O tema do presente é a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos e a sua consequente utilização como paradigma ao controle da produção normativa doméstica. Tal controle é realizado mediante a aplicação da teoria da dupla compatibilidade vertical material, ao qual recebe o nome de “Controle de Convencionalidade”, que é também o título do presente trabalho.
Nosso objetivo foi demonstrar como se verificará a adequação da legislação interna aos instrumentos internacionais, em especial os de direitos humanos, após a vigência da Emenda Constitucional 45 de 2004, tendo como problemática o status pelo qual estes documentos são internalizados no ordenamento brasileiro. A doutrina se divide em quatro status: legalidade, supralegalidade, constitucionalidade e supraconstitucionalidade. E verificaremos ao decorrer do trabalho.
Deste modo, a partir de então, pela égide do novo Estado Constitucional Humanista de Direito, não basta que a norma jurídica seja compatível com o texto constitucional somente, porém, deverão ser também analisadas sua harmonia com o texto convencional para que possa ser garantida a sua validade no plano interno. Sob este entendimento, se uma lei, mesmo que compatível com a Constituição, contrarie um tratado internacional, devidamente ratificado e em vigor internamente, poderá até ser considerada vigente, porém não será considerada norma jurídica válida, por encontrar-se em desacordo com um dos limites verticais materiais agora existentes.
O novo Estado Constitucional Humanista de Direito, estabelecendo a nova ordem mundial, principalmente pós-Guerra, possui, atualmente, plúrias fontes normativas (lei, códigos, Constituição, jurisprudência interna, tratados internacionais, jurisprudência internacional, no nosso caso a interamericana, as normas universais e as jurisprudências das cortes universais) e seis tipos de controle da produção normativa doméstica: legalidade[i], supralegalidade[ii], constitucionalidade[iii] (difuso e concentrado) e convencionalidade[iv] (concentrado e difuso).
A expressão “controle de convencionalidade” surgiu na França, em meados da década de 70, onde o Conselho Constitucional Francês, na decisão 74-54 DC/1975, julgou-se incompetente para ponderar sobre a convencionalidade preventiva das leis, que no caso era relativa à adequação das leis francesas à Convenção Europeia de Direitos Humanos.
No Brasil, o tema foi inserido na Carta Constitucional de 1988, em sua modalidade difusa, e a partir da Emenda Constitucional 45 de 2004, como controle concentrado, embora nenhum doutrinador pátrio tenha demonstrado interesse em discorrer sobre o tema ou utilizar esta nomenclatura.
Diante disso, faremos uma divisão acadêmica para entender a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos: (1) incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos antes da CF/88; (2) incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos depois da CF/88 e antes da EC 45/2004; (3) incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos depois da EC 45/2004.
A Constituição de 1967, e sua Emenda 1969, não possuíam a cláusula de abertura como apresentada no art. 5º, § 2º da Carta de 1988. A aceitação de outros direitos e garantias era limitada ao regime e aos princípios adotados pelo sistema constitucional. A recepção destes dispositivos, pelo novo texto constitucional de 1988 garante a índole constitucional destes instrumentos internacionais. Neste período o STF[v] adotava o critério de paridade normativa entre a legislação interna e os tratados internacionais, posicionamento que foi seguido também pelo STJ[vi].
Com a promulgação do texto constitucional de 1988, o único dispositivo que estabelecia o recepcionamento dos tratados internacionais sobre Direitos Humanos no ordenamento jurídico nacional, era o art. 5º, § 2º, que confere status e nível de norma constitucionais (em razão da incorporação no bloco de constitucionalidade), por ser matéria constitucional. Anteriormente à entrada em vigência da EC 45, não era exigida nenhuma formalidade para a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos, sendo que, o embasamento era interpretado à luz da conjugação do art. 5º, § 2º c/c art. 4º, II, da CF/88.
Depois da EC 45/2004 há que se falar em três ritos distintos para a incorporação dos tratados internacionais ao direito brasileiro: (1) tratados internacionais comuns; (2) tratados internacionais de direitos humanos com quórum de maioria qualificada; (3) tratados internacionais de direitos humanos com quórum de maioria simples.
Assim, garante-se aos tratados comuns a supralegalidade em razão dos art. 27, da Convenção de Viena e do art. 98, do Código Tributário. Aos tratados de direitos humanos que foram recepcionados pelo art. 5º, § 3º, serão garantidos, além da matéria constitucional (garantida pelo § 2º), a forma de normas constitucionais. Os tratados de direitos humanos que não forem ratificados pela maioria qualificada, apenas possuirão matéria constitucional, e não perderão a qualidade de normas constitucionais por não serem aprovados com rito de emenda.
Durante muito tempo se discute na doutrina e na jurisprudência brasileira qual o status hierárquico dos tratados internacionais quando de sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro, e não se pacificou ainda este entendimento.
A primeira onda, liderada por Celso Albuquerque de Mello, entende que os tratados de direitos humanos prevalecem (ou deveriam prevalecer) inclusive quando confrontadas com o texto constitucional. Sob este entendimento, nem mesmo as emendas ao texto constitucional poderia contrariar os dispositivos consagrados no texto convencional.
A segunda teoria, que reputamos a mais acertada diante das análises dos diplomas convencionais e constitucionais[vii], é representada pelos professores Valério Mazzuoli, Cançado Trindade, Luiz Flávio Gomes, Flávia Piovesan, dentre outros. Este também foi o entendimento do Ministro Celso de Mello, ao julgar o RE 466.343/SP, ao preconizar a garantia do status constitucional em decorrência do art. 5º, § 2º, quanto à matéria, e quanto à forma pelo § 3º.
Seguindo, encontramos a terceira corrente, que considera haver paridade normativa entre os tratados internacionais e a legislação interna, ou seja, estariam ambos diplomas no mesmo status hierárquico. Este foi o posicionamento que perdurou no STF por muito tempo, desde o julgamento do RE 80.004/SE, sendo que o maior problema desta interpretação funda-se na possibilidade de que, em havendo conflito entre as normas, deveria ser aplicado o critério cronológico para a solução de antinomia (lex posteriori revogat lege priori), aceitando a revogação de tratado por lei posterior.
A quarta ala defende a supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos e encontrou guarida no posicionamento do Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do mesmo RE 466.343/SP, que revogou a antiga tese de equiparação dos tratados às leis ordinárias, tornando inaplicável a legislação infraconstitucional que conflita com os tratados internacionais, seja anterior ou posterior ao ato de adesão.
Assim, adentramos agora, propriamente dito, à discussão do controle de convencionalidade.
O controle difuso de convencionalidade, assim como o controle de constitucionalidade, é realizado por qualquer juiz ou tribunal pátrio (além das cortes internacionais), e não necessita de nenhuma autorização para a sua realização. Assim, passa-se a considerar a possibilidade de que a norma, mesmo sendo vigente, seja declarada inválida diante da sua incompatibilidade com tratado ou convenção internacional, e passam a ter eficácia paralisante, para além da derrogatória, das normas internas.
O controle concentrado de convencionalidade, cuja competência é reservada exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, em face do disposto no art. 102 do texto constitucional que atribui o dever de “guardar a Constituição”, e portanto, também deve realizar a proteção das normas que à elas sejam equiparadas. Cabe, então, aos legitimados do art. 103, a propositura dos instrumentos necessários para garantir a plenitude dos tratados.
Assim sendo, se tais normas possuem status de norma constitucional (como entendemos), constituem paradigmas para a efetivação do controle de convencionalidade. Para isso, é importante que se diga, que apenas as normas que forem formalmente constitucionais, ou seja, as que forem aprovadas pelo Congresso no rito estabelecido pelo § 3° do art. 5°, serão paradigmas do controle concentrado, mediante provocação do Supremo Tribunal Federal.
Os demais tratados, aprovados de forma diversa da que estabelece o citado mandamento constitucional, por possuírem apenas caráter materialmente constitucional, somente serão objetos de confronto do controle difuso de convencionalidade, o qual poderá ser realizado por qualquer juiz ou tribunal, sem qualquer autorização ou determinação prévia de órgão internacional.
Ainda sobre o controle concentrado é importante destacar que, como a Constituição atribuiu ao STF a competência precípua para realizar a “guarda do texto constitucional”, e tendo em vista que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados na forma do § 3° do art. 5° da Carta Constitucional incorporam ao direito interno como normas formalmente constitucionais, caberá, por equiparação das normas constitucionais, a utilização do mesmo sistema protetivo disponível para os legitimados do art. 103, para a realização do controle de constitucionalidade dos atos normativos e leis infraconstitucionais.
Por este entendimento será possível a interposição de ADIn (Ação Direta de Inconvencionalidade) para declarar inconvencional qualquer ato normativo ou lei infraconstitucional, que violar, expressa ou implicitamente, disposição convencional; ADECON (Ação Declaratória de Convencionalidade), onde se busca declarar a adequação dos atos normativos federais e das normas infraconstitucionais, ao disposto nos diplomas convencionais; e até mesmo ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), objetivando que se cumpra algum “preceito fundamental” localizado nos tratados internacionais que foram alçados à condição de norma formalmente constitucional.
É importante destacar que apenas serão paradigmas ao controle concentrado de convencionalidade os tratados internacionais de direitos humanos formalmente constitucionais. Os demais, por serem considerados somente materiais, serão utilizados para o controle difuso de convencionalidade.
A mudança do modo como os direitos humanos são tratados no Estado brasileiro ainda transcorre de forma lenta e gradual. As idiossincrasias na fórmula como se tem concebido o processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica interna são, em certa medida, responsáveis pelo arrastar de entendimentos envelhecidos.
Referências Bibliográficas:
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Notas:
{C}[i] Seria o caso do controle realizado tendo como paradigma as leis ordinárias (ou complementares), que estão abaixo dos tratados internacionais comuns na hierarquia das normas do Direito brasileiro, v.g., o relativo à compatibilização de um decreto em face de uma lei ordinária.
{C}[ii] Seria o exercício do controle que tem com paradigma os tratados internacionais comuns, que guardam nível supralegal no Brasil.
{C}[iii] Corresponde à adequação da legislação infraconstitucional aos dispositivos constitucionais, inclusive suas emendas.
{C}[iv] A expressão fica reservada à compatibilidade das normas de Direito interno com os tratados internacionais de direitos humanos, por terem eles índole e nível constitucionais.
{C}[v] Ver. RE 80.004/SE
{C}[vi] Ver. REsp 74.376/RJ e REsp 58.736/MG
{C}[vii]{C} Não obstante este posicionamento não seja (ainda) o prevalecente entre os ministros da Suprema Corte, tem-se que a sua aceitação por boa parte da doutrina pátria, proporciona a correta classificação das normas internacionais, pois, conforme o entendimento, ocupam posição de paridade com as normas constitucionais, ao lado das emendas constitucionais, e ao topo da nova pirâmide normativa.