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Digressões acerca do princípio constitucional da igualdade

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01/06/2003 às 00:00
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Sumário: Introdução; 1) Noção de Princípio; 2) O Princípio do Igualdade na Constituição Federal de 1988; 2.1) Igualdade Material; 2.2) Igualdade Formal; 3) Considerações Finais; Referências Bibliográficas

"Não é senão a vida verdadeira, não são senão os debates realmente abertos e não facticiamente supostos que podem, em Direito, formar homens práticos". (Franz Despaguet)


INTRODUÇÃO

Inúmeras vezes, deparamo-nos diante de questionamentos e debates sobre o Princípio Constitucional da Igualdade; discussões estas, em que as partes, dentre outras questões, indagam-se sobre o conceito e a aplicabilidade do referido princípio.

Conseqüentemente, diante dessas dúvidas resolvemos escrever estas poucas linhas, com a intenção de confrontar e resumir conclusões de alguns dos eminentes juristas e doutrinadores brasileiros em relação ao "controvertido" Princípio da Igualdade de todos perante a lei. Conclusões estas que assumem inestimável valor e profunda significação para aqueles que estudam a Ciência do Direito.

Nosso humilde objetivo, também foi o de ressaltar a importância que pode eventualmente assumir a investigação da igualdade material, com a intenção de propiciar a mais nítida caracterização da igualdade formal, a qual mais diretamente interessa ao jurista.

Ressalte-se o fato de que neste breve ensaio não temos a pretensão de esgotar o assunto, eis que de profundidade. Pretendemos apenas trazer pontos para reflexão, a fim de fomentar o debate sobre o referido princípio, bem como, propiciar esclarecimentos sobre alguns aspectos que por vezes são obscurecidos pelo dogmatismo extremo na interpretação do direito, o que não raramente, pode conduzir a um descompasso com a realidade, criando um abismo entre o texto frio da lei e a riqueza de situações que a vida nos proporciona.


1) NOÇÃO DE PRINCÍPIO:

De início, antes de sobrelevar a discussão, é imprescindível que se esclareça o significado da terminologia enfocada. Dois são os motivos por que se opta por esse entendimento preliminar. Um é em razão da polissemia [1] da expressão "princípio", o outro, possivelmente o mais importante, é em virtude da condição elevada que assumem os princípios jurídicos para o conhecimento e aplicação do direito.

Em sentido amplo, atinente à significação do termo princípio, é de se lembrar a lição de Ivo Dantas salientando que "os princípios são categoria lógica e, tanto quanto possível, universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo, quando incorporados a um sistema jurídico-constitucional-positivo, refletem a própria estrutura ideológica dos Estados, como tal, representativa dos valores consagrados por uma sociedade". Logo após continua o ilustre autor: "por outro lado, se tanto o princípio quanto a norma consagrados nos textos constitucionais refletem um posicionamento ideológico (opção política frente a diversos valores) – repitamos – existe entre eles uma hierarquização". [2]

De acordo com Plácido e Silva "os princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito. E, nesta acepção, não se compreendem somente os fundamentos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo axioma jurídico derivado da cultura, jurídica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Ciência Jurídica, onde se firmaram as normas originárias ou as leis científicas do Direito, que traçam as noções em que se estrutura o próprio Direito. Assim nem sempre os princípios se inscrevem nas leis. Mas, porque servem de base ao Direito, são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e proteção aos direitos". [3]

Para Miguel Reale "princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários". [4]

Corroborando ainda, podemos citar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello de que "princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento do princípio que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumédia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra". [5]

Cabe ressaltar, sem embargo das citações supramencionadas de que "as regras e princípios são duas espécies de normas e que a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas". [6] Assim, tem-se no ordenamento jurídico normas-princípio e normas-regra. [7] A existência de regras e princípios "permite a descodificação, em termos de um ‹‹constitucionalismo adequado›› (Alexy: gemässigte Konstitutionalismus), da estrutura sistêmica, isto é, possibilita a compreensão da constituição como sistema aberto de regras e princípios". [8]

Assim, distinguem-se os princípios das demais normas jurídicas (regras) em diversos aspectos. "Pelo conteúdo (os princípios incorporando primeira e diretamente os valores ditos fundamentais, enquanto as regras destes se ocupam mediatamente, num segundo momento), mas também pela apresentação ou forma enunciativa (vaga, ampla, aberta dos princípios, contra uma maior especificidade das regras), pela aplicação ou maneira de incidir (o princípio incidindo sempre, porém normalmente mediado por regras, sem excluir outros princípios concorrentes e sem desconsiderar outros princípios divergentes, que podem conjugar-se ou ser afastados apenas para o caso concreto; as regras incidindo direta e exclusivamente, constituindo aplicação integral – conquanto nunca exaustiva – e estrita dos princípios, e eliminando outras conflitantes) e pela funcionalidade ou utilidade (que é estruturamente e de fundamentação nos princípios, enquanto as regras descem à regulação específica). Traduzem ambos – princípios como regras – expressões distintas ou variedades de um mesmo gênero: normas jurídicas". [9]

Segundo a lição de Juarez Freitas, os princípios distinguem-se das regras "não propriamente por generalidades, mas por qualidade argumentativa superior, de modo que, havendo colisão, deve ser realizada uma interpretação em conformidade com os princípios (dada a ‘fundamentalidade’ dos mesmos), sem que as regras, por supostamente apresentarem fundamentos definitivos, devam preponderar". [10]

Ainda, segundo a referida distinção podemos dizer que as regras obrigam, proíbem ou permitem alguma coisa, enquanto que os princípios "são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas". [11]

Para Gustavo Zagrebelsky, sintetizando, a distinção essencial parece ser a seguinte:

"las reglas nos proporcionan el critério de nuestras acciones, nos dicen cómo debemos, no debemos, podemos actuar en determinadas situaciones específicas previstas por las reglas mismas; los principios, directamente, no nos dicen nada a este respecto, pero nos proporcionan criterios para tomar posición ante situaciones concretas pero que a priori aparecen indeterminadas. Los principios generan actitudes favorables o contrarias, de adhesión y apoyo o de disenso y repulsa hacia todo lo que puede estar implicado en su salvaguarda en cada caso concreto. Puesto que carecen de ‘supoesto de hecho’, a los principios, a diferencia de lo que se sucede com las reglas, sólo se les puede dar algún significado operativo haciéndoles –reaccionar- ante algún caso concreto. Su significado no puede determinarse en abstracto, sino sólo en los casos concretos, y sólo en los casos concretos se puede entender su alcance". [12]


2) O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988:

Prescreve o caput do art. 5º da nossa Constituição Federal de 1988: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, a segurança e a propriedade, (...)".

Veja-se, portanto que o princípio da igualdade tem sede explícita no texto constitucional, sendo também mencionada inclusive no Preâmbulo da Constituição. Destarte, é norma supraconstitucional; estamos diante de um princípio, direito e garantia, para o qual todas as demais normas devem obediência.

Tal preceito constitucional não é algo inédito, pois semelhantes preceitos fizeram-se presentes em todas as constituições [13] que orientam o ordenamento jurídico dos Estados Modernos. O insigne José Afonso da Silva, já dizia que "porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais", [14] portanto, o fim igualitário, a muito já era buscado.

Todavia, um desafio existe, qual seja: as efetivas desigualdades, de várias categorias, existentes e eventualmente estabelecidas por lei, entre os vários seres humanos, desafiam a inteligência dos juristas a determinar os conceitos [15] de "iguais" e "iguais perante a lei". Assim, cumpre como papel do jurista a interpretação [16] do conteúdo dessa norma, tendo em vista a sua finalidade e os princípios consagrados no Direito Constitucional, para que desta forma o princípio realmente tenha efetividade. Cabe aqui, ainda, a lembrança de que o significado válido dos princípios é variável no tempo e espaço, histórica e culturalmente. E como bem ensina David Schnaid, o hermenêuta deverá intrapretar e interpretar a norma, ou seja, primeiro ele deverá penetrar no íntimo da norma visando a sua exata compreensão, para dela extrair todas suas virtualidades e depois (interpretar) revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta. [17] Vale aqui também, a lembrança da lição magistral de Carlos Maximiliano quando se referindo a interpretação da norma nos adverte de que "deve ser o Direito interpretado inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreve inconveniências, vá a ter conclusões inconsistentes ou impossíveis". E prossegue o ilustre autor afirmando de que "desde que a interpretação pelos processos tradicionais conduz a injustiça flagrante, incoerências do legislador, contradição consigo mesmo, impossibilidades ou absurdos, deve-se presumir que foram usadas expressões impróprias, inadequadas, e buscar um sentido eqüitativo, lógico e acorde com o sentir real e o bem presente e futuro da comunidade". [18]

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No Direito, [19] tal princípio assumiria um caráter de dupla aplicação, qual seja: uma teórica, com a finalidade de repulsar privilégios injustificados; e outra prática, ajudando na diminuição dos efeitos decorrentes das desigualdades evidenciadas diante do caso concreto. Assim, tal princípio constitucional se constitui na ponte entre o Direito e a realidade que lhe é subjacente. [20]

A igualdade de todos os seres humanos, proclamada na Constituição Federal, deve ser encarada e compreendida, basicamente sob dois pontos de vista distintos, quais sejam: o da igualdade material e o da igualdade formal.

2.1 - IGUALDADE MATERIAL

O entendimento da igualdade material, deve ser o de tratamento eqüânime e uniformizado de todos os seres humanos, bem como a sua equiparação no que diz respeito à possibilidades de concessão de oportunidades. Portanto, de acordo com o que se entende por igualdade material, as oportunidades, as chances devem ser oferecidas de forma igualitária para todos os cidadãos, na busca pela apropriação dos bens da cultura.

A igualdade material teria por finalidade a busca pela equiparação dos cidadãos sob todos os aspectos, inclusive o jurídico, podendo-se afirmar: "Todos os homens, no que diz respeito ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição a deveres". [21]

Mesmo sendo humanitária, idealista e desejável essa igualdade, parece-me que nunca se concretizou em uma sociedade humana. Além do mais, o nosso País prima pela extremação de desigualdade material, basta atermo-nos para a realidade a nossa volta.

Na nossa Constituição Federal de 1988, podemos encontrar vários textos que estabelecem normas programáticas que visam nivelar e diminuir as desigualdades reinantes. Exemplos de tais normas: art. 3º; [22] art. 170 e incisos que tratam da ordem econômica e social; art. 7º que tratam da questão salarial...; art. 205 que trata da democratização do ensino.

A instauração da igualdade material é um princípio programático, contido em nosso Direito Constitucional, o qual, como vimos, se manifesta através de numerosas normas constitucionais positivas, que em princípio, são dotadas de todas as suas características formais.

Observamos, então, que a Constituição Federal vigente, em vários enunciados, preconiza o nivelamento das desigualdades materiais, entretanto, a observação das desigualdades sócio-econômicas no mundo fático, nos mostram que o princípio constitucional e as normas que procuram diminuir as desigualdades materiais, são impunemente desrespeitadas. Portanto, os preceitos que visam estabelecer a igualdade material, primam pela inefetividade ou ineficácia; e como exemplo podemos citar as leis que nos últimos anos têm estipulado os salários mínimos, que desrespeitam o preceituado no art.7º, IV da CF/88.

2.2- IGUALDADE FORMAL

O art. 5º da CF/88 prescreve "igualdade de todos perante a lei". [23] Esta é a igualdade formal, que mais imediatamente interessa ao jurista. Essa igualdade seria a pura identidade de direitos e deveres concedidos aos membros da coletividade através dos textos legais. [24] De acordo com Hatscheck, citado por Pinto Ferreira, "o preceito da igualdade da lei não se esgota com a aplicação uniforme da norma jurídica, mas que afeta diretamente o legislador, proibindo-lhe a concessão de privilégio de classe". [25]

De acordo com o professor Ingo Wolfgang Sarlet o princípio da igualdade "encontra-se diretamente ancorado na dignidade da pessoa humana, não sendo por outro motivo que a Declaração Universal da ONU consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições por motivo de religião, sexo, enfim, toa e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material". [26]

A conceituação de tal princípio tem conteúdo historicamente variável. A doutrina tradicional, sintetizando, preconizou que o conteúdo de tal preceito seria o de dar tratamento diverso para pessoas desiguais; entretanto, não precisou ou esclareceu em que circunstâncias e em que medida seria constitucionalmente admissível que a lei desigualasse. Para o ilustre autor espanhol Fernando Rey Martinez, "a idéia de igualdade serve para determinar, razoavelmente e não arbitrariamente, que grau de desigualdade jurídica de trato entre dois ou mais sujeitos é tolerável. A igualdade é um critério que mede o grau de desigualdade juridicamente admissível". [27]

Acreditamos que a doutrina tradicional tem um posicionamento que é praticamente igual a máxima de Aristóteles, para o qual o princípio da igualdade consistiria em "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam". [28]

Essa posição certamente deveria de ter como princípio norteador da sua hermenêutica a instauração de uma igualdade material, pois caso contrário não teria conteúdo sustentável.

Vale aqui trazermos a colação a frase de João Mangabeira, segundo o qual "a igualdade perante a lei não basta para resolver as contradições criadas pela produção capitalista. O essencial é igual oportunidade para a consecução dos objetivos da pessoa humana. E para igual oportunidade é preciso igual condição. Igual oportunidade e igual condição entre homens desiguais pela capacidade pessoal de ação e direção. Porque a igualdade social não importa nem pressupõe um nivelamento entre homens naturalmente desiguais. O que Lea estabelece é a supressão das desigualdades artificiais criadas pelos privilégios da riqueza, numa sociedade em que o trabalho é social, e conseqüentemente social a produção, mas o lucro é individual e pertence exclusivamente a alguns". [29]

Então, uma forma correta de se aplicar a igualdade seria tomar por ponto de partida a desigualdade. Depois, diante da desigualdade entre os destinatários da norma impor-se-ía promover uma certa igualização.

O ilustre Kelsen já lecionava de que "a igualdade dos indivíduos sujeitos a ordem pública, garantida pela Constituição, não significa que aqueles devem ser tratados por forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição, especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de espírito e doentes mentais, homens e mulheres". [30]

Contudo, Kelsen não deixou explicitado a possibilidade de que o princípio da igualdade se aplicasse essencialmente no momento da elaboração da lei, [31] apresentando-se como algo lógico e coerente. Entretanto, a sua colocação nos permite ver que é absurdo supor que seja inconstitucionalmente vedado a lei discriminar. Pois "as leis nada mais fazem senão discriminar". [32]

Ressalte-se que, "há determinadas exceções ao princípio da igualdade formuladas na Constituição Federal, quais sejam: a) imunidades parlamentares; b) prerrogativas de foro ratione muneris em benefício de determinados agentes políticos; c) exclusividade do exercício de determinados cargos públicos somente a brasileiros natos; d) acessibilidade de cargos públicos somente a brasileiros, excluídos os estrangeiros; e) vedação da alistabilidade eleitoral a determinadas pessoas..". [33]

O próprio STF preconiza exceções ao princípio da igualdade afirmando de que "a igualdade perante a lei que a Constituição Federal assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, não compreende a União e as demais pessoas de direito público, em cujo favor pode a lei conceder privilégios impostos pelo interesse público sem lesão a garantia constitucional". [34]

Destarte, a doutrina vem reconhecendo que o princípio da isonomia traz a autorização, mesmo que implícita, para que o Estado erija tratamento desigual desde que o faça justificadamente.

Então a grande questão a se fazer é: em que casos é vedado a lei estabelecer discriminações e em que casos o discrímen é perfeitamente possível?: Respondendo-se essa indagação o problema do conteúdo real da isonomia, insoluto anos a reio, terá recebido substanciosa achega para nortear-lhe o deslinde. [35]

O doutrinador que, a nosso ver, melhor trabalha essa questão, cujo pensamento é merecedor de aplausos, é o eminente Celso A. Bandeira de Mello, na sua obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, na qual ele nos proporciona numerosos exemplos ao leitor, que lhe permitem perceber em que casos é possível a discriminação e, ao contrário quando é vedado discriminar.

Na lição deste ilustre autor "o reconhecimento das diferenças que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões:

a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação (fator de discrímen);

b) a segunda reporta-se a correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;

c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados". [36]

Ressalte-se que a norma deve observar cumulativamente esses três aspectos para ser inobjetável em face do princípio da igualdade, eis que mesmo que o legislador ao disciplinar as relações por meio de critérios discricionários o deve fazer sem contrariar valores constitucionais.

Sintetizando as principais idéias do autor, podemos dizer que para que a norma jurídica não venha ferir o Princípio Constitucional da Igualdade é preciso que ela fique atenta aos seguintes elementos:

a) que o fator de discrímen, em hipótese alguma, venha atingir de maneira absoluta e atual um só indivíduo;

b) deverão ser distintas entre si as pessoas os situações que sofrerem a discriminação, não podendo a lei discriminar quanto a qualquer elemento exterior a elas (ex; quanto ao tempo);

c) deverá existir um nexo lógico entre o fator de discrímen [37] e a própria discriminação de regime jurídico em função deles estabelecido;

d) que esse vínculo de correlação seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, visando o bem público, à luz do texto constitucional.

A redação atual do art. 5º da CF/88, "ao não especificar quais os critérios vedados, deixa certo que o caráter inconstitucional da discriminação não repousa tão somente no critério escolhido, mas na falta de correlação lógica entre aquele critério e uma finalidade ou valor encampado quer expressa ou implicitamente no ordenamento jurídico, quer ainda na consciência coletiva". [38]

Para J. J. Gomes Canotilho haverá observância da igualdade "quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária". E segue o ilustre autor, esclarecendo que "existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (I) fundamento sério; (II) não tiver um sentido legítimo; (III) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável". [39]

Compartilhamos do mesmo pensamento do ilustre Celso A. Bandeira de Mello, quando ele afirma que "o princípio da isonomia, que se reveste de autoaplicabilidade, não é - enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica - suscetível de regulamentação ou de complementação normativa.

(...) Esse princípio - cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público - deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob duplo aspecto: o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei - que opera numa fase de generalidade puramente abstrata - constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório.

Assim, podemos concluir que a caracterização da violação ao princípio da igualdade deve de ser criteriosamente analisado à luz do caso concreto apresentado. Sendo que os critérios apriorísticos listados apenas limitam-se a tracejar os indícios de uma potencial agressão, a qual se evidenciará ou não após uma efetiva avaliação do trato legal escolhidos e suas conseqüências perante o ordenamento constitucional, sendo portanto de relevante importância a atividade a ser desempenhada pelo intérprete e aplicador da lei questionada. [40]

A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade. Essa lei, contudo - de resto qualquer outra dentro do nosso ordenamento jurídico - é presumida constitucional, até que, por decisão de órgão judiciário competente, se lhe recuse validade, quer no plano formal, quer sob o aspecto material". [41]

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Sobre o autor
Marcelo Amaral da Silva

Professor Universitário, Advogado e Consultor jurídico, Especialista em Direito Público e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcelo Amaral. Digressões acerca do princípio constitucional da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4143. Acesso em: 19 nov. 2024.

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