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Responsabilidade civil na relação paterno-filial

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  1. Os critérios para a definição da autoridade e, conseqüentemente, da responsabilidade paterno-filial, sob o enfoque do jus-naturalismo moderno: o fundamento, a titularidade e a extensão.

Esta questão é, de certa forma, esboçada pelo jus-naturalismo, como mostra Alfred Dufour, no estudo antes mencionado, sendo certo que a partir de então ocorreram algumas inovações de peso na concepção jurídica da relação entre pais e filhos.

Pela primeira vez, provavelmente, apareceu no pensamento jurídico moderno a idéia de que os filhos não são propriedade dos pais, ainda que estejam necessariamente sob sua custódia e autoridade. Não há, entre esses autores do pensamento jurídico moderno, um perfeito consenso em todos os aspectos, mas há pontos em comum que permitem, imagino, uma visão sistemática do conjunto.

O que Dufour mostra em seu estudo é que há três critérios distintos para a definição da autoridade paterna, todos inovadores no sentido de superarem a antiga concepção de que a autoridade paterna é algo inquestionável, ou decididamente arbitrário. Esses três critérios, por terem uma significação moderna, podem soar estranhos à compreensão contemporânea; mas contêm elementos únicos para que a mesma autoridade paterna, e a responsabilidade nessa relação, seja repensada hoje em dia. Os critérios para a definição dessa autoridade, e conseqüentemente das condições da sua responsabilidade, são: o fundamento; a titularidade; a extensão.

A respeito do critério relativo ao fundamento da autoridade paterna, há três formas de expressá-la, segundo o jus-naturalismo moderno: uma fundamentação hierárquica, uma fundamentação convencionalista e uma fundamentação funcional.

A fundamentação hierárquica lembra, em parte, as concepções antigas e consiste na concepção de que a autoridade dos pais sobre os filhos no quadro da sociedade familiar tem como fundamento a natureza. Essa é a posição, por exemplo, de Hugo Grotius (autor do tratado Do direito de guerra e de paz, de 1625), que considera que os pais, por gerarem os filhos, têm direito sobre suas pessoas como quem tem direitos sobre qualquer coisa de que seja o criador. É, na verdade, a primeira das concepções da autoridade paterna desenvolvida dentro do jus-naturalismo e será, em conseqüência, muito combatida mesmo dentro de seus domínios, especialmente porque carrega ainda algo das concepções pré-jus-naturalistas.

Mas ela é inovadora na medida em que coloca como base para a concepção da autoridade a necessidade de um critério que seja racional. Para Grotius, esse critério racional é a natureza, mas a natureza que ele vê é semelhante à que a teologia via quando analisava a relação entre o homem e Deus: já que Deus é o criador dos homens, os homens são como objetos que pertencem a Deus; identicamente, já que os filhos são criação original dos pais, são como que objetos que lhes pertencem, ou cuja liberdade depende diretamente dos pais.

A linha jus-naturalista de pensamento manterá, nos dois séculos seguintes, a idéia de natureza como base para se pensar a liberdade e os direitos; mas trabalhará uma outra idéia de natureza, ou verá, a partir da mesma natureza, outras necessidades e outros direitos, seja para os pais, seja para os filhos.

A fundamentação convencionalista consiste numa idéia que se assemelha muito à concepção jus-naturalista do contrato social, e está presente, por exemplo, no Leviatã (1651) de Hobbes: da mesma forma como a vida em sociedade só existe porque os cidadãos consentem com sua existência, a vida em família também só existe porque os filhos assim o consentem. Mesmo que a família seja uma associação onde há uma certa relação de poder, não à toa muito assemelhada com a relação que um monarca tem com seus súditos, o que ocorre é que esse poder só existe porque os súditos, isto é, os filhos, o aceitam.

A idéia – ainda que bastante curiosa – é reveladora de um certo poder por parte dos filhos, coisa que talvez não se visse em Grotius, e que certamente não se via antes do jus-naturalismo. É uma ousadia gigantesca, em termos teóricos, conceber que há algo na vontade dos filhos que determina o poder dos próprios pais, ainda mais porque se trata de algo que não está sob o poder dos pais: a razão dos filhos, a vontade dos filhos.

Os pais, de fato, podem obrigar as ações dos filhos, mas não podem obrigar sua vontade, seu desejo. Da mesma forma como é inútil legislar a consciência na vida civil, na vida familiar essa tentativa também é completamente inútil. Isso significa, do ponto de vista de Hobbes que, se a sociedade familiar está estabelecida (e ela certamente vem de fatores naturais), é igualmente verdade que a sua continuidade e perpetuidade depende diretamente do arbítrio de quem está abaixo do poder. Ora, este é um modo de análise absolutamente novo na história do pensamento jurídico.

Na mesma linha, um outro autor do século XVII, Samuel Pufendorf, em seu tratado Do direito de natureza e das gentes (1672), dirá que a autoridade paterna é a autoridade mais antiga e a mais sagrada que se acha entre os homens. Ou seja, o que marca a validade dessa autoridade é um valor moral que Pufendorf atribui à autoridade paterna, porque, para ele, o sagrado não é aquilo que decorre do divino, mas é aquilo que é tido como moralmente válido.

É um passo que vai além da simples geração dos filhos como sendo base para a autoridade paterna (como era em Grotius), porque, segundo Pufendorf, o que determina a autoridade dos pais sobre os filhos não é a simples geração, mas a semelhança: há validade na autoridade desde que os filhos sejam semelhantes a nós e estejam, como nós, igualmente dotados daqueles direitos naturais comuns a todos os homens.

Vale dizer, a autoridade paterna tem um fundamento natural que envolve, agora, a moral. Num certo sentido, a autoridade depende, também, dos filhos, porque ela só é válida na medida em que os pais cumprem obrigações perante os filhos. Essas obrigações, se não são impostas pela vontade dos filhos (como talvez fosse o caso em Hobbes), ao menos são moralmente necessárias, e nenhuma autoridade pode ser concebida se não houver, reciprocamente, o cumprimento das obrigações por parte dos próprios pais.

Assim, segundo Pufendorf, a condição paterna envolve moralmente um encargo, do qual os pais não têm como escapar moralmente (ainda que possam dele escapar materialmente).

O que se extrai de Hobbes e de Pufendorf, se tomados em conjunto, é a revelação de que a paternidade, mesmo que envolva um poder sobre os filhos, envolve necessariamente um dever quanto aos filhos. Não importa se em função da vontade dos filhos (concepção de Hobbes) ou se em função da moralidade da própria relação (como em Pufendorf).

Em qualquer caso, não está mais nas mãos dos pais, apenas, todo o arbítrio sobre o valor dessa autoridade e a sua correspondente responsabilidade. Essa idéia é extremamente reveladora, porque mostra a fragilidade a que se pode expor a idéia de domínio dos filhos pelos pais. Esse domínio, sempre que os filhos não o desejarem porque é violento, ou sempre que for contrário à necessidade moral da relação, não pode ser legítimo.

Por seu turno, a fundamentação funcional consiste numa concepção do final do jus-naturalismo que tenderá a ser continuada após o jus-naturalismo moderno: ela considera que a sociedade familiar tem uma finalidade – o sustento e educação ou formação dos filhos – e que a autoridade é válida em função de cumprir essa finalidade.

Se a finalidade é natural ou voluntária, pouco importa; o que importa é que ela é irrecusável, e que nenhuma família poderia ser concebida sem que tivesse como finalidade conjunta a formação dos seus integrantes. Na divisão de poderes e funções dentro da própria família, aos pais cabe, como adultos e ainda como geradores, proverem a formação dos filhos, e a estes cabe obediência na medida em que recebem a formação ou dependem dela.

Caso não mais dependam, todavia, seja da formação, seja dos pais para receber a formação, nada mais de potestativo resta como elo para essa estrutura familiar. Quem formula bases teóricas para uma tal concepção, por exemplo, são jus-naturalistas do final do século XIX, como o inglês John Locke, e outros do correr do século XVIII, como Christian Wolff, Thomasius, Burlamaqui e Barbeyrac.

Uma passagem de Locke, nesse sentido, é esclarecedora: Os filhos, confesso, não nascem [em] estado pleno de igualdade, embora nasçam para ele. Quando vêm ao mundo, e por algum tempo depois, seus pais têm sobre eles uma espécie de domínio e jurisdição, mas apenas temporários. Os laços dessa sujeição assemelham-se aos cueiros em que são envoltos e que os sustentam durante a fraqueza da infância. Quando crescem, a idade e a razão os vão afrouxando até caírem finalmente de todo, deixando o homem à sua própria e livre disposição. (9)

Talvez esta seja, dentre as concepções elementares do jus-naturalismo em torno da relação paterno-filial, a mais próxima da contemporaneidade, mas é importante notar o que ela ainda mantém de essencialmente moderno: a relação de obediência e de autoridade se mantém na medida em que se mantém, antes de tudo, a relação de segurança e formação.

O que há de novo e importante nessa concepção, buscando compará-la, inclusive, com as demais que já eram esboçadas pela século XVII é o fato de que ela diz algo radical: a relação entre pais e filhos deve ser pensada em benefício, principalmente, dos filhos. E é a primeira vez em que isso é dito. E é porque a relação entre pais e filhos deve ser pensada sempre tendo em vista prioritariamente o benefício dos filhos, que aos pais cabe a educação deles, e a estes está legitimada a desobediência em caso de irresponsabilidade ou incapacidade dos pais.

Além da concepção da autoridade paterna a respeito da sua fundamentação, há ainda as concepções a respeito da titularidade e a respeito da extensão:

A respeito da titularidade, a vertente precípua de indagação quer verificar quem é titular do pátrio poder – o pai ou a mãe? Com esta questão, dá-se o retorno ao papel da mulher na família. Como aqui a referência, ainda que temporariamente, está sendo o pensamento moderno, ou seja, os séculos XVII e XVIII, é claro que não se encontrará uma defesa entusiasmada de uma igualdade de direitos para o homem e a mulher no que respeita a esse título. Pelo contrário, para a maioria dos pensadores modernos, o pai tem uma autoridade maior que a mãe, inclusive porque a mulher está sob sua autoridade, na mesma família.

Ainda assim, haveria uma defesa de igual titularidade entre homem e mulher na direção da família, entre os modernos? Sim, houve e ela está, por exemplo, em autores como John Locke e Thomasius, quer dizer, aqueles mesmos autores que, diante da indagação sobre o fundamento da autoridade, fixaram-no na obrigação que têm os pais para com a educação dos filhos. De modo semelhante, eles reconhecerão um igual direito entre o pai e a mãe, quanto à detenção da autoridade sobre os filhos, em função justamente desse igual poder, ou igual obrigação, para educar.

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É possível assim concluir, de uma forma curiosa, acerca da finalidade da autoridade dos pais: esta autoridade serve, segundo este pensamento, para indicar a obrigação, dos pais ou de um dos pais, de prover a educação dos filhos. É para isso que se forma a sociedade familiar e, talvez mesmo, a sociedade conjugal. De forma que a titularidade de nada vale se não for exercida como cumprimento de certas finalidades as quais, segundo tais autores, são naturais tanto do ponto de vista dos filhos quanto do ponto de vista dos pais. A educação, portanto, é o índice principal tanto da autoridade quanto da responsabilidade dos pais, que somente nessa hipótese se confundem evidentemente.

A respeito da extensão, como elemento identificador e qualificador da autoridade paterna, caberia indagar até onde e até quando ela se impõe sobre os filhos?

É uma questão delicada, na medida em que envolve a concepção dos filhos como sendo ou não propriedade dos pais. No pensamento jus-naturalista, essa idéia tende a se enfraquecer pela primeira vez, mas é ainda um referencial para sustentar a idéia de dependência dos filhos em relação aos pais. Não importa qual seja a fundamentação da autoridade paterna, ela sempre tem uma necessidade de justificação racional.

Mesmo no caso da idéia de uma fundamentação natural (que era a concepção de Grotius), em que os pais têm autoridade simplesmente por gerarem os filhos, já existe uma certa restrição do poder paterno, na medida em que esse poder necessita, mesmo aí, abandonar o arbitrarismo.

Existe, no pensamento moderno, sempre a idéia de uma finalidade, ou de uma necessidade, a governar a ação humana, e em especial a ação potestativa. Isso vale diretamente para a autoridade paterna, na medida em que o pai não pode ir contra as necessidades dos filhos, ou as finalidades coletivas dessa relação (como a educação).

Ora, mesmo no caso em que se considera, como em Grotius no início do século XVII, que só o pai é titular do poder paterno e que este lhe é devido tão somente por ser genitor, isso ainda não é suficiente para dar, a ele, direito de vida ou morte sobre os filhos. Essa restrição ao arbítrio paterno é constante na figura do pai.

Assim, na definição do direito equivalente, ou seja, do que está em poder do pai ou dos pais para arbitrar a respeito dos filhos, há uma tendência nesse pensamento moderno a desenvolver a idéia de que podem fazer o que não prejudicar a finalidade original da relação de família. Ou seja, os pais podem fazer o que quiserem com os filhos e com seus os bens, desde que não signifique isso uma diminuição de segurança dos próprios filhos. Ao contrário, o que cabe aos pais em termos de segurança dos filhos é justamente a sua formação em conjunto com a preservação de seus bens. Isso quando não significar, como em Locke, que a própria formação envolve ensinar aos filhos a preservar os próprios bens.

A extensão dessa autoridade dos pais equivale, portanto, a considerar que a autoridade continua enquanto continua o processo de formação dos filhos. A partir do momento em que os filhos já são dotados de experiência suficiente para se manterem sozinhos em suas próprias vidas, cessa concretamente a missão original e natural dos pais com respeito à sua formação e, também, com respeito à tutela dos seus bens.

Mas o resultado desse encerramento, em vez de significar uma libertação de um poder opressivo, pode significar, como coroação de toda a história familiar, a fundação de uma identidade entre pais formadores e filhos já formados, eqüalizados agora não só em seus direitos naturais, mas no que lhes cabe como direitos civis: ao final do processo de autoridade paterna, de formação familiar, de dependência dos filhos em relação aos pais, o que temos é uma outra associação, cujos laços mais fortes que os laços determinados pela vida civil a todos os cidadãos são justamente os laços do afeto, quando tais laços tenham tido a devida oportunidade de se formarem, ao longo de todo esse percurso.

A história das concepções de autoridade paterna não começara no pensamento moderno e não terminará com ele. E a história propriamente dita da responsabilidade envolvida nessa autoridade, se aparece com clareza nos modernos, tenderá a continuar.

De modo que seria possível estender essa história da concepção do poder paterno, cada vez mais distinto da concepção clássica e mais ainda da concepção antiga de pátrio poder, para os tempos atuais. Mas não é o objetivo desta palestra.

A intenção desta referência aos modernos é encontrar, na história do pensamento jurídico, uma fonte racional para se pensar a responsabilidade paterna fora daqueles moldes que vinham, desde os gregos, fixando a idéia de que os pais têm um poder equivalente à sua vontade ou seu arbítrio, sem medidas estabelecidas seja pela natureza, seja pela moral, seja pela razão, seja pelo desejo.

E a modernidade nos apresenta esta medida, certamente pela primeira vez.

A autoridade paterna existe somente enquanto corresponde a uma obrigação, obrigação fundamentalmente de prover o sustento e a formação; mas essa obrigação é definida cada vez mais pelas necessidades dos filhos e cada vez menos pelos arbítrios dos pais ou do pai.

A grande prova de que os filhos deixam de ser coisas nas mãos despóticas dos próprios pais é a existência crescente de sua liberdade para interferir na determinação dos rumos de toda a família. Quando o mundo moderno se conclui na passagem do século XVIII para o XIX, os filhos já tinham, dentro do pensamento político e pedagógico, uma importância nunca antes vista.

Ainda que a prática pedagógica e a prática social, assim como a própria dogmática civilista, se demorem a absorver essas concepções, elas são uma conquista estabelecida no interior da modernidade. Como diz Alfred Dufour: "Ao substituir um universo de hierarquias naturais por um universo de autoridades consentidas em favor de aplicação, no domínio das ciências sócio-morais, do método das ciências físicas e matemáticas, os teóricos do Direito natural moderno não se contentaram em lançar as bases de uma nova ordem moral e política emancipada da tutela da teológica." (10)

O que os filósofos jus-naturalistas causaram, com sua revolução metodológica no tratamento do assunto, foi a necessidade de dar ao pensamento em torno da autoridade e da responsabilidade paterna bases exclusivamente racionais, bases necessariamente científicas. É com esse pensamento moderno, enfim, que o cálculo e a definição dos papéis em família exige ser pensado fora de modelos, mas unicamente dentro da observação das relações humanas como elas concretamente se dão.

Tendo isso em vista, podemos passar para um outro registro, que é o de considerar a validade dessa fundamentação racional da autoridade e da responsabilidade paterna. A questão é válida desde que se mantenha válido o princípio de que aos pais não cabe qualquer arbítrio contrário à necessidade dos filhos. Essa é uma lição dos modernos, que cabe diretamente a nós, hoje.

Retomemos algo que foi perguntado mais atrás: o que há, nos filhos, que determina a autoridade dos pais?

Essa questão é mais ousada do que parece à primeira vista, porque pressupõe o questionamento de algo que o costume usa considerar inquestionável, a autoridade paterna.

Ora, se os pais detêm alguma autoridade sobre os filhos, o que determina a legitimidade das suas decisões?

À luz dos modernos, poderíamos dizer que é o benefício dos filhos, sempre. A julgar pelo que nos esclarece a filosofia jurídica moderna, jamais, não importa qual seja a fundamentação da autoridade, os pais estão livres de atender às necessidades dos filhos.

Os pais que têm aquele poder quase absoluto sobre os filhos porque são genitores e estão, na verdade, subordinados a uma necessidade da natureza inteira, que é a de preservação de todos os seus elementos constituintes.

O direito quase divino dado aos pais, segundo Grotius, sobre seus filhos (porque estes vieram daqueles) não significa, jamais, o direito de retirar-lhes a vida. Pense-se nisto a partir do ponto de vista do filho, por outro lado. É claro que não há nada na sua estrutura natural que peça a sua morte, a sua própria destruição, o seu aprisionamento ou seu suplício. Mas tudo na sua natureza pede proteção e orientação.

Exatamente como na vida civil. Não há nada no súdito ou no cidadão que peça a extinção da sua liberdade. Ao contrário, a sua natureza em sociedade pede liberdades, direitos, segurança da parte do poder soberano.

Parece-me correto, então, dizer que a relação de obediência e orientação só é válida na medida em que ofereça segurança aos atores aí envolvidos, e prioritariamente aos que mais dependem dessa segurança, na família, isto é, os filhos.

Talvez toda a autoridade dos pais possa, por isso mesmo, ser reduzida a esse único princípio – sua potência, ou sua responsabilidade, para garantir segurança aos filhos.

Essa redução, completamente legítima e reveladora do essencial, dá à idéia de poder paterno um significado que retira qualquer pontificação negativa. Com ela, o poder paterno não desaparece, mas se torna uma atividade voltada para o benefício do receptor, portanto para um benefício que é público e não privado. É essa publicidade do poder paterno, dentro da sociedade familiar, que permite chamar a esse poder, na verdade a essa generosidade, uma autoridade em certa medida.

Quando a autoridade se apresenta não como entidade castradora ou opressora, mas formadora e protetora, a criança se vê continuada nos próprios pais. Ao contrário, quando ela se vê explorada ou de alguma forma neutralizada, o que ela vê não são os seus protetores, mas os seus inimigos mais diretos.

O índice a determinar se a relação entre pais e filhos é uma relação entre formadores mútuos ou entre inimigos mútuos é, especialmente, a necessidade dos filhos.

Essa idéia não estaria, em contrapartida, dando aos filhos um poder que eles não têm ou não deveriam ter? A saber: o poder de, pelo próprio desejo, quando não pela própria birra, recusar a orientação e proteção dos pais?

A idéia de natureza, de certa maneira, se preserva aí, sem, todavia, deixar uma reserva para a violência agora pelo lado da parte mais fraca, ou inferior na antiga hierarquia.

Como diria Espinosa, a essência do homem é o desejo, e não há como pretender eliminar o desejo em quem quer que seja, muito menos na criança, que comumente vive em estado de hilaridade.

O perigo para qualquer ser humano em qualquer relação, e isso vale para pais e filhos na relação de família, não é o desejo que se manifesta por qualquer das partes, mas a violência que pode decorrer das próprias ações. A violência é, por definição, a própria ação contrária à natureza de algo ou de alguém. Se o desejo é natural, um ato violento não decorre necessariamente do desejo humano, mas de uma compreensão equivocada do que se deseja ou do que se necessita verdadeiramente.

Isso vale para qualquer relação humana, isso vale também para as relações de família: assim como não cabe aos pais serem violentos com os filhos, não cabe aos filhos serem violentos com os pais. O que não representar violência, todavia, não representa perigo à natureza de cada uma das partes, e portanto merece toda concessão, ou, para usarmos a palavra que deve sempre estar presente, merece toda liberdade.

A responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da idéia antiga e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreensão baseada no conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer dizer que não há mais fundamento na prática da coisificação familiar.

As relações de família, já que se dão no interior de uma sociedade, tendem a atravessar constantemente essa tensão que ora distancia, ora aproxima, as relações de poder e as relações de afeto. Consideremos que a relação em família não precise ser uma relação de poder, ainda que haja quem considere isso impossível. Mas se ela não é uma relação de poder, ou de dominação, o que ela é ou pode ser? Somente uma relação afetiva. Isso, para o que entendemos por família, faz sentido, mas a concorrência entre afeto e interesses familiares não é tão evidente quanto deveria, o que exige, do civilista que se dedica hoje ao tema das relações de família, uma atenção especial à condição dessas pequenas sociedades como ligações mantidas nuclearmente pelo afeto. (11)

Conceber as famílias como associações determinadas pelo afeto significa necessariamente recusar que sejam determinadas por uma relação de dominação ou poder.

Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim, que uma vida familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recíprocos, é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial.

Uma vida familiar que, ao contrário, é marcada pelas relações de ódio é claramente uma vida na qual se perdeu qualquer equilíbrio afetivo, porque já não se percebem, aí, identidades, semelhanças, generosidades. Pior: concebe-se que alguma paz só pode ser conquistada se se impuser, de qualquer das partes, uma tirania da opressão sobre a parte inimiga. Aí já não se trata mais de responsabilidade numa relação paterno-filial, mas de uma responsabilidade mais apropriada àquilo que Grotius chamava de direito de guerra.

Que contribuição pode dar, assim, a filosofia, e especialmente a filosofia moderna, para a consideração racional ou ética da responsabilidade nas relações de família? Diria que uma contribuição precisa e espantosamente necessária hoje em dia: a reflexão sobre o sentido, nas relações de família, dos laços afetivos como laços inquebrantáveis apesar do próprio desaparecimento dos modelos tradicionais de família.

O que torna esses laços inquebrantáveis é mais que o fracasso ou a natureza nefasta dos laços de poder e dominação, quando estes infestam a concepção que uma família pode ter de si própria. Os laços afetivos são inquebrantáveis porque, como mostrava já Pufendorf, sempre estiveram na origem das relações de família, porque ela é o lugar natural dessa prática da identidade entre os seus integrantes.

Seria, posteriormente, a excessiva carga institucional dada às relações familiares que voltaria a dificultar a compreensão da família como campo de liberdade coletiva; mas, como o desejo de identidade e união é mais forte do que o desejo de dominação e disputa, nenhuma autoridade ou responsabilidade fora desse interesse exclusivo na proteção e na formação dos filhos pode ser verdadeiramente válido.

É isso, principalmente, o que os modernos nos mostram a respeito da responsabilidade nas relações de família: elas só são legítimas enquanto se concentram no interesse pela formação e pela liberdade dos filhos.


NOTAS

  1. Registro, com grande honra, que para a elaboração desta palestra, contei com a generosidade da inteligência de certos colegas de assunto, aos quais sou extremamente grata, e que, com sua colaboração inestimável, deixaram estas notas mais sofisticadas, com um certo ar interdisciplinar, pelo qual tanto ansiei. São eles: Fernando Dias Andrade (filósofo e professor), Sandra Olivan Bayer (advogada), Giselle Groeninga (psicóloga e mediadora), Águida Arruda Barbosa (advogada e mediadora), Maria Berenice Dias (desembargadora), Rodrigo Cunha Pereira (advogado e professor) e Euclides de Oliveira (advogado e professor), todos, à exceção do primeiro, membros e/ou dirigentes do IBDFAM.
  2. Dentre a riquíssima bibliografia que pode ser consultada a respeito do assunto, registro em especial a formidável obra de Albertino Daniel de Melo, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, denominado A responsabilidade civil pelo fato de outrem, nos direitos francês e brasileiro, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1972. E, ainda, como ponto de partida para a visualização desta divergência qualificatória da responsabilidade indireta dos pais pelos danos causados por seus filhos menores, recomendo a leitura das singulares 18 linhas de comentários ao art. 1523 do Código Civil em vigor que a Professora Maria Helena Diniz registra em seu Código Civil Anotado, Editora Saraiva, São Paulo (minha edição é a de 1995, gentilmente dedicada pela autora).
  3. Respectivamente, fragmentos 110 e 111 dos ditos de Demócrito.
  4. A expressão masculista, em lugar de machista, se deve a Marilena Chauí, em Repressão sexual, essa nossa (des)conhecida.
  5. A. Dufour, "Autorité maritale et autorité paternelle dans l''école du droit naturel moderne", Archives de philosophie du droit, t. 20, Paris, 1975.
  6. A este respeito, leia-se os bem talhados capítulos Poder Familiar, de Paulo Luiz Netto Lobo, e Parentesco e Filiação, de Rosana Fachin, ambos contidos na obra coletiva coordenada por Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, denominada Direito de Família e o novo Código Civil, Editora Del Rey, Belo Horizonte: 2001.
  7. F.D. Andrade, "Sobre ética e ética jurídica", http://sites.uol.com.br/grus/eej.htm
  8. Análise do assunto se encontra em F.D. Andrade, Filosofia do direito, parte IV ("Direito e justiça"), previsto para 2002.
  9. Locke, Segundo tratado sobre o governo, cap. VI, § 55.
  10. A. Dufour, p. 124.
  11. A propósito, é devidamente inovadora a contribuição de Silvana Maria Carbonera, em seu estudo sobre "O papel jurídico do afeto nas relações de família", em L.E. Fachin (org.) Repensando fundamentos do Direito Civil brasileiro contemporâneo, Rio de Janeiro, Renovar, pp. 273-315.
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Sobre a autora
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

procuradora federal em São Paulo (SP), doutora em Direito pela USP, professora doutora de Direito Civil da USP, diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade civil na relação paterno-filial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4192. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Palestra proferida no 3º Congresso Brasileiro de Direito de Família – "Família e Cidadania: o novo Código Civil Brasileiro e a ‘vacatio legis’", em 26 de outubro de 2001, na cidade de Ouro Preto (MG), promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e pela OAB/MG.

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