I – OBJETIVO DO ESTUDO
É reconhecido o ensinamento de Pontes de Miranda: “a ação dos arts. 106-113, do Código Civil é ação de anulação: a sentença tem eficácia constitutiva-negativa no tocante à existência do ato jurídico; era anulável o ato jurídico, foi anulado e passa a não existir”. O mestre alagoano acentua que a revogação dos atos do falido apenas torna ineficazes os atos, não os anula: os atos são válidos e válidos permanecem, salvo posterior anulação, segundo os princípios das anulabilidades. Diz mais:
“Na execução contra o devedor, não é possível oporem-se – no direito brasileiro – embargos de terceiro com alegação de fraude contra credores, embora se possa alegar com defesa...”
O estudo presente parte da ilação de que trata-se de ação de anulação que nasce ao titular do crédito prejudicado pelo ato do devedor, que violou dever jurídico (o dever de não dispor do patrimônio a ponto de prejudicar os credores já existentes, que contam com a estabilidade patrimonial, ação civil). Entretanto, necessário será reconhecer seu caráter não anulatório na medida em que o ato, em verdade, é ineficaz, voltando a estudar, data venia, o caráter constitutivo-negativo da ação pauliana, antes regida pelos artigos 106-113 e, hoje, com a Lei n.° 10.406 (“Novo Código Civil”), pelos artigos 158 a 165 sem esquecer-se que o 768 do Código de Processo Civil fala de ação anulatória consorcial, permitindo-se a legitimação extraordinária para qualquer credor. O Novo Código Civil, em seu art. 159, diz que “serão anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante”. Por sua vez, diz no art. 158, que substitui o vetusto art. 106 do Código Civil, que “os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários como lesivos dos seus direitos”.
II – FRAUDE A CREDORES NO DIREITO ROMANO
No direito clássico, havia a restitutio in integrum, com a actio rescissoria, a favor do bonorum emptor, e o interdictum fraudatorium, que se dava a qualquer credor, de cunho condenatório. A ação pauliana do Digesto, na orientação de Fischer, encampada por Pontes de Miranda, é ação pessoal . Em Butera, os remédios revocatórios, no direito romano, eram: a pauliana, a actio in factum, o interdictum fraudatorium, a restitutio in integrum e a utilis rei vindicatio. Diz Dinamarco que foi um certo pretor Paulo quem incluiu dito remédio em seu édito e daí o nome. Tal a lição de Butera. O que adquiria ao fraudador, devedor, havia de conhecer a fraude, para que contra ele pudesse ir a ação revocatória (L. 10, pr. sciente te). Diverso era o consilium fraudis, se nos atos jurídicos se apanha a intenção. No direito romano, o adquirente era condenado a restituir, a retransferir os direitos reais, inclusive as ações que lhe nasceram, e, se recebesse o pagamento antecipado, devia restituir o commodum medii temporis. Se renunciava ao grau de hipoteca, permitia-se reinstalar-se no grau. Esses conceitos são importantes para os requisitos da pauliana moderna em nosso sistema jurídico.
III – EVENTUS DAMNI, INSOLVÊNCIA, SCIENTIA FRAUDIS E CONSILIUM FRAUDIS. A QUESTÃO DA INEFICÁCIA
O êxito da ação pauliana depende da configuração do prejuízo sofrido pelo credor que a propõe. Além da prova do prejuízo necessário à demonstração da insolvência (deficit patrimonial) que afeta a garantia de exequibilidade do crédito. O eventus damni (dano) é contemporâneo do ato que se impugna como fraudulento. Não se exige o consilium fraudis, na lei civil, conhecimento que tenha ou que deva ter o devedor do seu estado de insolvência e das consequências do ato lesivo para os credores. O mestre Pontes de Miranda assim conclui:
“O legislador civil satisfez-se, quanto aos atos a título gratuito, com a alegação e prova do estado de insolvência e do eventus damni, e, quanto aos atos jurídicos a título oneroso, com esses pressupostos e a scientia fraudis (por parte do terceiro adquirente).”.
Essa lição é acompanhada pelo TJSP, Ap. 26.191-1, Rel. Des. Alves Braga, Ac. 16/9/1982, RT 568/44. Objetiva-se o reconhecimento da ineficácia do negócio jurídico. Assim pensam: Nelson Hanada, Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Jr. Com isso ter-se-á grande consequência: a procedência da pauliana não levará ao cancelamento da transcrição no registro de imóveis e sim à averbação da decisão (art. 167, II, n.° 12, e 246 da Lei n.° 6.015/73). A sentença retira do negócio jurídico o efeito secundário consistente em suprimir a responsabilidade do bem pela obrigação do alienante perante ele. Essa a conclusão de decisões do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 2.ª C, Ap. n.° 283.667, j. 22-10-81, rel. Cândido Dinamarco, respeitando-se o princípio da continuidade registral, já que respeita-se a continuidade do registro (art. 195, Lei n.° 6.015/73). Não há vício de invalidade, carência intrínseca do negócio. Há ineficácia, um impedimento de caráter extrínseco. O mestre alagoano bem fazia a distinção entre inexistência, invalidade e ineficácia. Critica, categoricamente, Francesco Messineo (Instituzioni di Diritto Civile, I, 220) que não chegaria a compreender que havia diferença entre inexistente e nulo. O que não existe nem é válido, nem inválido, não entrou no mundo jurídico. O nulo é o desconstituível, que não precisa de desconstituição de efeitos. Na invalidade, falta a idoneidade para produzir os efeitos essenciais do tipo, de forma irremovível. Na ineficácia, o ato tem elementos essenciais e pressupostos em ordem, obstando-se à eficácia uma circunstância de fato a ele extrínseca. A inexistência é circunstância fenomenal no plano do ser; na nulidade faltam ao ato um dos seus requisitos essenciais (incapacidade, forma adequada). Há, pois, para a fraude contra os credores reconhecida ineficácia relativa do negócio, ineficaz com relação aos credores, pois o ato alienatório não tem efeitos em face dos credores. Essa a característica dessa ação pessoal: reconhecer a ineficácia do negócio, como os velhos comercialistas reconhecem na revocatória para a falência e o próprio Pontes de Miranda reconhecia para aquele remédio falencial. Presente a scientia fraudis, a prova da insolvência e do eventus damni (alienação onerosa), há previsão de ajuizamento de ação em 4 (quatro) anos do negócio jurídico, o qual a doutrina (art. 178, § 9.°, V, b) prevê como de decadência, direito potestativo. Nos negócios gratuitos não precisa ser provada scientia fraudis. O Código Civil não exigiu o concilium fraudis, pois o tem como presumido no comportamento do devedor que cria ou agrava a insolvência. Reconheceu o Superior Tribunal de Justiça que tudo se resume à ineficácia em relação a terceiro (Ap. 59.048-SP, TFR e REsp 5.307-0-RS, Rel. Min. Athos Gusmão Car-neiro, Ac 16/6/92, Lex – JSTJ 47/113).
IV – NATUREZA CONSTITUTIVA DA SENTENÇA
Parece-nos que Cândido Rangel Dinamarco considera tal sentença constitutiva, por ser considerado que a responsabilidade só se efetiva mediante o exercício bem-sucedido da ação pauliana, havendo a grande diferença entre a fraude à execução, em que o prejudicado é o Estado-Juiz, e onde há ineficácia originária do negócio, e a fraude a credor, onde o credor prejudicado tem o ônus de postular a retirada da eficácia secundária dele, de modo que “por força de sentença constitutiva dada na pauliana, aquela responsabilidade excluída por força da alienação se restabeleça e ele possa, então, obter a penhora”. Ineficácia sucessiva e não originária para o caso. Essa é a natureza jurídica. Ajuiza-se uma ação constitutiva. Os critérios propostos por Agnelo Amorim induzem reconhecimento de que serão sujeitas à decadência as ações constitutivas, porque terá havido decadência. É o caso da sentença revogatória que produz nas relações dos interessados uma modificação que é a revogação do ato, restabelecendo-se a responsabilidade do devedor e o débito. No entanto, Theodoro Jr. fala em sentença declaratória, não havendo desconsideração do ato fraudulento e, sim, reconhecimento de sua inoperância.Data venia, a sentença declara a ineficácia relativa do negócio, pois, em todas as sentenças, nota-se sua declaratividade. A responsabilidade excluída, ou força da alienação, é restabelecida pela sentença. Não se trata, pois, de mera declaração de que o negócio jurídico em pauta não prejudica terceiros, como pensam, data venia, Nelson Hanada e Sahid Cahali.
V – LEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA DA AÇÃO PAULIANA
Legitimado ativo é o credor prejudicado, abstraindo-se de qualquer garantia real que sirva de situação privilegiada. Legitimado passivo é o devedor, pois foi ele quem fraudou. Ao terceiro com scientia fraudis, dá-se legitimidade passiva, pois adquiriu o bem. O beneficiado pelo ato é legitimado passivo. É lição do mestre Pontes de Miranda:
“A ação de anulação pode ser proposta contra o devedor fraudador e o adquirente ou beneficiado; e contra os sub-adquirentes ou sub-beneficiados.”.
Só os credores que assim eram ao tempo da fraude estão legitimados. Assim era com o art. 106 do velho Código. Data venia não se entenda haver necessidade de litisconsórcio necessário entre o fraudador e o adquirente, são litisconsortes passivos necessários pela letra da lei (velho, art. 109 do CCB) e pela natureza da relação jurídica formada. O devedor é réu na pauliana. Na Alemanha (KO, 139; RanFG, 330), o réu deverá ser não o devedor, mas o terceiro que com ele negociou (adquirente) ou ainda o sucessor particular. Aqui a imposição é de lei.
VI – RECONHECIMENTO DA FRAUDE CONTRA CREDORES EM EMBARGOS DE TERCEIROS
Na doutrina nacional, não entendem pelo reconhecimento da fraude contra credores nos embargos de terceiro: Rangel Dinamarco (RJTJSP, 97:8-31); Nelson Néry Jr. (Revista de Processo, 23:90); Arruda Alvim (Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo de Conhecimento, Revista dos Tribunais, 1972), dentre outros. Admite o reconhecimento: Nelson Hanada (Da insolvência, p. 101). Uma terceira corrente delineada por Lauro Laertes de Oliveira admite reconhecimento, como questão prejudicial, nos embargos de terceiro. Data venia, a ação própria para apreciar o vício de fraude a credores é a pauliana (REsp n.° 24.311-0, Rel. Min. Cláudio Santos, Ac. de 8/12/93, DJU de 22/3/93, pg. 4538 e REsp 27.903-7/RJ, Rel. Min. Dias Trindade, DJ 22.3.93, p. 4.540). Ratifica-se posição do Pretório Excelso, no RE 102.564, 1.ª turma, RTJ 111/449, além de outras decisões como RE 103.907-8-SP, RT 595/284. A Corte Especial do Colendo Superior Tribunal de Justiça retirou dúvidas:
“A fraude é discutível em ação pauliana, e não em embargos de terceiro. Precedentes da 1.ª, 3.ª e 4.ª turmas e da 2.ª Seção do STJ” (E. Div. no REsp 46, 192-2-SP).
É a ação pauliana, ação constitutiva-negativa, o remédio adequado, sendo a ineficácia da alienação fraudulenta superveniente, configurada pela sentença. Assim, não há que falar em embargos de terceiro utilizado pelo adquirente para comprovar a inexistência de fraude à execução.