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Os limites subjetivos da coisa julgada nas demandas coletivas

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01/06/2003 às 00:00
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III – O FENÔMENO DA COISA JULGADA

Ao estudarmos as ações destinadas à defesa de interesses transindividuais, ressaltamos que tais interesses requerem uma concepção de processo diferente do tradicionalmente previsto no Código de Processo Civil Pátrio – individualista –, em razão de algumas peculiaridades que apresentam.

Dentre os institutos processuais previstos no ordenamento processual brasileiro que recebem tratamento diferenciado frente à disciplina normativa das ações coletivas está o fenômeno da coisa julgada, que possui limites subjetivos diversos dos previstos nas demandas individuais.

Antes, contudo, de verificarmos como se operam os limites acima referidos, é mister entender como se processa a coisa julgada no processo civil tradicional.

3.1 Coisa julgada: conceito e limites objetivos

A coisa julgada, por ser matéria extremamente abstrata, traduz-se em tema de grande complexidade aos estudiosos do processo civil, razão pela qual há grande diversidade de trabalhos doutrinários sobre o tema e muitos posicionamentos conflitantes, o que demonstramos ao longo deste capítulo.

Neste tópico, estudamos conjuntamente o conceito e limites objetivos da coisa julgada porque verificamos que tais assuntos estão intimamente conectados. Ao conceituarmos a coisa julgada, obrigatoriamente nos deparamos com seus limites objetivos.

A noção de coisa julgada é trazida pelo artigo 467 do Código de Processo Civil, mas tal definição é extremamente criticada pela maioria dos doutrinadores, por não tratar a coisa julgada como uma qualidade da sentença, posição defendida por Enrico Tullio Liebman. Na verdade, o artigo 467 do referido diploma legal estaria conceituando coisa julgada formal e não material, temas que serão vistos adiante.

Para Liebman, a coisa julgada não é um efeito da sentença, mas uma qualidade da mesma, que a torna imutável. Segundo esse autor a autoridade da coisa julgada não é efeito da sentença, como postula a doutrina unânime, mas, sim, modo de manifestar-se e produzir-se dos efeitos da própria sentença, algo que a esses efeitos se ajunta para qualificá-los e reforçá-los em sentido bem determinado.

Cumpre destacar que efeito e eficácia não se confundem, significando conceitos distintos. Paulo Valério Dal Pai Moraes, brilhantemente traz a distinção:

Eficácias são potencialidades, virtualidades inclusas no conteúdo das sentenças, as quais são "materializadas, concretizadas", atualizadas sob a forma de efeitos. Efeitos, portanto, corresponderiam à expressão dinâmica das eficácias ou à sua exteriorização em relação ao formalismo sentencial, representando, precipuamente, a execução, por intermédio da atividade jurisdicional, da ação de direito material a que foram impedidos os "particulares".

Portanto, eficácia é a possibilidade de materializar o conteúdo da sentença, e efeito é a exteriorização dessa materialização.

Ovídio Araújo Baptista da Silva sustenta que as eficácias fazem parte do conteúdo da sentença, assim como se diz que este ou aquele medicamento possui tais ou quais virtudes (ou eficácias curativas). Para o autor, não se pode confundir a virtude curativa com o efeito produzido pelo medicamento sobre o organismo enfermo.

Não obstante a definição de coisa julgada trazida por Liebman tenha influenciado uma série de doutrinadores, é preciso fazer constar algumas críticas à sua tese.

A obra do mestre italiano Liebman, "Eficácia e Autoridade da Sentença", causou certo furor no mundo jurídico, porque veio modificar conceitos condizentes com a coisa julgada, os quais estavam aparentemente consolidados.

Para o festejado mestre peninsular, não há distinção entre eficácia e efeito, sustentando o mesmo que a coisa julgada nada mais é que a indiscutibilidade ou imutabilidade da sentença e dos seus efeitos, aquele atributo que qualifica e potencializa a eficácia que a sentença naturalmente produz, segundo a sua própria essência de ato estatal.

Todavia, entendemos que os efeitos da sentença não se tornam imutáveis. Estes são passíveis de modificação, até porque o Estado não pode invadir o relacionamento extra-autos. Como impedir que, em uma ação condenatória, v.g., o autor deixe de optar pelo recebimento de outra prestação que não a que consta nos autos? Mesmo que a sentença tenha transitado em julgado, podem as partes acordar de modo diferente e alterar os efeitos da decisão. Que ingerência pode o Estado ter sobre a referida situação? Entendemos que nenhuma. Portanto, não podemos afirmar que na coisa julgada ocorre a imutabilidade dos efeitos.

Outro importante ponto a ser comentado refere-se à crítica feita por Ovídio Baptista da Silva às afirmações de Liebman, que diz que todas as cargas de eficácia da sentença são passíveis de produzir coisa julgada. Para Ovídio, seguidor do jurista alemão Hellwig, apenas a eficácia declaratória torna-se imutável.

Segundo Enrico Tullio Liebman, todos os efeitos possíveis da sentença (declaratório, constitutivo, executório) podem, de igual modo, imaginar-se, pelo menos em sentido puramente hipotético, produzidos independentemente da autoridade da coisa julgada, sem que por isso se lhe desnature a essência. A coisa julgada é qualquer coisa mais que se ajunta para aumentar-lhes a estabilidade, e isso vale igualmente para todos os efeitos possíveis das sentenças.

Ovídio Araújo Baptista da Silva, no entanto, discorda do jurista italiano e sustenta que a imutabilidade só atinge a eficácia declaratória da sentença, pensamento compartilhado com Pontes de Miranda.

De acordo com Ovídio:

[...] desaparecendo os efeitos constitutivos, ou executivos, ou condenatórios que são absolutamente mutáveis, e mesmo assim a imutabilidade correspondente à coisa julgada permanecendo inalterada, a conclusão que se impõe é a de que essa qualidade só se há de referir ao efeito declaratório, já que, como diz Barbosa Moreira, ‘a quem observe, com atenção, a realidade da vida jurídica, não pode deixar de impor-se esta verdade simples: se alguma coisa, em tudo isso, escapa ao selo da imutabilidade, são justamente os efeitos da sentença.

Já afirmamos que efeito e eficácia se distinguem, e que a coisa julgada é uma qualidade que se agrega à sentença, tornando-a imutável. Sustentamos também que eficácia é virtude, qualidade, de modo que uma sentença, assim como um medicamento (seguindo o exemplo de Ovídio), pode ter diversas eficácias. Para os processualistas, tais eficácias são declaratórias, constitutivas, condenatórias, mas, para Pontes de Miranda, elas são ainda mandamentais e executivas lato sensu.

Logo, o que precisamos compreender é se todas as eficácias tornam-se imutáveis, como defende Liebman, ou se apenas a eficácia declaratória, como prega Ovídio Araújo Baptista da Silva, seguidor do jurista Hellwig.

De fato, os efeitos são mutáveis e, portanto, os efeitos constitutivos, condenatórios ou executivos também são mutáveis. Todavia, porque não dizermos que o efeito declaratório pode ser modificado? Se é efeito, não está abrangido pela autoridade da coisa julgada, deixando de fazer parte do conteúdo da sentença e, então, é também passível de modificação.

Indiscutíveis são as eficácias da sentença, o seu próprio conteúdo e nesse caso, entendemos ser possível afirmar que a autoridade da coisa julgada atinge, além da carga declaratória, também as cargas constitutivas, condenatórias, executivas lato sensu e mandamental.

Outrossim, vale esclarecer que, quando mencionamos a mutabilidade dos efeitos e imutabilidade das eficácias, estamos nos referindo a direitos disponíveis, porque tal raciocínio não se adecua aos direitos indisponíveis, aqueles a que não se pode renunciar.

Brilhante é a colocação de Sérgio Gilberto Porto ao afirmar que não há como modificar certos efeitos produzidos pela sentença. Exemplifica o doutrinador que na demanda investigatória de paternidade julgada procedente, um dos vários efeitos produzidos é a expedição de mandado de retificação do assento de nascimento do investigante, para que nele se inclua o nome do pai. Segundo o jurista, não há como impedir a produção deste resultado no sistema brasileiro, sendo, portanto, imodificável o efeito, razão pela qual se tem por incorreta a afirmação genérica de que os efeitos são modificáveis – pois nem sempre serão.

Logo, efeitos são mutáveis quando os direitos forem disponíveis, e imutáveis, assim como as eficácias, quando nos depararmos com direitos indisponíveis, sendo, para nós, os limites objetivos da coisa julgada.

Após o estudo sobre conceito e limites objetivos da coisa julgada, passamos à análise dos limites subjetivos da coisa julgada.

3.2 Limites subjetivos da coisa julgada

O artigo 472 do Código de Processo Civil refere-se aos limites subjetivos da coisa julgada. Para compreender a significação do referido dispositivo, mister entender dois conceitos distintos, quem são as partes em um processo e quem são os terceiros.

Para Ovídio Baptista da Silva, podem ser designados como parte somente aqueles sujeitos que integram o litígio, considerados componentes do litígio, reservando-se para os demais figurantes da relação processual, que, embora não integrando a lide, participem também do processo, a denominação de terceiros.

Como bem explica o mestre gaúcho:

Muitos processualistas, como é o caso de CARNELUTTI (Sistema di diritto processuali civile, I/36 e segts.), empregam um conceito de parte em sentido formal, para indicar as posições dos sujeitos do processo, distinguindo-os das partes em sentido substancial, que seriam os sujeitos da lide. Esta concepção é errônea, uma vez que não pode haver, por definição, uma lide diversa daquela descrita pela parte em sua petição inicial. Como a lide será, necessariamente, o conflito narrado pelo autor em seu pedido de tutela jurídica, partes da lide, serão sempre as mesmas partes do processo. É necessário, todavia, estarmos atentos, porque o legislador brasileiro, freqüentemente, seja por convicção ou conveniência, refere-se aos terceiros que ingressam no processo, sem integrar a lide, como se eles fossem partes secundárias ou acessórias, ou simplesmente partes em sentido formal.

Saber quem são os terceiros, por outro lado, e até onde de fato estes não são beneficiados ou prejudicados pela autoridade da coisa julgada, é outra importante tarefa a que nos propomos.

Com efeito, sustenta Enrico Tullio Liebman que o processo não é um negócio combinado em família e produtor de efeitos somente para as pessoas iniciadas nos mistérios de cada feito. É o processo, ao contrário, atividade pública, exercida para garantir a observância da lei. Desse modo, todos estão, abstratamente, submetidos à eficácia da sentença, embora nem todos sofram os efeitos da mesma.

De acordo com o processualista italiano, sofrem os efeitos da sentença aqueles em cuja esfera jurídica entre mais ou menos diretamente seu objeto. Assim, em primeiro lugar estão as partes titulares da relação afirmada em juízo, e depois, gradativamente, todos os outros cujos direitos estejam de certo modo com ela em relação de conexão, dependência ou interferência jurídica ou prática. A natureza da sujeição é para todos, partes ou terceiros, a mesma. A medida dessa sujeição, porém, é que irá determinar-se pela relação de cada um com o objeto da decisão.

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Conclui Liebman: "Entre as partes e terceiros só há esta grande diferença: que para as partes, quando a sentença passa em julgado, os seus efeitos se tornam imutáveis, ao passo que para os terceiros isso não acontece".

Abordando a situação dos terceiros frente à coisa julgada, Alexandre Freitas Câmara, apud Renato Rocha Braga, lembra que nem todos sofrem, com a mesma intensidade, os efeitos da sentença e afirma que os mesmos se posicionam em duas grandes categorias: terceiros juridicamente indiferentes, subdivididos em terceiros desinteressados e terceiros interessados de fato; e terceiros juridicamente interessados, que, por sua vez, também se subdividem em terceiros com interesse idêntico ao das partes e terceiros com interesse inferior ao das partes.

Para Renato Rocha Braga só os terceiros com interesse inferior ao das partes que aleguem injustiça da decisão e os terceiros com interesse idêntico ao das partes podem resistir à coisa julgada, não sendo, pois, atingidos pela indiscutibilidade da mesma.

Entretanto, concordamos com Liebman quando afirma que só as partes são alcançadas pela imutabilidade dos efeitos da coisa julgada.

De fato, embora discordemos da nomenclatura "efeitos", pois, como já asseveramos antes, o mais correto é falar em imutabilidade de "eficácia", entendemos que não só os terceiros das categorias mencionadas acima podem discutir a matéria atingida pela coisa julgada, sendo atingidos pela imutabilidade das eficácias da sentença somente as partes entre as quais foi proferida a decisão. A coisa julgada, portanto, tem eficácia inter partes, mas não erga omnes, como pretendemos investigar.

Com efeito, como sustenta Renato Rocha Braga há um repúdio em pensar que terceiros, ausentes da relação processual de onde emanou a decisão, terão de se conformar com ela, acatando-a, não sendo correto afirmar que a coisa julgada nas ações individuais opera-se erga omnes, entendida a expressão como a imutabilidade do conteúdo da sentença para terceiros que não participaram da relação processual.

Comprovando sua tese, o autor afirma que o instituto da oposição reflete historicamente essa aversão à coisa julgada erga omnes. Segundo Renato Rocha Braga, apud Alexandre Freitas Câmara, no antigo direito germânico permanecia entre povos o "juízo universal", em que a decisão acerca de um conflito de interesses atingia não só as partes, mas todos aqueles que tivessem notícia da referida decisão. Surgiu então a oposição, como forma de remediar a injustiça que se proclamava entre terceiros. Por meio do referido instituto, os terceiros, atingidos por uma decisão, poderiam ingressar na relação.

Na perspectiva de Athos Gusmão Carneiro:

Sabemos que a sentença a ser proferida na ação entre A e B somente fará coisa julgada entre as partes (CPC, art. 472); portanto, não prejudicará os eventuais direitos de terceiro. Este pode, em princípio, aguardar a prolação da sentença, e resguardar-se para agir mais tarde, em defesa de seus interesses. Todavia, de fato, [...] pode convir ao terceiro uma imediata afirmativa de suas pretensões sobre a coisa ou direito controvertidos entre autor e réu; e também pode ser-lhe conveniente, de jure, agir sem mais delongas, para interromper, por exemplo, o prazo de prescrição de seu alegado direito (CPC, art. 219, caput).

Portanto, ao terceiro que quiser opor pretensão própria em uma relação jurídica em que duas partes contendem, é resguardado o direito de ingressar com ação autônoma. Tal ação poderá ser proposta sozinha ou juntamente com outra, que é o caso da oposição. Não há que se negar, desse modo, a faculdade de terceiro pleitear em juízo direito que alega ter, mesmo que a relação jurídica entre as partes já tenha transitado em julgado.

Ressaltamos que o instituto da oposição serve tanto ao terceiro juridicamente interessado quanto ao terceiro juridicamente indiferente, visto que, de acordo com a classificação de Ovídio Baptista da Silva, estão compreendidos na categoria de terceiros juridicamente indiferentes os interessados de fato, os quais não podem ser tolhidos de exercer suas pretensões em juízo.

Nada impede, por exemplo, que um credor, percebendo que seu devedor é demandado em juízo por outro credor, queira reclamar algum direito que lhe pertence. Não seria justo que tal credor fosse atingido pela eficácia da sentença transitada em julgado porque considerado terceiro interessado de fato. Desse modo, entendemos que a indiscutibilidade da sentença trânsita em julgado, nas ações individuais, opera-se inter partes e não erga omnes.

Frisamos que são considerados terceiros todos aqueles que não figurarem como parte no processo. Sobre a matéria, vale lembrarmos que, na substituição processual, o substituído, embora formalmente considerado terceiro, figura de fato como parte no processo.

A substituição processual, já analisada anteriormente, é chamada de legitimação extraordinária e tem previsão legal no artigo 6º do Código de Processo Civil. A última parte do dispositivo, "salvo quando autorizado por lei", refere-se aos casos de legitimação extraordinária, em que alguém substitui a parte no processo, passando a ocupar seu lugar.

Para José Frederico Marques, dá-se a substituição processual quando alguém está legitimado a agir em juízo, em nome próprio, como autor ou réu, para a defesa do direito de outrem.

Ao abordar o tema ora em análise, José Maria Tesheiner, sustenta que, de acordo com Ada Pellegrini Grinover, a sucessão do terceiro à parte, na relação jurídica já deduzida em juízo, e a substituição processual – não representam extensão da coisa julgada ultrapartes, porquanto nem o sucessor nem o substituído são propriamente terceiros. O primeiro porque, sucedendo à parte, torna-se titular da relação jurídica; o segundo porque, por definição, a atividade processual desenvolvida pelo substituto processual tem necessariamente influência e eficácia sobre o substituído.

Portanto, em casos de legitimação extraordinária, o substituto, que figurou na relação como parte, defendendo em nome próprio direito alheio, é atingido pela coisa julgada, assim como o substituído.

Athos Gusmão Carneiro, posicionando-se sobre o tema, afirma que a sentença, proferida na demanda, faz coisa julgada também perante o substituído, pois, como elucida mestre Chiovenda, seria absurdo que a lei conferisse a alguém autorização para defender em juízo direitos alheios e, ao mesmo tempo, não conferisse a tal atividade uma plena eficácia relativamente aos direitos assim deduzidos.

Sinteticamente, portanto, como a coisa julgada opera-se inter partes e não erga omnes, somente os sujeitos que integrarem o processo, como elementos componentes do litígio, serão atingidos pela coisa julgada.

Após percorrermos o fenômeno da coisa julgada, passamos para a última parte desse trabalho, onde abordaremos como se operam os limites subjetivos da coisa julgada frente às demandas coletivas, que se destinam à defesa de interesses metaindividuais.

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Sobre a autora
Silvia Resmini Grantham

Advogada. Professora de Direito Constitucional e Direito Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRANTHAM, Silvia Resmini. Os limites subjetivos da coisa julgada nas demandas coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -31, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4186. Acesso em: 21 nov. 2024.

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