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Considerações sobre a alteração do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil pela Lei nº 13.151/2015

22/08/2015 às 13:02
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Não é taxativo o rol de finalidades elencado pelo Código Civil para as fundações. Só se veda o lucro como objetivo.

Fundação é uma pessoa jurídica de direito privado (art. 44, III, do Código Civil) ou de direito público (art. 41, V, do Código Civil), caracterizada por ser uma universalidade de bens para a realização de determinado fim social ou de interesse público e coletivo.

Os elementos que definem as fundações são o patrimônio e o fim a que se destina, que não pode ser de lucro, estabelecidos pelo seu instituidor mediante escritura pública ou testamento (art. 62 do Código Civil).

Adquire personalidade jurídica no momento em que ocorrer o registro do estatuto aprovado no cartório de registro civil das pessoas jurídicas. Neste momento, os bens a ela destinados passam a constituir a fundação se desvinculando do seu instituidor, surgindo uma pessoa nova, um novo sujeito de direitos e obrigações.

A fundação deve ter finalidade lícita, sob pena de não ser aprovado o seu estatuto (art. 65 do Código Civil), nem poder ser registrada no cartório de registro civil das pessoas jurídicas (art. 115 da Lei nº 6.015/73). Do mesmo modo, tornando-se ilícitos os seus fins, deve ser extinta (art. 69 do Código Civil).

Compreende-se que as fundações, do mesmo modo que as associações, caracterizam-se como pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, tendo nítido cunho social.

O parágrafo único do artigo 62 do Código Civil foi alterado pela Lei nº 13.151, de 28 de julho de 2015, decorrente da aprovação do projeto de lei nº 1336/2011, com o objetivo de ampliar o rol de finalidades para as quais fundações podem ser constituídas.

O referido parágrafo único do artigo 62 do Código Civil, na sua redação original, dispunha sobre os fins específicos da fundação de direito privado, que eram os religiosos, morais, culturais ou de assistência. Com a nova redação dada pela Lei nº 13.151/2015, passa a dispor o parágrafo único do artigo 62 do Código Civil que “a fundação somente poderá constituir-se para fins de: I – assistência social; II – cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; III – educação; IV – saúde; V – segurança alimentar e nutricional; VI – defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; VII – pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de sistemas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos; VIII – promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos; IX – atividades religiosas.”.

Conforme disposto no parecer aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, a redação anterior do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil limitava indevidamente a constituição das fundações para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência, o que não ocorria no Código Civil de 1916 (art. 24). Deste modo, seria correta “a ampliação do escopo das fundações, previsto no parágrafo único do art. 62 do Código Civil, nos moldes do que já prevê a Lei 9.790/99 (que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências), com pequenas alterações no que diz respeito à gratuidade dos serviços de promoção da saúde e da educação, haja vista a grande quantidade de fundações voltadas para estes setores, que não prestam, necessariamente, tais serviços gratuitamente”.

De fato,  alguns incisos acrescentados ao parágrafo único do artigo 62 do Código Civil encontram correspondência nos incisos do artigo 3º da Lei nº 9.790/99, que dispõe que “a qualificação instituída por esta Lei, observado, em qualquer caso, o princípio da universalização dos serviços, no respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham pelo menos uma das seguintes finalidades: I - promoção da assistência social; II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei; IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei; V - promoção da segurança alimentar e nutricional; VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; VII - promoção do voluntariado; VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza; IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar; XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo”.

O Código Civil de 1916 (art. 24) dispunha apenas que “para criar uma fundação, far-lhe-á seu instituidor, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que a destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la”.

O Código Civil de 2002, diferentemente do Código anterior, na sua redação original, dispunha no caput do artigo 62 que “para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la”, e no seu parágrafo único que “a fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”.

Quando em vigor, após o período de vacatio legis de um ano, discussões foram travadas sobre a referida limitação dos fins que as fundações deveriam ter. A justificativa para a limitação contida no parágrafo único do artigo 62 do Código Civil seria o de evitar o desvirtuamento das finalidades sociais e coletivas para as quais foram previstas as fundações, vedando-se a sua utilização quando o fim fosse o de obter vantagens tributárias (art. 150, VI, c, § 4º da CF, art. 14 do CTN), trabalhistas, administrativas, previdenciárias e outras que não atendiam ao interesse público.

A interpretação que se deu ao dispositivo limitativo dos fins das fundações privadas foi o de que o rol dos fins arrolados no parágrafo único do artigo 62, na sua redação original, era exemplificativo, impedindo apenas a constituição de fundações com fins lucrativos. Esse entendimento foi adotado nos Enunciados nº 8 e nº 9 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.

Transcrevemos os enunciados: “Enunciado 8 – Art. 62, parágrafo único: a constituição de fundação para fins científicos, educacionais ou de promoção do meio ambiente está compreendida no CC, art. 62, parágrafo único” e “Enunciado 9 – Art. 62, parágrafo único: o art. 62, parágrafo único, deve ser interpretado de modo a excluir apenas as fundações com fins lucrativos”.

Os quatro fins elencados no parágrafo único do artigo 62 do Código Civil, na sua redação original, representavam conceitos abertos que demandavam uma interpretação valorativa pelo julgador dentro de um determinado contexto, abrangendo praticamente todas as atividades que não tivessem fins lucrativos.

Desta forma, a assistência (auxílio, cooperação, ajuda etc.) poderia ser prestada pelas fundações em qualquer das áreas de interesse coletivo e social, como o meio ambiente, a pesquisa, os esportes, a saúde, a educação, a moradia e outros. Seus fins não poderiam ser imorais ou ilícitos. Fim religioso abrange todas as crenças, visões de mundo que se relacionam com a humanidade, com a espiritualidade e com os valores morais e éticos de um povo, de uma cultura ou de determinado grupo. A cultura representa todo complexo de conhecimentos, crenças, artes, valores, costumes e outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade. Os conceitos de cultura, moral e religião se relacionam.

Em razão da abertura dos conceitos de moral, cultura, religião e assistência foi que a doutrina e a jurisprudência adotaram o entendimento de que o parágrafo único do artigo 62 do Código Civil apenas vedava a fundação com fins lucrativos.

Já em 2002 se discutia a inconveniência da limitação contida no Código Civil, o que motivou a apresentação do projeto de lei nº 7.160/2002, que tem como objeto a revogação do parágrafo único do artigo 62, mantendo-se a mesma sistemática do Código Civil de 1916.

Com a Lei nº 13.151/2015, e a consequente alteração da redação do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil para ampliar e especificar os fins que as fundações de direito privado devem buscar, a interpretação contida no enunciado nº 9 da I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no sentido de que o artigo 62, parágrafo único, deve ser interpretado de modo a excluir apenas as fundações com fins lucrativos, permanece válida. Isto porque os conceitos utilizados para arrolar os fins a que as fundações se destinam continuam sendo abrangentes.

Interpretando os incisos do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil, com redação dada pela Lei nº 13.151/2015, à luz da Constituição Federal de 88, pode-se dizer que a assistência social tem por objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária (art. 203 da CF); a saúde garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196 da CF), sendo a assistência à saúde livre à iniciativa privada (art. 199 da CF); que a educação seja promovida e incentivada, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205 da CF); a cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico abrange a defesa e a valorização do patrimônio cultural brasileiro assim entendidos os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico; a produção, promoção e difusão de bens culturais; a formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; a democratização do acesso aos bens de cultura; a valorização da diversidade étnica e regional (art. 215 e 216 da CF); a pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de sistemas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos para o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação (art. 218 da CF); a defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável mediante ações que visem a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, com condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana (art. 225 da CF e Lei nº 6.938/81).

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Além dos fins enunciados no parágrafo anterior, são considerados como fins para a constituição de uma fundação privada a segurança alimentar e nutricional, as atividades religiosas e a promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos.

Atividade religiosa corresponde ao conceito de fim religioso da redação original do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil.

“A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis” (Art. 3º da Lei nº 11.346/2006 – Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN). Isto porque “a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população” (art. 2º da LOSAN).

O artigo 6º da Constituição Federal dispõe que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Como visto todos os direitos elencados no referido artigo 6º da CF podem ser promovidos por meio de uma fundação de direito privado, pois o livre desenvolvimento cultural, social e econômico dos cidadãos é um processo público aberto às mediações de entidades privadas, como as fundações, as associações e as organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIP (JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2000, pág. 342).

O inciso VIII do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil, que dispõe sobre a promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos, amplia os fins que as fundações podem ter, pois os conceitos de ética, cidadania, democracia e direitos humanos são muitos abrangentes.

A cidadania está colocada num sentido mais amplo do que a titularização de direitos políticos, abarcando a efetiva participação do indivíduo na vida do Estado, e o seu reconhecimento como pessoa integrada na sociedade estatal (JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de direito constitucional positivo, 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, pág. 104). A cidadania é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, II, da CF).

A democracia aparece como o mecanismo de realização de valores como a igualdade, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, do trabalho e da livre iniciativa. O princípio democrático deve implicar a democracia participativa em que os cidadãos tenham efetiva possibilidade de participar dos processos de decisão e exercer o respectivo controle (JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2000, pág. 288)

Os direitos humanos são os direitos fundamentais do homem elencados na Constituição Federal (art. 5º e 6º da CF) e nos tratados internacionais. São os direitos básicos de todos os seres humanos, como os civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

O conceito de ética é tão aberto quanto o de moral, representando o conjunto de regras e de preceitos valorativos e morais de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade.

As fraudes e os abusos cometidos na utilização da forma jurídica da fundação devem ser evitados e coibidos pelos mecanismos de controle elencados no Código Civil (art. 65 a 69), exercidos pela sociedade e pelo Ministério Público.

Diante do exposto, pode-se concluir que as alterações promovidas pela Lei nº 13.151/2015, no parágrafo único do artigo 62 do Código Civil, apenas elencam de forma mais expressa os fins que podem ser buscados com a criação de uma fundação, mas de modo algum constitui-se um rol taxativo ou limitativo, motivo pelo qual se entende que são vedadas apenas as fundações com fins lucrativos.

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Sobre o autor
Raphael Funchal Carneiro

Advogado formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pós graduado em direito tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO, Raphael Funchal. Considerações sobre a alteração do parágrafo único do artigo 62 do Código Civil pela Lei nº 13.151/2015. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4434, 22 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41982. Acesso em: 23 abr. 2024.

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