma Iugoslávia onde os sérvios seriam dominantes política e etnicamente. A guerra terminou com grande parte da antiga Iugoslávia reduzida à pobreza, com grandes problemas econômicos em todo o território. As guerras foram os conflitos mais sangrentos em solo europeu desde o final da Segunda Guerra Mundial e tornaram-se famosas pelos crimes de guerra que envolveu genocídios e limpeza étnica em massa. Muitos participantes individuais foram posteriormente acusados de crimes contra a humanidade, dentre eles, o líder sérvio Slobodan Milosevich. O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPIJ) foi criado pela ONU para julgar tais crimes.

[12] ZIZEK, Slavoj. Contra os Direitos Humanos. Mediações – Revista de Ciências Sociais. Volume 15, Ano: 2010. Versão original publicada na New Left Review, n. 34, julho-agosto de 2005, sob o título “Against Human Rights”. Traduzido do inglês por Sávio Cavalcante. Revisão de Martha Ramírez-Gálvez e Silvana Mariano. Acesso: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/6541.

[13] ZIZEK, Slavoj. Violência : seis reflexões laterais. São Paulo : Boitempo, 2014.

[14] "Para Lacan, a linguagem é um presente tão perigoso para a humanidade quanto o cavalo foi para os troianos: essa se oferece para o nosso uso gratuitamente, mas, depois que a aceitamos, ela nos coloniza”. ZIZEK, Slavoj. Como Ler Lacan. Rio de Janeiro : Zahar, 2010.

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Sobre os autores
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Audrey Gonçalves de Castro Chalfun

Advogada mestre em Direito Internacional pela PUC Minas, doutoranda e pesquisadora.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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