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Morreu atrapalhando o trânsito

07/08/2015 às 12:23
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O artigo traz à discussão fato concreto envolvendo possível crime de vilipêndio. Qual a extensão dos danos no desumano caso de Adílio Cabral dos Santos?

A mídia mostrou mais uma cena que choca.  

Ao ver um corpo estendido na linha férrea, o maquinista pisa no freio. Do lado de fora, o controlador do tráfego determina que ele siga viagem. O trem volta a se mover e passa lentamente sobre o cadáver.

Esse fato aconteceu no bairro de Madureira, no subúrbio do Rio de Janeiro.

A vítima era Adílio Cabral dos Santos, de 33 anos, cujo prenome lembra Adílio, que brilhou no Flamengo na grande equipe comandada por Zico há perto de 35 anos atrás.

Era um ambulante que, como muitos, atravessava a linha do trem, várias vezes por dia, para evitar a apreensão de balas, biscoitos e garrafas de água, mercadoria que lhe dava o ganha pão.

Para a concessionária, parece que o que vale mais é tráfego e depois a vida humana.

Em nota sobre o fato disse que a “paralisação da linha criaria transtornos para toda a movimentação do horário”. Afinal, estava em horário de pico e o sistema de transporte não pode parar.

O homem morreu no horário de pico e estava na contramão, atrapalhando o trânsito.  

“Por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus te pague”.

O caso deve ser investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em todas as suas circunstâncias.

Mas parece que a sociedade se emociona mais com a morte de um leão em uma caçada do que com a morte de um homem em via do trem, atrapalhando o trânsito.

O carioca Adílio Cabral tinha 33 anos e não tinha nenhum pedigree social. Terminara de cumprir pena de prisão por tráfico de drogas seis meses antes, e vendia doces como ambulante. Na terça-feira, dia 28 de julho,  ele levara a mãe ao médico e teria pulado o muro da estação de Madureira, quando foi colhido por um trem expresso que seguiu viagem.

O corpo de Adílio, que repito não era o craque do Flamengo, ficara sobre os trilhos, mas a circulação dos trens não foi interrompida e a rotina da estação seguiu seu curso até a aproximação de outro trem. Necessário saber se  ele estava  vivo, agonizando, quando foi novamente colhido.

 O cidadão prefere passar o trem por cima de um ambulante morto ou aceita chegar em casa mais tarde? Esses que dariam uma resposta positiva à primeira opção diriam que é o corre-corre da vida e o tempo é dinheiro. É a triste realidade em que se vê uma concessionária que tem um contrato de concessão até 2048 e está ali para atender humanos.

Vilipendiar cadáver é crime previsto no artigo 212 do Código Penal.

Vilipendiar é tratar com desprezo grosseiro, aviltar, ultrajar etc. Tal conduta pode vir por palavras, por atos ou escritos. É o gesticular ofensivo, o arremesso de imundícies, a prática de obscenidades.

Além de cadáver, protege-se as cinzas, resíduos de combustão ou cremação do corpo (autorizada ou criminosa). São incluídos na proteção as partes do corpo, o esqueleto, caveiras etc.

O tipo subjetivo é o dolo, que consiste no desejo consciente de desprezar o corpo com a intenção de depreciá-lo (RT 532/368). Para Magalhães Noronha (Direito Penal, 3º volume, 1977, pág. 96), não existirá o delito sem o dolo genérico. Disse ele: “não colhe dizer que o crime é contra o respeito aos mortos, pois, se de fato o bem jurídico é esse, não menos certo é que ele é ofendido pela ação contra o morto. É  mister, portanto, que o agente tenha o fim ou escopo de aviltar o cadáver. Observe-se, de passagem, que o crime tem pontos de contato com o delito contra a honra – “é possível a calúnia contra os mortos”, nos quais se exige o dolo específico (animus diffamandi vel injuriandi), pois a palavra ofensiva nem sempre é proferida com essa intenção, máxime nas classes inferiores.

Consuma-se o crime com a prática do ato ultrajante, sendo possível a tentativa. O crime tanto pode ser formal como material; no primeiro caso, a ofensa oral; no segundo, o vilipêndio por ato. Como crime formal, não se admite a tentativa, tratando-se de crime unissubsistente. Na segunda forma, pode haver o fracionamento do iter, não chegando o agente ao resultado querido, como ensinou Magalhães Noronha (obra citada, pág. 96), sendo possível a tentativa.

O fato foi objeto de filmagem e há provas a serem analisadas.

Num mundo cruel como esse, onde se vive num país de corrupção endêmica, e políticos e outros membros da República trabalham para a manutenção do seu status quo, parece que a dignidade da pessoa humana não vale nada, principalmente quando envolve uma pessoa de pouca ou nenhuma posse.

Minha solidariedade aos parentes e amigos do Adílio.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Morreu atrapalhando o trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4419, 7 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41460. Acesso em: 24 abr. 2024.

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