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Os limites subjetivos da coisa julgada nas demandas coletivas

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01/06/2003 às 00:00
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IV – OS LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA NAS DEMANDAS COLETIVAS

A coisa julgada anteriormente adquire contornos bem diferenciados quando se está diante de ações coletivas, pois tais demandas, como já analisamos, possuem características peculiares que as afastam do modelo tradicional implementado pela lei processual civil pátria. Há autores, inclusive, defendendo o surgimento, em nosso ordenamento jurídico, de uma teoria geral do processo coletivo.

Nesse contexto, percebemos que um dos pontos mais debatidos na doutrina moderna refere-se ao confronto entre os limites subjetivos da coisa julgada e os direitos metaindividuais, pois, para que as demandas coletivas efetivamente atinjam os objetivos a que se propõem, isto é, defender direitos que escapam à esfera individual - molecularmente e não de modo atomizado -, é mister que os limites subjetivos da coisa julgada também recebam tratamento diferenciado.

Desse modo, impõe-se verificar qual a extensão dos limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas lato sensu, bem como o modo como se operam as eficácias da sentença trânsita em julgado nessas demandas.

4.1 A coisa julgada e os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos

O Código de Defesa do Consumidor, além de conceituar interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, também trouxe dispositivo legal referente à coisa julgada nas demandas de consumo, disciplinando assim a forma como a autoridade da coisa julgada processa-se em relação aos direitos transindividuais. Justamente por ultrapassarem a esfera do interesse individual, não se pode afirmar que teremos coisa julgada inter partes em ações coletivas.

Destarte, segundo o art. 103 do CDC, na hipótese de interesses difusos, pela própria natureza de tais direitos, a sentença fará coisa julgada erga omnes, o que também ocorrerá quanto aos interesses individuais homogêneos, mas apenas em caso de procedência da ação, a fim de beneficiar todas as vítimas e seus sucessores. Por fim, quando a ação coletiva versar sobre direito coletivo, a autoridade da coisa julgada processar-se-á ultrapartes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe.

Vale ressaltarmos, todavia, que o artigo 103 do CDC, não obstante tenha sido taxativo quanto às eficácias da coisa julgada nas ações coletivas, gerou dúvidas em várias questões, as quais vêm sendo debatidas no mundo jurídico contemporâneo. Por tal razão, nesse trabalho apresentamos as principais conclusões derivadas da interpretação do dispositivo supra referido, acerca da coisa julgada na tutela coletiva.

Em primeiro lugar, os incisos I e II do art. 103, que se referem a direitos difusos e coletivos, trazem uma exceção à existência da coisa julgada, que é a improcedência da ação por falta de provas. Isso significa que, neste caso, será possível aos autores intentar nova ação, assim que surgirem novas provas sobre o direito pleiteado na demanda.

A grande problemática que surge nessa situação é delimitarmos o que efetivamente consiste em nova prova, questão que é brilhantemente dirimida por Renato Rocha Braga:

[...] a prova nova referida nos incisos I e II do artigo 103, como de óbvio, não se confunde com ‘documento novo’ mencionado no inciso VII do artigo 485 (aqui possui uma acepção muito mais reduzida), já que podem se referir a outros elementos que não sejam necessariamente ‘documento’, como novas testemunhas ou perícia. ‘Prova nova’ é todo elemento probatório que não pôde ser produzido na instrução anterior, seja por impossibilidade física ou por falta de conhecimento pela parte de sua existência.

Assim, só podemos considerar prova nova aquela que não foi produzida na demanda anterior por manifesta impossibilidade. Nos demais casos, haverá coisa julgada, não podendo as partes negar a sua existência no sentido de intentar nova demanda após o trânsito em julgado na primeira ação.

A segunda questão que se impõe diz respeito aos vocábulos erga omnes e ultrapartes, pois há autores que os consideram como sinônimos, enquanto outros afirmam a sua distinção.

Antônio Gidi é um dos juristas que entende serem sinônimas as expressões. Segundo o autor, os dispositivos legais constantes nos três incisos do art. 103 poderiam ter sido redigidos de duas formas dogmaticamente indiferentes, no que diz com as expressões latinas empregadas, as quais acarretam, inelutavelmente, a mesma e única interpretação. Por outro lado, Antônio Gidi sustenta que é certo que erga omnes ("contra todos"), abstrata e isoladamente considerado, tem feição aparentemente mais ampla e peremptória que ultra partes ("além das partes"), havendo nítida impressão que a primeira atinge a todos, e a segunda atinge alguns.

Assim, para o jurista, o mais técnico seria a utilização indiscriminada, nos três incisos do art. 103, da expressão ultrapartes.

Já Arruda Alvim e outros ao diferenciarem os sentidos das expressões erga omnes e ultra partes, parecem-nos contrários ao posicionamento citado acima. Segundo os autores, o sentido de ultra partes é aquele em que a coisa julgada atinge o grupo, categoria ou classe e todos os seus membros nessa qualidade, não abrangendo, porém, toda a coletividade. Comparativamente, a erga omnes é mais extenso.

Entendemos, contudo, que quem melhor sintetiza a questão posta em debate é Renato Rocha Braga, ao mencionar:

A par da discussão, conclui-se sobre a inadequação de uma coisa julgada erga omnes ou ultra partes. Conforme visto, por ser a legitimação do autor coletivo extraordinária, a extensão da autoridade da res iudicata se dá do mesmo modo previsto pelo CPC, isto é, tanto o substituto quanto o substituído, apesar deste nunca ter ingressado na relação processual, ficarão submissos ao decisum, de forma imutável e indiscutível. [...] Destarte, apenas os indivíduos que tiveram sua esfera jurídica atingida pelo evento danoso, representados pelo autor coletivo, serão atingidos pela coisa julgada.

Desse modo, independentemente de estarmos diante de uma ação coletiva que defenda interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, é importante saber que todos aqueles que foram atingidos pelo evento danoso estarão sob a autoridade da coisa julgada.

Por tal razão, adotamos, nesse trabalho, a expressão utilizada por Márcio Flávio Mafra Leal, apud Renato Rocha Braga,que diz ser a coisa julgada extra partes, expressão que engloba ambos os conceitos erga omnes e ultra partes, na medida que significa a extensão de sua autoridade para pessoas que não fizeram parte da relação processual.

Travado o debate em torno do significado dos adágios latinos trazidos pelo art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, não nos podemos esquivar de mencionar o parágrafo 1º do referido dispositivo, o qual prevê a possibilidade de serem intentadas ações individuais na defesa do mesmo interesse difuso ou coletivo, postulado na ação coletiva.

Conforme o referido parágrafo 1º, a autoridade da coisa julgada, a qual, como vimos, opera-se extra partes nas ações coletivas, em nada obsta a possibilidade de um cidadão, insatisfeito com o resultado da demanda, intentar nova ação, individualmente. Mas, gizamos que por óbvio, tal só irá ocorrer em caso de improcedência da ação ou mesmo de parcial procedência, porquanto, se o pleito for integralmente acolhido, a eficácia do decisum se estenderá a todos os substituídos, não havendo necessidade de se intentar nova demanda.

Assim, em uma ação em defesa de interesses difusos ou coletivos, podem surgir três casos distintos em relação à coisa julgada. Em primeiro lugar, se a demanda for acolhida integralmente, a sentença prevalecerá a todos os substituídos. Em segundo lugar, se o pedido for rejeitado no mérito, não poderá ser intentada nova ação coletiva, mas são admitidas ações individuais. E, finalmente, em terceiro lugar, se a sentença for julgada improcedente por falta de provas, não haverá coisa julgada, podendo nova ação ser ajuizada a qualquer tempo, desde que surjam novas provas.

Ainda em relação ao parágrafo 1º do art. 103, devemos frisar que a referida regra somente se estende aos direitos difusos e coletivos, já que os direitos individuais homogêneos possuem dispositivo específico - parágrafo 2º do art. 103 - o qual disciplina de modo distinto a matéria.

Segundo o referido parágrafo, só poderão propor ação de indenização a título individual aqueles que não intervieram no processo como litisconsortes e apenas em caso de improcedência da ação.

A fim de entendermos corretamente o dispositivo acima mencionado, contudo, é mister conjugá-lo como o inciso III do artigo em comento. Segundo a regra inserta nesse inciso, nas ações destinadas à defesa de interesses individuais homogêneos somente haverá coisa julgada em caso de procedência da ação.

Desse modo, se o parágrafo 2º sustenta que em caso de improcedência da ação, apenas quem não autuou como litisconsorte poderá propor ação individual, como ficam aqueles que encabeçaram o pólo ativo da demanda coletiva e tiveram seu pleito rejeitado? Quem soluciona a problemática é Antônio Gidi:

O inciso III do CDC prevê que a sentença fará coisa julgada somente no caso de procedência do pedido. Surge, então, a perplexidade de se saber o que aconteceria no caso de improcedência. Não haveria formação de coisa julgada material nesse caso? A coisa julgada seria apenas inter partes? Resolve-se o problema com uma interpretação conjugada com o § 2º do mesmo artigo. Se esse dispositivo ressalva aos ‘aos interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes’, a possibilidade de propor a sua ação individual é porque, contrario sensu, aqueles interessados que intervieram, aceitando a convocação do edital a que se refere o art. 94, são atingidos pela coisa julgada inter partes.

Portanto, quem ingressou na ação coletiva, como litisconsorte, em caso de improcedência da ação, é atingido pela autoridade da coisa julgada inter partes.

Vale transcrevermos ainda o posicionamento de Renato Rocha Braga sobre o tema:

A extensão subjetiva para os interessados que se habilitaram como litisconsortes é clara, porque os mesmos serão tratados como partes e não como terceiros subordinados. Esta diferença ocorre porque nas demandas em defesa de interesses difusos e coletivos não é permitido ao substituído o ingresso na relação processual, já que a regra contida no artigo 94 do CDC, que permite esse ingresso, somente se aplica aos direitos individuais homogêneos. Esta é a outra diferença de muita importância entre o regime dos direitos individuais homogêneos e os difusos/coletivos, na medida em que, nestes, não é permitido o ingresso do lesado na relação processual.

Logo, é o artigo 94 do CDC, que permite o tratamento diferenciado às ações em defesa de direitos individuais homogêneos, na medida em que determina que os interessados intervenham como litisconsortes ativos nessas ações, tornando-se partes.

Na perspectiva de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery litisconsórcio é a possibilidade que existe de mais de um litigante figurar no(s) pólo(s) da relação processual. O listiconsórcio classifica-se em inicial ou ulterior, quanto ao momento de sua formação; necessário ou facultativo; quanto à obrigatoriedade de sua formação; ativo, passivo ou misto quanto ao pólo ativo da relação processual; e unitário ou simples quanto ao destino dos litisconsortes no plano do direito material.

No caso do artigo 94 do CDC, trata-se de litisconsórcio unitário necessário, regido pelo artigo 47 do Código Processual Civil.

Segundo José Frederico Marques apud Adolfo Schönke, litisconsórcio unitário é aquele em que sobre a relação jurídica tenha a ser dada uma decisão uniforme para todos os litisconsortes.

Assim, todos aqueles que se habilitarem na ação coletiva para defesa de direito individual homogêneo, atuarão como listisconsortes, ou seja, partes, da relação. Logo, não haverá, na espécie, legitimação extraordinária para causa, explicando-se, assim, porque a sentença, nesse caso, faz coisa julgada inter partes e não erga omnes.

Analisados os parágrafos 1º e 2º do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, devemos mencionar que a referida norma ainda traz mais duas regras (parágrafos 3º e 4º), de importante compreensão.

4.2 Questões processuais pertinentes

Os limites subjetivos da coisa julgada merecem estudo especial em relação às demandas coletivas não apenas por se diferenciarem quanto à extensão, mas também por trazerem algumas peculiaridades processuais, tais como a coisa julgada secundum eventum litis, a coisa julgada in utilibus e a litispendência.

4.2.1 Coisa julgada secundum eventum litis

Na seção anterior, foi estudada a autoridade da coisa julgada frente a ações destinadas à defesa de interesses metaindividuais e notamos que, em conformidade com os incisos I e II do artigo 103 do CDC, a sentença faz coisa julgada erga omnes ou ultra partes, exceto se for julgada improcedente por falta de provas.

Tal determinação demonstra, assim, importante característica da coisa julgada em demandas coletivas, que é o fato de seus limites subjetivos estenderem-se aos demais substituídos "secundum eventum litis".

Isso significa que as eficácias da sentença trânsita em julgado, em ações destinadas a defesa de interesses metaindividuais, somente atingirão aos demais interessados, dependendo do resultado da ação (se procedente ou improcedente) e de sua fundamentação (se improcedente por falta de provas, p. ex.).

Como explica Renato Rocha Braga, nas demandas coletivas, a extensão subjetiva da coisa julgada material somente se dá secundum eventum litis e não pro et contra. Conforme o resultado da sentença, mesmo que o mérito seja analisado, os limites subjetivos variarão de acordo com o deslinde do feito (improcedência) e sua fundamentação (insuficiência probatória).

Mas, não devemos confundir a extensão dos limites subjetivos da coisa julgada com a sua formação, pois essa não se dá de acordo com o evento da lide. Na verdade, como afirma-nos Antônio Gidi, a coisa julgada sempre se formará, independentemente de o resultado da demanda ser pela procedência ou improcedência.

O que há de novo, portanto, é a possibilidade de modificação do rol das pessoas atingidas pelo fenômeno da coisa julgada, sempre que se estiver diante de uma ação coletiva.

Nesse sentido, exemplifica Renato Rocha Braga, demonstrando a diferença existente entre os limites subjetivos da coisa julgada nas demandas coletivas e no sistema tradicional de cunho individualista trazido pelo Código de Processo Civil:

[...] a coisa julgada material de caráter coletivo continua a se formar pro et contra, contudo sua extensão aos substituídos somente se dá secundum eventum litis. Isso difere radicalmente do sistema tradicional – artigo 472 – em virtude de tanto a formação da coisa julgada, quanto sua extensão subjetiva ocorrerem independentemente do resultado do processo. Por exemplo: o Ministério Público ajuíza uma demanda em face de uma fábrica que pôs no mercado um produto de alta nocividade à saúde – caso seu pedido seja julgado procedente, a coisa julgada material se formará, além de haver sua extensão a todos os substituídos (os consumidores lesados); caso seu pedido seja julgado improcedente por insuficiência de provas, ainda assim a coisa julgada material se formará, contudo a extensão do dispositivo não se estenderá aos substituídos e demais co-substitutos processuais, operando-se apenas entre o autor coletivo (nesta hipótese, o Parquet) e o demandado. Com isso, os substituídos não serão prejudicados pelo resultado desfavorável, além de os demais co-legitimados poderem ajuizar demanda, com idênticos fundamento e pedido, valendo-se de prova nova. Conclusão: sendo a decisão favorável ou desfavorável, por insuficiência probatória ou outro motivo, sempre haverá formação da coisa julgada material entre o autor coletivo e o réu.

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Não obstante a precisa explanação do autor acima, a coisa julgada secundum eventum litis não foi acolhida pela unanimidade de juristas, já que alguns deles sustentam sua inconstitucionalidade, argumentando que sua aplicação viola o princípio da isonomia, na medida em se favorece nitidamente ao autor coletivo.

Dentre os que defendem a contrariedade à Carta Magna do princípio ora em debate, José Rogério Cruz e Tucci e Rogério Lauria Tucci, apud Orlando Ribeiro:

[...] há inconstitucionalidade no tratamento porque, citando a doutrina de José Botelho de Mesquita, haverá afronta ao princípio da isonomia. Que nos Estados Unidos os interessados manifestam-se para não serem atingidos pela coisa julgada (chamado right to opt out) num prazo razoável, após serem notificados o que não ocorre no Brasil.

Contudo, em que pesem os fortes argumentos defendendo a inconstitucionalidade da coisa julgada secundum eventum litis, entendemos que mais coerentes com o espírito das ações que versam sobre direitos coletivos lato sensu são aquelas posições que afirmam que o princípio vai ao encontro da Lei Maior.

Destarte, na perspectiva de Renato Rocha Braga sobre o tema, não se pode argumentar que o sistema mencionado viole a isonomia, visto que não há direitos absolutos, antes devem ser confrontados, interpretando-se as normas constitucionais a fim de que não surjam antinomias. Por isso, o conflito aparente que há, v.g., entre os incisos IX e X do artigo 5º da CF, deve ser resolvido sopesando-se os interesses em jogo: há, efetivamente, liberdade de expressão, livre de censura, contudo essa liberdade não é plena, antes limitada pelo direito à honra e intimidade das pessoas.

Outrossim, devemos lembrar que o princípio da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, inserido no Código de Defesa do Consumidor, não existe por mero acaso.

Obviamente, consumidor e fornecedor não se encontram em igualdade de condições, daí porque devemos sempre almejar o equilíbrio nas relações, o que se faz tratando desigualmente aos desiguais.

A respeito da vulnerabilidade do consumidor, trazemos a esse trabalho as brilhantes colocações de José Geraldo Brito Filomeno, um dos autores do anteprojeto do CDC:

‘O consumidor é o elo mais fraco da economia; e nenhuma corrente pode ser mais forte do que seu elo mais fraco’. O autor dessa frase, ao contrário do que possa parecer, não é qualquer consumerista exacerbado. Ao contrário, é o ‘pai da produção em série’, ninguém menos que o célebre magnata da indústria automobilística Henry Ford [...]. Como já afirmava o célebre Ruy Barbosa, a democracia não é exatamente o regime político que se caracteriza pela plena igualdade de todos perante a lei, mas sim pelo tratamento desigual aos desiguais. No âmbito de tutela especial do consumidor, efetivamente, é ela sem dúvida a parte mais fraca, vulnerável, se se tiver em conta que os detentores dos meios de produção é que detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir, sem falar-se na fixação das margens de lucro.

Assim, não podemos nos olvidar que a proteção ao consumidor existe porquanto esse é a parte mais fraca em uma relação de consumo. Ademais, atrela-se aos argumentos favoráveis à constitucionalidade da coisa julgada secundum eventum litis o princípio da economia processual, pois a possibilidade de se beneficiar a todos os interessados é um dos maiores objetivos das demandas coletivas.

A fim de concluir o debate acerca do tema, devemos ressaltar ainda a posição de Antônio Gidi, que sustenta que não poderia haver qualquer dúvida quanto ao fato de haver harmonia entre o regime jurídico da coisa julgada nas ações coletivas e o ordenamento jurídico-constitucional, porque a proteção do consumidor está incluída expressamente entre os princípios gerais da atividade econômica (CF, art. 17, V), ao lado da soberania e da propriedade privada, e entre os direitos e garantias fundamentais do homem, bem como a própria elaboração de um Código de Defesa do Consumidor é proveniente de um comando constitucional.

4.2.2 Coisa julgada in utilibus

Os princípios da coisa julgada secundum eventum litis e in utilibus estão diretamente vinculados na medida em que os limites subjetivos da sentença trânsita em julgada só irão estender-se aos substituídos (secundum eventum litis), se vierem em seu benefício (in utilibus).

Segundo a definição de Orlando Ribeiro, a coisa julgada in utilibus é uma espécie secundum eventum litis, sendo reservada exclusivamente aos interesses individuais homogêneos, ocorrendo, apenas, quando é julgada procedente a demanda.

Com efeito, tal princípio encontra-se expresso nos parágrafos 3º e 4º do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor.

Discorrendo a respeito do parágrafo 3º do dispositivo acima mencionado, nos afirma Ada Pellegrini Grinover que tal artigo inova profundamente com relação aos princípios processuais sobre a coisa julgada porquanto, inspirado no princípio da economia processual e nos critérios da coisa julgada secundum eventum litis, bem como na ampliação ope legis do objeto do processo, expressamente autoriza o transporte, in utilibus, da coisa julgada resultante de sentença proferida na ação civil pública para as ações individuais de indenização por danos pessoalmente sofridos.

Isso significa que, sendo procedente a ação civil pública, o Código de Defesa do Consumidor, por economia processual, autoriza a extensão dos limites da coisa julgada a todas as vítimas e seus sucessores, sem que haja a necessidade de nova sentença.

Devemos frisar ainda, que além de estenderem-se as eficácias da coisa julgada às vítimas, ocorre também uma ampliação do pedido, pois o parágrafo 3º refere-se a ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, o que indica que, em caso de acolhimento da ação civil pública, o pedido de indenização exarado pelas vítimas em outras demandas, passa a integrar a ação coletiva.

Ada Pellegrini Grinover exemplifica a questão dizendo que, se, por exemplo, a ação civil pública que tenda à obrigação de retirar do mercado um produto nocivo à saúde pública for julgada procedente, reconhecendo a sentença os danos, reais ou potenciais, pelo fato do produto, poderão as vítimas, sem necessidade de novo processo de conhecimento, alcançar a reparação dos prejuízos pessoalmente sofridos, mediante liquidação e execução da sentença coletiva, nos termos do art. 97 do Código.

Analisado o aproveitamento da ação civil pública às ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, em caso de procedência da ação, devemos também verificar o que ocorre quando o pleito é rejeitado.

Sendo julgada improcedente a ação civil pública, tal como é regra nos processos coletivos, os substituídos não são atingidos pela coisa julgada, podendo ajuizar suas próprias ações indenizatórias.

Em relação ao parágrafo 4º do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, este dispositivo repete a norma do parágrafo 3º vista acima, aplicando à sentença penal condenatória a mesma regra válida para a ação civil pública.

Logo, a coisa julgada penal é passível de ser transportada às ações individuais reparatórias em caso de procedência do pedido, bem como ficam imunes os substituídos se não for acolhida a demanda.

Devemos ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor, nessa seara, não foi muito inovador, pois regramento similar já existe no Código de Processo Penal, permitindo que, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o ofendido, seu representante legal ou herdeiros, possam promover a execução da referida decisão no juízo cível.

Todavia, ainda assim há uma grande diferença entre o sistema tradicional de cunho individualista e o sistema coletivo trazido no CDC. Segundo Antônio Gidi, no direito individual comum, regido pelo CPC e CPP, o legitimado ativo para a propositura da execução é, tão-somente, o "ofendido". No caso do CDC, entretanto, o espectro subjetivo fica aumentado, tendo em vista que, ainda quando a ação penal tenha sido promovida por crime cometido contra um só consumidor, todas as vítimas da conduta ilícita do fornecedor passam a ser titulares ativos da pretensão executiva.

Por fim, cumpre relatarmos que a coisa julgada in utilibus também está presente no inciso III do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, o qual preconiza que os limites subjetivos da sentença trânsita em julgado somente atingirão a todos os interessados em caso de procedência do pedido.

Mas, como já afirmamos anteriormente que nas ações coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos não temos substituídos e sim litisconsortes, não iremos adentrar novamente no tema, bastando gizar que para a doutrina, o inciso III traz exemplo de coisa julgada in utilibus, na medida em que as eficácias da sentença aproveitam aos demais interessados em caso de acolhimento da demanda.

4.2.3 Litispendência: verificação necessária

A litispendência está conceituada no § 3º do artigo 301 do Código de Processo Civil, verificando-se a sua ocorrência quando nos deparamos com duas ações com identidade de partes, pedido e causa de pedir.

Sempre que estiver caracterizada a litispendência, a segunda ação deve ser extinta, sem julgamento de mérito, por tratar-se, assim como a coisa julgada, de exceção processual peremptória, que não admite qualquer sanação.

Contudo, devemos frisar que só a citação válida induz litispendência, de modo que, como lembra Voltaire de Lima Moraes, para caracterização desse instituto no segundo processo, onde haveria a repetição de ação que está em curso, é preciso que no anterior tenha sido feita a citação, pois do contrário ela não terá ocorrido.

Devemos concluir, destarte, que para haver litispendência são necessários dois elementos: a identidade de ações (iguais partes, pedido e causa de pedir) e a citação válida nas duas demandas.

Pois é justamente o primeiro elemento para a verificação do instituto em exame que pode suscitar alguma dúvida em relação às demandas coletivas.

Como visto anteriormente, os parágrafos 1º e 2º do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor permitem que os integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe ingressem com ações individuais, a despeito de estar em trâmite uma ação coletiva.

Desse modo, concluiríamos que o réu na ação coletiva, o qual também figura como requerido na demanda individual poderia alegar, preliminarmente em sua contestação, a ocorrência de duas ações idênticas, requerendo a extinção sem julgamento do mérito de uma delas.

Todavia, tal possibilidade tornaria despicienda quase todas as peculiaridades da coisa julgada no processo coletivo, principalmente os princípios da coisa julgada in utilibus e secundum eventum litis.

No intuito de evitar tal ocorrência, portanto, os autores do Código de Defesa do Consumidor inseriram o artigo 104, esclarecendo que as ações coletivas não induzem litispendência para as ações individuais.

Antes de adentrarmos na análise do referido artigo, devemos esclarecer que houve um equívoco do legislador ao afirmar que não induzem litispendência para as ações individuais as demandas coletivas previstas nos incisos I e II do parágrafo único do artigo 81. Na verdade, não há razões para que os processos que versem sobre direitos individuais homogêneos também não estejam abarcados pela norma do artigo 104.

Assim, onde se lê "previstas nos incs. I e II do parágrafo único do art. 81", leia-se "previstas nos incs. I, II e III do parágrafo único do art. 81".

De outra banda, também devemos entender por equivocada a segunda remissão prevista no artigo 104, porquanto o dispositivo, quando menciona os efeitos da coisa julgada, refere-se tão-somente aos incisos II e II do artigo 103 do CDC. Na verdade, o inciso I deveria também estar aí incluído.

Desse modo, comungamos da opinião de Ada Pellegrini Grinover, quando afirma que a referência do dispositivo aos "efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incs. II e III do artigo anterior" deve ser corrigida como sendo à coisa julgada "a que aludem os incs. I, II e III do artigo anterior".

Esclarecidos os equívocos do legislador na redação do artigo 104, passemos à análise do conteúdo desse dispositivo e verificamos que não ocorre litispendência entre uma ação coletiva e uma individual porque, como nos esclarece Ada Pellegrini Grinover, o pedido dos processos é inquestionavelmente diverso. Segundo a autora, enquanto as ações coletivas visam a reparação ao bem indivisivelmente considerado ou a obrigação de fazer ou não fazer, as ações individuais tendem ao ressarcimento pessoal.

Ademais, não haverá identidade de partes, pois em uma demanda individual será parte apenas quem teve seu direito violado em sua esfera jurídica individual, ao contrário da ação coletiva, em que todos os lesados figuram no pólo ativo, não obstante substituídos no processo pelos entes legitimados para a propositura da ação.

Porém, se comprovada a exclusão da possibilidade de litispendência entre demandas coletivas e individuais, o mesmo não podemos afirmar entre duas ações coletivas, já que é possível haver duas ações coletivas com as mesmas partes, pedido e causa de pedir.

Contudo, para que o afirmado acima ocorra, é mister tratarem-se da mesma espécie de interesses, ou seja, deve haver duas ações defendendo o mesmo direito individual homogêneo, difuso ou coletivo strictu sensu. Caso contrário, não haverá litispendência, embora possa se constatar a necessidade de conexão dos processos, como adverte Antônio Gidi. Por fim, o artigo 104 refere-se à suspensão do processo individual em até 30 dias após a constatação do ajuizamento da ação coletiva, a fim de que as eficácias (o artigo 104 refere-se a "efeitos’) da coisa julgada beneficiem os autores das demandas coletivas.

Logo, se o autor individual tomar ciência do ajuizamento de uma ação coletiva, pela regra insculpida no artigo em análise, terá o mesmo duas opções: prosseguir em sua demanda, abdicando da extensão subjetiva da sentença que vier a ser proferida no processo coletivo, ou requerer a suspensão de sua ação individual.

Nesse último caso, o demandante individual, se não for favorecido com o resultado da sentença coletiva (improcedente), poderá retomar seu processo individual, em nome dos princípios da coisa julgada in utilibus e secundum eventum litis.

Mas, é necessário frisarmos que no caso no parágrafo 2º do artigo 103, se o autor individual habilitar-se como litisconsorte, a coisa julgada formar-se-á para ele e, assim, não será permitido ao mesmo prosseguir com sua demanda individual.

4.3 A limitação territorial trazida pela Lei 9.494/97

As demandas coletivas referentes às relações de consumo são ajuizadas em um ou outro foro, de acordo com o alcance do dano que tais relações lhes causa, em conformidade com o artigo 93 do Código de Defesa do Consumidor.

A questão disciplinada acima parecia ser incontroversa, não suscitando maiores indagações doutrinárias. Contudo, a partir de 10 de setembro de 1997, com a publicação da Lei 9.494, resultante da Medida Provisória n.º 1570-4, a pacificação de conceitos acerca dos limites subjetivos da coisa julgada nas ações referentes a direitos metaindividuais foi alterada por completo, sendo a referida lei responsável por inúmeras indagações sobre a matéria.

Isso porque a Lei 9.494/97 modificou a redação do artigo 16 da Lei 7.347/85, Lei da Ação Civil Pública, passando a haver, portanto, uma limitação à extensão subjetiva do julgado nas demandas coletivas, já que, pela nova redação conferida ao artigo, as eficácias da sentença somente atingem aqueles substituídos domiciliados no órgão prolator da decisão.

Posteriormente, uma outra Medida Provisória, a MP 2180-35, de 24 de agosto de 2001, incluiu novo dispositivo à Lei 9.494/97, o artigo 2º - A, estabelecendo que a sentença civil prolatada em demanda coletiva abrange apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator.

Tal norma também gerou limitação à extensão subjetiva da sentença trânsita em julgado, o que levou alguns juristas, inclusive, a taxar os dois artigos – 16 da Lei 7.347/85 e 2º- A, da Lei 9.494/97 – como inconstitucionais e ineficazes.

Adiante, trazemos as principais críticas ao cabimento das medidas tomadas pela Lei 9.494/97.

4.3.1 (Des)Cabimento: críticas à alteração do artigo 16 da Lei 7.347/85

Ao instituir limites territoriais à extensão subjetiva da coisa julgada, o legislador foi de encontro a todo o regramento já existente acerca da tutela de direitos metaindividuais, bem como desconsiderou todo o objetivo da defesa desses direitos, que é proteção aos direitos de toda uma coletividade lesada, de modo molecular e não atomizado.

A criação da lei em comento, segundo nossa percepção, contribuiu para o que o jurista Luigi Ferrajoli denomina de "inflação legislativa", em que a cada dia são editadas normas em total dissonância com os princípios constitucionais vigentes.

Frisamos que normas como a Lei 9.494/97, as quais vêm contribuir para o retrocesso da efetividade da tutela jurisdicional coletiva, levam alguns operadores do direito a referirem-se à crise do Estado Social, embora a maioria da doutrina entenda como descabida tal posição.

Sobre o tema, vale transcrevermos a posição de Sílvio Dobrowski, à qual aderimos de pronto, principalmente por sermos defensores da perpetuidade do Estado do Bem-Estar Social:

A constatação de que as instituições não funcionam com a eficácia desejável, de modo algum justifica, que se pense em descartá-las, na linha sugerida pelas propostas sistêmica e neoliberal. Isso equivale a desprezar a experiência duramente acumulada no curso da História [...]. Os equívocos da razão não bastam para afastá-los da direção das relações humanas. Ao contrário, é preciso reconhecer os erros e tentar corrigi-los [...]. É preciso aperfeiçoar a ordem jurídica, mondar os excessos e reparar as falhas do Estado Social, e proceder, ainda, à adaptação da Constituição às realidades da nossa época, preservando a sua força regulatória.

Para nós, portanto, o problema não está com o paradigma estatal existente, e sim com determinados problemas criados ao seu redor, como a Lei 9.494/97, que se afasta do modelo social e desnatura a tutela coletiva de direitos. Mas, também devemos lembrar que, como o mundo jurídico ainda se adapta ao Estado Social, algumas falhas são compreensíveis, embora caiba aos estudiosos do direito apontá-las, a fim de corrigi-las.

Assim, além das críticas já exaradas, cumpre gizar que, segundo Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, a nova redação dada ao artigo 16 pela Lei 9.494/97 é inconstitucional e ineficaz. Inconstitucional por ferir os princípios do direito de ação (art. 5º, inciso XXXV), da razoabilidade e da proporcionalidade e porque o Presidente da República a editou por meio de medida provisória, sem que houvesse autorização constitucional para tanto, pois não havia urgência, nem relevância, requisitos exigidos pelo artigo 62 da Constituição Federal de 1988. É ainda ineficaz o novo artigo 16 porque a alteração, segundo os autores, ficou capenga, já que o artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor incide nas ações coletivas ajuizadas com fundamento na Lei da Ação Civil Pública, por força do artigo 21 deste diploma e do artigo 90 do Código de Defesa do Consumidor.

Diverge do pensamento acima, porém, o Desembargador Federal Amir José Finocchiaro Sarti, quando alega que a Lei 9.494/97, na parte em que alterou o artigo 16 da Lei 7.347/85, não peca por inconstitucionalidade, apesar de todos os seus inegáveis defeitos. Expondo sua tese, sustenta esse autor que, conforme se observa da leitura do artigo 5º, inciso XXXVI, a regra nele insculpida se dirige ao legislador ordinário, ou seja, ao legislar, é interdito ao Poder legiferante "prejudicar a coisa julgada", sendo esta a única regra sobre a matéria que adquiriu foro constitucional. Afirma o Desembargador que a Constituição não visa à proteção da amplitude do instituto da coisa julgada, pois caso isso ocorresse, a ação rescisória seria inconstitucional.

Assim, conclui Amir Sarti que a solução não está na inconstitucionalidade do dispositivo em questão, nem muito menos na sua pura e simples desconsideração, porque o juiz tem o dever de aplicar normas legais, mas, sim, na interpretação razoável de uma regra que só pode ser adequadamente aplicada em harmonia com o sistema no qual está inserida.

Todavia, discordamos do jurista, por entender que, mesmo que o artigo 5º, inciso XXXVI da Carta Magna, atinente à coisa julgada, possibilite mais de uma interpretação, ao menos sob o aspecto formal, é nítida a inconstitucionalidade da alteração trazida pela Lei 9.494/97, pois com certeza, não estavam presentes os requisitos de urgência e relevância que justificassem a edição da Medida Provisória n.º 1570-4.

Discorrendo acerca dos requisitos autorizadores da edição de medidas provisórias, Flávio Barbosa Quinaud Pedron afirma que a relevância deve ser entendida como insuperável e a urgência como inadiável.

Segundo o autor a relevância seria a categoria que possa levar à exceção do processo legislativo que ocorreria em casos de extrema necessidade, onde a falta de um comando legal pudesse levar a uma situação caótica, de desgoverno ou de grave abalo à paz social ou econômica, ou mesmo que pudesse comprometer os fundamentos do Estado, como a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Quanto à urgência, entendemos, com fundamento na posição do Juiz José Anselmo de Oliveira, citado por Flávio Barbosa Quinaud Pedron, que para ser editada uma medida provisória com base nesse requisito, devem estar presentes o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, pressupostos atinentes às ações cautelares que a esse conceito são emprestados.

Vale também mencionarmos o que diz Sílvio Dobrowolski acerca da enormidade de medidas provisórias que têm sido editadas em nosso ordenamento jurídico, sem que estejam atendidos os requisitos que autorizem a sua elaboração:

O Congresso é relegado a papel secundário – e, pior, se acomoda a essa situação – vindo a legislação a ser produzida por meio de medidas provisórias, interminavelmente repetidas, denotando, evidente desprezo pelo sentido razoável do Texto Maior, que só autoriza sua edição, em situações especiais.

Posto de lado o debate em torno da constitucionalidade do artigo 16 da Lei 7.347/85, depois da alteração trazida pela Lei 9.494/97, devemos registrar que não divergem os juristas quanto à sua ineficácia.

Efetivamente, tanto o artigo 21 da Lei da Ação Civil Pública, quanto o artigo 90 do Código de Defesa do Consumidor prevêem uma interação entre os dois diplomas, o que indica que tais regramentos devem ser lidos em conjunto, até porque as eficácias da coisa julgada em cada tipo de tutela de interesse transindividual somente podem ser entendidas a partir da leitura do comentado artigo 103 da Lei 8.078/90.

Portanto, como sustenta Ibraim Rocha, a viabilidade desta alteração do sistema somente poderia ocorrer também com a mudança do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor, o que ainda não foi feito pelo legislador pátrio. Desse modo, concluímos que o artigo 16 da Lei 7.347/85 continuará sendo ineficaz até que o Código de Defesa do Consumidor sofra as alterações necessárias.

Aos argumentos acima expostos, sobre a inconstitucionalidade e ineficácia do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, agregam-se ainda, outras críticas.

A principal censura em relação às modificações trazidas pela Lei 9.494/97 está no fato de tal diploma legal confundir jurisdição e competência com limites subjetivos da coisa julgada.

Como expõem Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery:

[...] o Presidente da República confundiu limites subjetivos da coisa julgada, matéria tratada na norma, com jurisdição e competência, como se, v.g., a sentença de divórcio proferida por juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro e nesta última comarca o casal continuasse casado! O que importa é quem foi atingido pela coisa julgada material. [...] Confundir jurisdição e competência com limites subjetivos da coisa julgada é, no mínimo, desconhecer a ciência do direito. Portanto, se o juiz que proferiu a sentença na ação coletiva tout court, quer verse sobre direitos difusos, quer coletivos ou individuais homogêneos, for competente, sua sentença produzirá efeitos erga omnes ou ultra partes, conforme o caso [...] em todo território - e também no exterior [...]

Sobre o pronunciamento dos autores acima, Rodolfo de Camargo Mancuso tece alguns comentários, os quais ilustram nitidamente a questão. Segundo o autor, na medida que, pelas regras de competência o órgão julgador seja competente, parece-nos que não será possível mitigar a projeção dos limites subjetivos da coisa julgada, invocando-se elementos de ordem geográfica ou de organização judiciária. Como a coisa julgada não é uma substância, e sim uma qualidade que se agrega ao comando do julgado, a expansão subjetiva dessa coisa julgada dar-se-á até onde se encontre o interesse que constitui objeto da demanda coletiva, e bem assim em face de todos os sujeitos concernentes a esse interesse.

Assim, não pode a sentença ficar limitada a uma área geográfica, caso os limites subjetivos da coisa julgada atinjam substituídos que se encontrem além da jurisdição do magistrado responsável pela prolatação do julgado, inclusive porque tal situação geraria decisões conflituosas sobre a mesma causa de pedir.

Nesse sentido também se manifesta Hugo Nigro Mazzilli sustentando não ser possível confundir a competência do juiz que julga a causa com os efeitos que uma sentença pode produzir fora da comarca em que foi proferida. Exemplificando a questão, o autor menciona que, uma sentença que proíba a fabricação de um produto nocivo que vinha sendo produzido e vendido em todo o País, ou uma sentença que proíba o lançamento de dejetos tóxicos num rio que banhe vários Estados – essas sentenças produzirão efeitos em todo o País, mas isso não se confunde com a competência para proferi-las, que deverá ser de um único juiz, e não de cada um dos milhares de juizes brasileiros.

Segundo o autor, admitir solução diversa levaria a inúmeras sentenças contraditórias, exatamente contra os fundamentos e finalidades da defesa coletiva de interesses metaindividuais.

Outra crítica à modificação do artigo 16 pela Lei 9.494/97 está no fato de não existir solução expressa para os casos nos quais o dano for regional e, portanto, de competência de mais de órgão prolator.

Outrossim, clara está a incoerência da lei ao limitar as eficácias de sentença trânsita em julgado a determinado território, não obstante o julgado refira-se a interesses indivisíveis, como são caracterizados os interesses metaindividuais.

Críticas à parte, as quais, como vimos, são inúmeras e todas com fundamento jurídico, importa sabermos que o artigo 16, embora ineficaz, continua a ter vigência, situação que, ao que tudo indica, se perpetrará, até que a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor sejam modificados.

Devemos, porém ressaltar, que, como sustenta Luigi Ferrajoli, "vigência" e "validade" não se confundem.

Segundo o jurista peninsular, existem, no mundo jurídico, normas formais sobre competência ou sobre o procedimento de criação de leis, e normas substanciais, como o princípio da igualdade e os direitos fundamentais. Por tal razão, pode ocorrer de uma norma ser formalmente vigente, mas ser inválida e, como tal, suscetível de anulação.

Sintetizando seu pensamento, Luigi Ferrajoli afirma:

Todos os direitos fundamentais – e não só os direitos sociais e os deveres positivos por ele impostos ao Estado, mas também os direitos de liberdade e as correspondentes proibições negativas que limitam a intervenção daquele – equivalem a vínculos de substância e não de forma, que condicionam a validade substancial das normas produzidas e exprimem, ao mesmo tempo, os fins para que está orientado esse moderno artifício que é o Estado Constitucional de Direito.

4.3.2 Análise crítica à inserção do artigo 2º - A

Assim como a nova redação do artigo 16 da Lei 7.347/85 causou polêmica entre os juristas, também a inserção do artigo 2º - A, na Lei 9.494/97, incluído pela Medida Provisória 2180 – 35, de 24 de agosto de 2001, foi alvo de inúmeras críticas porquanto, seguindo a idéia instituída no artigo 16, também estabeleceu limites territoriais à extensão subjetiva da coisa julgada nas demandas coletivas.

Com efeito, da leitura do artigo 2º - A extraímos que apenas aqueles lesados que tenham domicílio fixado no âmbito da competência do órgão prolator, na data da propositura da ação, serão atingidos pela coisa julgada, criando-se, desse modo, uma nova regra a respeito dos limites subjetivos da coisa julgada, a qual nos parece completamente inválido e ineficaz, ao espelho do artigo 16 comentado alhures.

Segundo a maioria dos juristas, dentre eles Renato Rocha Braga, o referido dispositivo sofre de flagrante inconstitucionalidade, ao ter criado critério totalmente absurdo para a extensão subjetiva da coisa julgada, violador dos mesmos preceitos apontados nos comentários ao artigo 16. Para o autor, essa medida provisória apenas veio a limitar os direitos dos lesados, fato não autorizado pelo constituinte.

O autor acima mencionado, ainda referindo-se ao absurdo criado pelo legislador através da Medida Provisória 2180-35, ilustra seu posicionamento com algumas considerações práticas. De acordo com Renato Rocha Braga, esse critério, a par de ser cientificamente insustentável, gera vários inconvenientes e exemplifica:

[...] Tício é empregado de determinada fábrica por 20 anos, tendo domicílio na comarca de sua sede (Rio de Janeiro) por igual tempo, se aposentando em 05/06/99, mudando no dia seguinte, com sua família, para São Paulo; Caio é um funcionário novo, tendo sido admitido em 01/06/99; é intentada uma demanda em face desta fábrica, em 11/06/99, por violação aos direitos trabalhistas de seus empregados, violações estas que remontam há mais de 15 anos. Pela lógica da medida provisória, Tício não será abarcado pela sentença, pois deixou de ter domicílio na comarca do órgão julgador cinco dias antes da demanda ser proposta. já Caio, que sofreu poucas lesões, em virtude do exíguo tempo em que está empregado, será beneficiado.

Continuando sua explanação, Renato Rocha Braga menciona outro inconveniente possível de ocorrer com a aplicação do artigo 2º - A Segundo o doutrinador, nas mesmas condições de tempo e lugar do exemplo anterior, se tivéssemos um trabalhador com dezenove anos de idade, domiciliado na comarca do órgão julgador ao tempo da propositura da ação, mas com pais residentes em outra Comarca (São Paulo), o referido trabalhador não seria beneficiado pela coisa julgada, pois, em conformidade com o artigo 26, caput, do Código Civil, os incapazes têm por domicílio o de seus representantes.

Como vemos, portanto, gritantes são os inconvenientes gerados pela aplicação do artigo 2º - A, trazido pela Medida Provisória 2180 – 35.

Ademais, outras questões ficam sem solução se aplicarmos o artigo supramencionado, como a possibilidade de pluralidade de domicílios, prevista no artigo 72, parágrafo único, do novo Código Civil e ainda, a falta dos requisitos de relevância e urgência exigidos para a edição de uma medida provisória.

Por fim, devemos gizar que o parágrafo único do artigo 2º - A também traz outra aberração legislativa, censurada pela doutrina e pelo Supremo Tribunal Federal, não obstante, segundo afirma Hely Lopes Meirelles, o Superior Tribunal de Justiça venha considerando tal norma aplicável aos mandados de segurança coletivos.

Como as demandas coletivas são caracterizadas pela substituição processual – legitimação extraordinária – é totalmente descabido falarmos em autorização da entidade associativa e relação nominal e endereços dos associados.

Na argumentação de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery as exigências do parágrafo único do artigo 2º - A somente se justificariam se estivéssemos diante de hipótese de representação processual. Segundo os autores, quando a associação "representa" seus associados, agindo em nome deles e não em nome próprio, deve estar expressamente autorizada e mencionar, nominalmente, quais os associados que estão sendo representados. Quando, ao contrário, propõe ação em nome próprio, está na condição de legitimado ativo para a condução do processo, sendo dispensáveis a autorização e a relação nominal com endereços.

Como vemos, portanto, a Lei 9.494/97 marcou o cenário jurídico pátrio com algumas inovações totalmente descabidas e impertinentes, conflitando com entendimentos já pacíficos sobre limites subjetivos da coisa julgada nas demandas coletivas e desnaturando a própria tutela coletiva.

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Sobre a autora
Silvia Resmini Grantham

Advogada. Professora de Direito Constitucional e Direito Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRANTHAM, Silvia Resmini. Os limites subjetivos da coisa julgada nas demandas coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4186. Acesso em: 20 abr. 2024.

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