1. INTRODUÇÃO
O Imposto sobre Produtos Industrializados, previsto no artigo 153, IV, da Constituição Federal de 19881, constitui um tributo cuja instituição está sob a competência privativa da União, cabendo à lei complementar estabelecer os requisitos específicos que delineiam a hipótese de incidência dessa exação fiscal.
Como é notório, o Código Tributário Nacional, diploma legislativo formalmente elaborado como lei ordinária, mas recepcionado pela Constituição Federal como lei materialmente complementar, constitui a norma responsável pela formulação abstrata dos critérios de incidência tributária do referido imposto.
Para os fins a que se propõe o presente estudo, focaremos na análise dos critérios material e pessoal da norma tributária, veiculados nos artigos 47 e 51 do CTN, com o objetivo de verificar a incidência (ou não) dessa exigência fiscal sobre a revenda de mercadorias importadas que não tenham sido submetidas a um processo de industrialização pela empresa importadora.
Conforme se verá adiante, a discussão gira em torno da análise do real fato gerador do IPI e da equiparação dos estabelecimentos importadores a estabelecimentos industriais, matéria que foi alvo de intenso debate no Superior Tribunal de Justiça durante o julgamento do Recurso Especial (EResp) nº 1.411.749/PR.
2. A EXIGÊNCIA DO IPI SOBRE A REVENDA DE MERCADORIAS IMPORTADAS E A OCORRÊNCIA DE BITRIBUTAÇÃO
Destarte, é importante assentar que a tese ora discutida se refere exclusivamente aos casos em que as empresas importadoras revendem mercadorias estrangeiras no mercado interno, sem qualquer modificação em sua natureza ou finalidade – ou seja, sem que ocorra um procedimento de industrialização2.
Antes de prosseguir com a exposição da tese, é pertinente transcrever a ementa do EREsp 1.411.749/PR, responsável pela uniformização da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em favor do contribuinte, cujo acórdão foi publicado em 18 de dezembro de 2014:
“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS. SAÍDA DO ESTABELECIMENTO IMPORTADOR. A norma do parágrafo único constitui a essência do fato gerador do imposto sobre produtos industrializados. A teor dela, o tributo não incide sobre o acréscimo embutido em cada um dos estágios da circulação de produtos industrializados. Recai apenas sobre o montante que, na operação tributada, tenha resultado da industrialização, assim considerada qualquer operação que importe na alteração da natureza, funcionamento, utilização, acabamento ou apresentação do produto, ressalvadas as exceções legais. de outro modo, coincidiriam os fatos geradores do imposto sobre produtos industrializados e do imposto sobre circulação de mercadorias. Consequentemente, os incisos I e II do caput são excludentes, salvo se, entre o desembaraço aduaneiro e a saída do estabelecimento do importador, o produto tiver sido objeto de uma das formas de industrialização. Embargos de divergência conhecidos e providos."3
Ao analisar o voto-vista do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho no julgamento do processo supracitado, percebe-se que essa discussão é permeada por algumas nuances específicas.
A primeira delas refere-se à mudança súbita de entendimento pela Primeira Seção do STJ, sem que houvesse alteração normativa ou jurisprudencial vinculante. Até então, o posicionamento era pacífico e favorável ao importador-comerciante, fundamentado no princípio da vedação à bitributação.
Na realidade, essa mudança ocorreu devido a um descuido argumentativo presente nas decisões anteriores à uniformização da jurisprudência no EREsp 1.411.749/PR.
Como se sabe, o fenômeno da bitributação consiste na cobrança de um tributo por dois ou mais entes fiscais distintos sobre o mesmo fato jurídico tributável – o que não se confunde com o bis in idem, que se refere à tributação, por mais de uma vez, do mesmo fato gerador pela mesma pessoa jurídica de direito público interno.4.
O equívoco decorre do fato de que as primeiras decisões do Superior Tribunal de Justiça (anteriores ao julgado uniformizador do tema) mencionavam a ocorrência de bitributação, sob o argumento de que o IPI era cobrado em dois momentos: no desembaraço aduaneiro e na revenda da mercadoria.
Ocorre que, de fato, isso não configura bitributação, uma vez que, em ambos os momentos, o tributo era exigido pelo mesmo ente fiscal (União).
Por essa razão, consolidou-se uma argumentação divergente, favorável ao Fisco, no sentido de que não havia bitributação, pois as exigências, nas duas hipóteses, eram efetivadas pela União – caracterizando, inclusive, dois fatos geradores distintos.
Notadamente, o posicionamento inicial do STJ, que reconhecia a existência de bitributação, estava correto em sua conclusão, mas equivocado quanto às suas premissas.
O erro cometido, que permitiu o surgimento de uma corrente divergente (atualmente superada), consistiu na interpretação equivocada de que a bitributação ocorreria entre os momentos de incidência do IPI, quando, na realidade, ela se manifestava no momento da revenda da mercadoria.
Com efeito, quando a União cobra o IPI sobre a revenda de mercadorias importadas que não tenham sofrido qualquer tipo de industrialização entre o desembaraço aduaneiro e a revenda, acaba por tributar o mesmo fato gerador do ICMS estadual, que é a circulação de mercadorias.
Ora, a circulação jurídico-econômica de mercadorias configura a hipótese de incidência do ICMS, cuja competência para tributação é exclusiva dos Estados, nos termos do artigo 155, inciso II, da Constituição Federal5.
Neste norte, o relator para o acórdão, Ministro Ari Pargendler, com arguta percepção, explicitou que:
A norma do parágrafo único constitui a essência do fato gerador do imposto sobre produtos industrializados. A teor dela, o tributo não incide sobre o acréscimo embutido em cada um dos estágios da circulação de produtos industrializados. Recai apenas sobre o montante que, na operação tributada, tenha resultado da industrialização, assim considerada qualquer operação que importe na alteração da natureza, funcionamento, utilização, acabamento ou apresentação do produto, ressalvadas as exceções legais. De outro modo, coincidiriam os fatos geradores do imposto sobre produtos industrializados e do imposto sobre circulação de mercadorias. consequentemente, os incisos I e II do caput são excludentes, salvo se, entre o desembaraço aduaneiro e a saída do estabelecimento do importador, o produto tiver sido objeto de uma das formas de industrialização.
Indo além, quando a empresa comercial-importadora revende itens estrangeiros sem submetê-los a qualquer tipo de processo de industrialização, não se trata de um “produto” (resultado de um processo produtivo), mas sim de uma mercadoria (objeto sujeito aos atos de mercancia) 6.
A revenda interna das unidades importadas configura, portanto, um ato de mercancia, cuja realização fomenta a operação de circulação jurídico-econômica da mercadoria, fato gerador do ICMS, imposto de competência dos entes estaduais.
Observe-se que a questão central não é a suposta bitributação IPI (desembaraço aduaneiro) x IPI (revenda de mercadoria), mas sim a bitributação IPI (revenda de mercadoria) x ICMS (revenda de mercadoria).
O Ministro Og Fernandes, em consonância com essa interpretação, asseverou em seu voto que, de fato, o aspecto material do IPI remete ao processo de industrialização, sendo o “produto industrializado” apenas o objeto do tributo. Por essa razão, a distinção entre o aspecto material da hipótese de incidência e o “objeto da tributação” possui importância fundamental para o debate.
O aspecto material remonta ao núcleo do tipo fiscal, descrevendo a conduta tida como fato gerador da exação, enquanto o “objeto da tributação” é a manifestação da realidade econômica atingida pela tributação7.
Por consequência, para que haja a incidência do IPI no momento da revenda do produto importado, é necessário que tenha havido um procedimento de industrialização no intervalo entre a importação e a revenda do produto.
Ao discorrer sobre esse quesito, o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho explanou que a interpretação dos três fatos geradores do IPI (elencados no artigo 46 do CTN8) não pode ser literal, assentando que:
A interpretação mais consentânea com o ordenamento jurídico tributário é a de que, no caso de produto importado, o fato gerador do imposto (IPI) é o desembaraço aduaneiro. A hipótese definida no inciso II do art. 46. do CTN (saída do estabelecimento) só pode ser compreendida como referente a produtos industrializados nacionais ou, ainda, produtos alienígenas que sofreram algum processo de industrialização antes da comercialização, ou, finalmente, para o caso de comercialização de produtos fornecidos ao industrial.
Caso não fosse esse o entendimento, estar-se-ia equiparando a hipótese de incidência do IPI à do ICMS, tributando tão somente a operação de circulação jurídico-econômica de mercadorias.
Cumpre atentar, por outro lado, que o reconhecimento da tributação apenas pelo fato de o produto ser industrializado ocasionaria a inaceitável hipótese, do ponto de vista jurídico, de se tributar alguém pelo simples ato de proceder à circulação da mercadoria. Tal situação, no mínimo, configura bitributação em relação ao ICMS, tributo cujo aspecto material corresponde à circulação de mercadorias, independentemente de serem industrializadas ou não.
Além disso, a simples constatação de que a legislação de regência incluiu o importador como sujeito passivo da relação jurídico-tributária cujo objeto corresponde ao IPI não justifica a admissão da dupla incidência.
Dessa maneira, no momento em que a União intenta cobrar o IPI sobre a revenda de mercadorias importadas, nos casos em que não há qualquer processo de industrialização entre o desembaraço aduaneiro e a revenda, invade-se o âmbito de competência tributária estadual, equiparando a hipótese de incidência do IPI à do ICMS, o que configura bitributação, vedada pela Constituição Federal.
A segunda ponderação a ser feita refere-se ao risco de consolidação de um entendimento adverso, que claramente viola o Princípio da Proibição ao Retrocesso, inerente às relações tributárias9.
Definida uma orientação mais favorável ao contribuinte, não se mostra aceitável, do ponto de vista jurídico-tributário e sistêmico, que, por mera mudança interpretativa desvinculada de qualquer inovação normativa, ocorra a inversão do entendimento em seu prejuízo10.
É importante notar que esse princípio não se restringe apenas ao âmbito das relações trabalhistas ou securitárias, pois tal limitação seria incompatível com a amplitude do instituto, cujo conteúdo deve ser estendido à proteção das garantias individuais e, portanto, aplicável a quaisquer relações jurídicas que limitem direitos intersubjetivos.
A fortiori, a proibição de retrocesso deve alcançar também as construções pretorianas e a jurisprudência dos Tribunais. É inaceitável a sugestão de que tal proibição se refira apenas ao poder normatizador, quando se sabe que a atividade judicial tem aptidão para reorientar, de maneira inédita, certas diretrizes da vida social. Isso é especialmente relevante em matéria tributária, na qual, por exemplo, a eliminação de uma causa de inexigibilidade de tributo equivale, na prática, à instituição de uma nova exação, à margem do processo legislativo11.
Atente-se ao fato de que o Princípio da Proibição ao Retrocesso possui assento constitucional, derivando diretamente dos dispositivos que estabelecem o perfil do Estado Social e Democrático de Direito. Seu conteúdo prescritivo assegura a máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, especialmente aquelas que garantem a segurança jurídica e a confiança.
Por essas razões, conclui-se que esse princípio possui plena eficácia em matéria tributária, sendo vedada a modificação de entendimento jurisprudencial, anteriormente favorável, em prejuízo do contribuinte, nos casos em que não haja qualquer atividade legislativa que justifique essa mudança.
O terceiro aspecto a ser analisado diz respeito à discriminação tributária em razão da origem do produto, expressamente vedada pelo ordenamento tributário em relação ao ICMS (art. 152. da CF), mas igualmente aplicável ao IPI. Além disso, há uma afronta ao Princípio da Igualdade Tributária, previsto no art. 150, II, da Constituição Federal12.
Nesse quesito, não se pode argumentar que a possibilidade de creditamento do montante pago na etapa anterior mitiga ou elimina o excedente do imposto a ser pago pelo contribuinte. Isso porque o creditamento, por si só, não anula nem reduz a carga tributária adicional imposta ao comerciante-importador13.
Com razão, o valor da importação, sobre o qual incide o IPI no momento do desembaraço aduaneiro, não é idêntico ao valor da venda interna da mercadoria importada, que usualmente é maior em razão da aplicação de uma margem de lucro pelo comerciante-importador.
O doutrinador Gabriel Lacerda Troianelli demonstra um exemplo prático desta sobrecarga tributária:
Com efeito, a diferença entre as cargas tributárias pode ser explicada mediante um exemplo bem simples. Suponhamos que a empresa A, comerciante, tenha adquirido, diretamente do fabricante, pelo preço de 100, determinado produto industrializado fabricado no País, incidindo sobre tal produto o IPI pela alíquota de 10%. Caso a empresa A revenda o produto adquirido para o consumidor final ao preço de 200, a carga total de IPI sobre tal produto será de 10, gerador pela única incidência do imposto na saída do estabelecimento do fabricante. suponhamos, agora, que outro comerciante, a empresa B, tenha importado, também pelo preço de 100, este mesmo produto. Caso a empresa B revenda o produto também pelo preço de 200, a carta total do IPI será de 20, pois: ao importar, pagará IPI de 10 no desembaraço aduaneiro, creditando-se deste mesmo montante; ao revender, usará o crédito 10 gerado pela importação para abater dos 20 (10% de 200) devidos na saída do estabelecimento, o que resultará em uma carga total de 20, relativa à soma dos impostos devidos (10 na importação e 20 na saída interna) subtraída do crédito apurado (10 na importação). Como se vê, a carga tributária de IPI incidente sobre o produto nacionalizado, importado pela empresa B, será de 20, portanto, DUAS VEZES maior do que a carga de IPI incidente sobre o produto nacional adquirido pela empresa A, que será de 10.14
Importa ressaltar que o desembaraço aduaneiro é o momento em que se tributa a atividade do importador com diversas exações relacionadas ao comércio exterior, tais como: II, IPI, ICMS, IOF, PIS, COFINS, AFRMM, CIDEs e a Taxa de Utilização do SISCOMEX.
É justamente nesse momento que ocorre a equalização das cargas tributárias entre o produto nacional e o importado, de modo que, após o desembaraço aduaneiro, o produto importado torna-se nacionalizado, equiparando-se ao produto nacional.
Conforme elucida o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho:
“E, à toda evidência, o desembaraço aduaneiro extingue a nota de estrangeirice, nacionaliza e equipara a mercadoria a produtos nacionais. A partir do momento em que aporta em território nacional, após o pagamento dos impostos referentes à importação, nele incluindo-se o IPI, tal como previsto no art. 46, I do CTN, a mercadoria, salvo se sofrer outro processo de industrialização, estará, para todos os efeitos, integrada ao circuito de comercialização interno.15”
Com efeito, caso seja necessária a proteção de determinado setor mercadológico, compete à União elevar as alíquotas dos impostos cobrados no momento do desembaraço aduaneiro, cujas finalidades são preponderantemente extrafiscais.
Por consequência, ao impor uma carga de IPI sobre o produto nacionalizado superior àquela aplicada aos bens nacionais, a União compromete a equalização tributária previamente realizada, sobretaxando esses bens unicamente em razão de sua origem e, assim, violando o Princípio da Não Discriminação em Razão da Origem do Produto (art. 152. da CF/88).
Ademais, uma vez nacionalizados, os bens não podem sofrer tratamento tributário distinto dos produtos nacionais (sobretaxa fiscal), em razão do Princípio da Igualdade Tributária (art. 150, II, da CF/88), especificamente na perspectiva da igualdade fiscal entre produtos nacionais e nacionalizados.
Por essas razões, conclui-se que a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça agiu corretamente ao dar provimento ao EREsp 1.411.749/PR e unificar a jurisprudência da Corte em favor do contribuinte, diante da patente impossibilidade de cobrança do IPI sobre a revenda de mercadorias importadas, desde que não tenham sido submetidas a qualquer processo de industrialização após o desembaraço aduaneiro.
3. CONCLUSÃO
O importador-comerciante desempenha duas atividades distintas. Atua tanto como importador do produto estrangeiro, situação em que se sujeita ao pagamento do IPI no momento do desembaraço aduaneiro (artigo 46, inciso I, do CTN), juntamente com os demais impostos necessários para a equalização da carga tributária, como também assume a função de comerciante, revendendo a mercadoria no mercado interno.
Não se discute a incidência do IPI sobre o desembaraço aduaneiro, pois essa constitui uma hipótese clara e legítima de incidência fiscal. A controvérsia reside na imposição do tributo sobre a operação de revenda do produto no mercado nacional.
Conforme analisado, a resolução dessa questão passa pela análise do critério material da norma tributária, cuja expressão material se concretiza no fato gerador. Assim, é suficiente verificar se ocorreu um processo de industrialização no intervalo entre o desembaraço aduaneiro e a revenda da mercadoria.
Caso não tenha ocorrido qualquer operação dessa natureza, a incidência do referido tributo será indevida, por ausência de fato gerador, sob pena de, caso se proceda à sua cobrança, incorrer na vedada bitributação, já que se estaria tributando o mesmo fato gerador do ICMS (operação de circulação de mercadorias).
Tem-se, portanto, que, além de essa cobrança violar os princípios da isonomia fiscal e da vedação à discriminação em razão da origem do produto, sua incidência deve ser afastada diante da inexistência do fato gerador do imposto.