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Direito internacional público e a segurança internacional:

metáforas imagéticas pós-intervencionismo no Iraque

01/06/2003 às 00:00
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Na luta, encontrarás o teu direito."

Rudolf von Ihering

Como se tivesse sido originária de uma lei natural ulterior (lex naturalis), as palavras do jusfilósofo alemão Rudolf von Ihering, autor de A Luta Pelo Direito, constituem presságio do funcionamento hodierno do sistema de segurança internacional à luz dos paradigmas do Direito Internacional Público. Cenário internacional este que, após o intervencionismo anglo-americano no Iraque à revelia da Organização das Nações Unidas (ONU), criada pela Conferência de São Francisco de 1945, se encontra marcado pelo sensível desprestígio e enfraquecimento deslegitimante. Com a negação e o desrespeito das instâncias multilaterais de resolução de conflitos, notadamente por meio do Conselho de Segurança desta Organização [1], com seus quinze Países-Membros, surge a tese de ascensão do realismo e de um estado da natureza hobbesiano de segurança coletiva internacional, quase institucionalizando um multilateralismo belicoso e de exceção. A anarquia internacional toma lugar do funcionamento lúcido e necessário da Comunidade Internacional pelo DIP e pela legitimação da ONU. [2]

Debatendo sobre a relação direito-força, balança e espada, Rudolf von Ihering, em sua já citada magnun opus, dá à insegurança da conjuntura mundial uma expressiva lição: "A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito". [3] Inspirada no pensamento do eminente jurista, o presente artigo enseja analisar, genericamente, dentro de uma perspectiva de alusão metafórica e imagético-simbolista, a dinâmica decisória e de funcionamento do Sistema de Segurança Internacional estruturado do Conselho de Segurança da ONU e demais legislações produzidas pelo Sistema da ONU.

O sistema de segurança coletivo consubstanciado nos Capítulos VI e VII da Carta da ONU (1945) [4], apresentou-se ao ambiente internacional, devastado por duas grandes guerras, como a possibilidade do estabelecimento da paz global duradoura, orientada pela solução pacífica de controvérsias, salvaguardada a utilização da força apenas nos casos de legítima defesa individual ou coletiva. Como instancia interna do Organismo, responsável pela resolução das desavenças, criava-se o Conselho de Segurança e como instrumentos garantidores da aplicação das decisões desse órgão previa-se a imposição de sanções econômicas, político-diplomáticas e, em casos extremos e ameaçadores da paz coletiva, de ações militares. Convém ressaltar, que a força aqui referida é a força legítima, defensora da supremacia do Direito Internacional – é a espada a que se referia Ihering.

Seriamente abalado durante o período da chamada "guerra fria", em que o mundo dividido entre o bloco socialista e o capitalista assistia a uma corrida armamentista sem precedente histórico, responsável pela proliferação de armas de destruição em massa que, ainda hoje, põem em risco a existência humana, o sistema de segurança coletivo, parecia ganhar nova força quando da derrocada do bloco soviético no começo dos anos de 1990. John Lewis Gaddis propõe analisar o contexto imediatamente após o rompimento da rigidez bipolar como sendo o de "substitucionismo ambivalente". As forças comunismo-democracia cederam lugar para as forças integração-fragmentação, de acordo com o internacionalista. [5]

O mundo pós-guerra fria, em um primeiro momento, digamos até a primeira metade da década de noventa, sugeria a emergência de uma ordem internacional multipolarizada, unida por um grande mercado globalizado em que a distinção entre os atores internacionais é manifestada por suas singularidades civilizacionais em detrimento das divisões político-econômicas que marcaram o momento histórico anterior. Dentro dessa perspectiva, o fim da "paz fria" significaria uma revalorização das relações multilaterais e o conseqüente fortalecimento da ONU como principal reguladora dos conflitos entre as nações do mundo re-unificado.

Não foi, contudo, o que aconteceu, de acordo com os postulados paradigmáticos do DIP e das Relações Internacionais. Com o esfacelamento de sua antiga rival socialista, os EUA emergem como única superpotência mundial, detentora de um poder bélico e econômico-financeiro impar. Não somente poderio bélico e econômico-financeiro, mas também cultural e geodemográfico. Tal supremacia começaria a deixar suas marcas no campo político-diplomático, em especial na redefinição do papel da ONU e do conceito de segurança coletiva. Em artigo anterior [6], proponho a analisar mais cautelosamente essas rubricas do poder internacional, onde formulei, de forma abrangente, um índice de poder internacional (PI) que forneço abaixo:

PI = PPD + PEF + PC + PM + PG

A fórmula do poder internacional acima mostra o caráter multidimensional do poder como elemento regulatório do funcionamento do sistema de segurança internacional durante boa parte da décado de noventa. A década de 1990, sem dúvida alguma, foi de grandes transformações no âmbito do poder internacional. Do fim do bipolarismo ascendeu o sistema unimultipolar, a que se refere Samuel Huntington, marcado pela existência de uma só superpotência, a norte-americana, e uma série de outras potencias secundárias, de influência eminentemente regional. O peso do poder dos EUA, mais do que nunca principal contribuinte financeiro e militar para a estrutura da ONU e agora livre de qualquer contraponto, afirmar-se-ia com maior intensidade no Conselho de Segurança da ONU a partir de 1991, quando da Guerra do Golfo. Entre os anos de 1991 e o corrente ano de 2003, o cenário internacional assistiu ao desenvolvimento de uma política externa norte-americana cada vez menos crente na prática do multilateralismo e cada vez mais voltada para a atuação unilateral, principalmente no plano da segurança mundial.

Tal evolução torna-se mais intensa quando dos ataques terroristas a alvos norte-americanos, em 11 de setembro de 2001, transformando a tendência ao isolacionismo e descrédito nas instâncias internacionais de resolução de conflitos, fenômeno que vinha se consolidado ao longo da última década, em postura oficial do Estado.

A raison d’état, doutrina formulada pelo Cardeal Richilieu durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), a qual subordina todos os demais valores à necessidade de segurança externa do país perante um conflito de interesses, passa a ser a tônica da atuação externa dos EUA. A criação do conceito de guerra preventiva, usado para justificar a intervença anglo-norte-americana ao Iraque em 2003, é um claro exemplo da aplicação das idéias do citado Cardeal francês.

A invasão ao Iraque liderada pelos EUA em março do corrente ano, à revelia do CS da ONU e tendo apoio (discreto, tácito ou mesmo expresso, porém não insignificante) de países como Espanha, Austrália, Portugal inter alia, mostra que as palavras idealistas de Jean-Jacques Rousseau que a "força não faz o Direito" podem ser deturpadas para a conveniência da dependência geoeconômica dos recursos naturais não-renivávies (leia-se combustíveis fósseis) de países hegemônicos. Essa conjuntura de unilateralismo truculento e arbitrário vem tornando clara a necessidade de se rediscutir e redefinir seu papel como guardião da paz e da segurança coletiva.

Ecoam mais fortes as aclamações por um Conselho de Segurança mais amplo, democrático e legitimamente representativo em que o poder decisório possa ser estendido a um número maior que os cinco atuais membros permanentes, congregando nações que por sua liderança regional possam representar as posições das diversas localidades e culturas do mundo, democratizando, legitimando e fortalecendo, dessa forma, a resolução dos conflitos na esfera global. [7]

Além dessa ampliação do poder decisório em seu Conselho de Segurança, o grave episódio de 2003 mostrou a necessidade do incremento da autonomia da ONU, no que tange seu efetivo militar e seus recursos financeiros. Para que possa autuar de forma isonômica e efetivar suas decisões na proteção da segurança coletiva é preciso refletir acerca da importância de um exército próprio e permanente do organismo e de uma contribuição econômica mais bem distribuída entre os Estados-Membros da ONU, de modo a evitar a hegemonia e interferência de algum na atuação do mesmo.

As metáforas imagéticas aqui propostas no que concerne ao atual momento de debilidade sistêmica, à luz da citação de Ihering, são a de três termos gregos clássicos, os quais relaciono a seguir: "axiom", do grego, significando princípio irredutível, muito também utilizado como valor não provado e aceito, surgindo então o termo "axiologia"; "crato", do grego clássico, significando poder, derivando então o termo "cratologia"; e por fim, polemos, igualmente do grego, significando guerra, batalha, consequenciando o termo "polemologia".

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As metáforas imagéticas do atual sistema de segurança internacional que aludo no presente artigo dizem, conclusivamente, a respeito da substituição do axiom (valores pétreos) dos pressupostos jusnaturalistas pela cratologia, ou seja a força bruta e acrítica. A síntese dialética do axiom (valoração ausente e carente) com o crato (poder de obstrução e intervenção) surge, infelizmente, o polemos, isto é, a polemologia, ou o estudo científico das causas e conseqüência das guerras entre Estados.

A beligerância no Iraque cria sérios precedentes não somente no plano político-diplomático, mas também para o plano da geopolítica do Direito Internacional da Segurança Internacional pela ação deliberadamente motivada pela raison d’état de qualquer potência central ou potência média. Ademais, essa ação fragiliza a atuação da ONU como organismo internacional encarregado da manutenção da ordem, justiça, estabilidade internacionais nesses primeiros momentos do século XXI. [8] Faz-se necessário, dessa forma, rediscutir o papel, os atributos e o alcance da ONU e de seu Conselho de Segurança nessa nova e emaranhada (des)ordem mundial. A iniciativa recente do Presidente Lula além de emblemática é louvável e já encontra respaldo e apoio de demais líderes no sentido de se convocar uma ampla conferência de alto nível para, justamente, re-equacionar todas essas variáveis para um futuro mais mutuamente benéfico e menos sombrio para os países centrais e periféricos.

Nesse contexto, poder-se-ia, igualmente, recorrer à alusão da espada e da balança na magistral literatura de Ihering ou ainda da literatura clássica da teatrologia de Sófocles sobre as primeiras alusões do Direito Natural. A imagética permanece, malogradamente, de que a força bruta está prevalecendo e que os primados dos valores na koinonia (termo "comunidade" no grego) estão esquecidos propositalmente. Deve-se, na luta contínua, buscar preservar, ou melhor, resgatar os direitos inalienáveis dos Estados-Nações menos privilegiados e representados por justiça, imageticamente perpetuada nos olhos fechados com a balança dos valores à tolerância, ao respeito, à integridade e à obediência irrestrita a legitimidade da Organização das Nações Unidas.


Notas

01. Carta das Nações Unidas e o Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Nova Iorque, Departamento de Informações Públicas, 1993.

02. Verificar a seminal contribuição do politólogo australiano sobre a matéria em: Bull, Hedley. A Sociedade Anárquica: Um Estudo da Ordem Política Mundial. São Paulo, Editora da UnB-IPRI-Imprensa Oficial do Estado, 2002.

03. Ihering, Rudolf von. A Luta Pelo Direito. São Paulo, Forense, 1992.

04. Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Opus Cit.

05. Goldstein, Joshua. International Relations. Nova Iorque, Harper Collins, 1994.

06. Consultar: Castro, Thales. "Hegemonia Estratificada: Análise do Poder Mundial à Luz da Gestão Política." Scientia Una. Olinda, FOCCA, 2000.

07. Villa, Rafael Antonio Duarte. Da Crise do Realismo à Segurança Global Multidimensional. São Paulo, AnnaBlume – FAPESP, 1999.

08. Saraiva, José Flávio Sombra. Relações Internacionais: Dois Séculos de História. Brasília, IBRI-FUNAG, 2001.

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Sobre o autor
Thales Cavalcanti Castro

professor adjunto da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Faculdade Integrada do Recife (FIR), doutor em Ciência Política pela UFPE, doutorando em Direito (JD) pela Texas Tech University School of Law (EUA), mestre em Ciência Política (Public Affairs) pela Indiana University of Pennsylvania (EUA), bacharel em Relações Internacionais pela Indiana University of Pennsylvania (EUA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Thales Cavalcanti. Direito internacional público e a segurança internacional:: metáforas imagéticas pós-intervencionismo no Iraque. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4187. Acesso em: 22 nov. 2024.

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