Da Responsabilidade civil do Estado pela perda do tempo útil/livre do administrado

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03/09/2015 às 09:28
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Artigo em que se analisa a responsabilidade do Estado pelo dano temporal causado pelo mau atendimento aos administrados pela administração pública.

Nos últimos anos temos nos dedicado à pesquisa sobre a responsabilidade civil pelo dano temporal nas relações de consumo, isto é, sobre aquelas situações em que o mau atendimento do fornecedor de produtos e serviços subtrai precioso tempo do consumidor para a solução das demandas de consumo. Até o momento, o estudo da matéria já nos rendeu a publicação de um artigo, intitulado “Danos morais pela perda do tempo útil: uma nova modalidade”, disponível em meio eletrônico (In: http://vitorgug.jusbrasil.com.br/artigos/111764342/danos-morais-pela-perda-do-tempo-util-uma-nova-modalidade) e uma monografia na qual aprofundamos o estudo, intitulada “O dano temporal e sua reparabilidade: aspectos doutrinários e visão dos tribunais), publicada recentemente na Revista de Direito do Consumidor (RDC) nº 99, editada pela Revista dos Tribunais.

 Contudo, até o momento ativemo-nos a examinar o tema no âmbito das relações de consumo (relações de direito privado), pois é nessa esfera que esse “novo dano” tem ocorrido com maior frequência e, felizmente, tem cada vez mais merecido a atenção de nossos tribunais, que têm reconhecido que a subtração indevida do tempo útil/livre do consumidor pelo fornecedor é fonte de responsabilidade civil.

Todavia, recentemente tomamos contato com uma decisão proferida pela 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em que o DETRAN daquele estado da federação foi condenado a compensar pecuniariamente um administrado, em razão de informações equivocadas a ele prestadas por aquela autarquia, o que resultou na perda do seu tempo útil, causando-lhe frustrações e aborrecimentos que, no entendimento do colegiado julgador, ultrapassaram o que razoavelmente se espera da máquina administrativa. Confira-se a ementa do julgado:

APELAÇÃO CÍVEL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REABILITAÇÃO DA CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. IMPEDIMENTO SISTÊMICO RELATADO PELO DETRAN DE OUTRA UNIDADE DA FEDERAÇÃO. INFORMAÇÕES E ORIENTAÇÕES MAL PRESTADAS PELO DETRAN LOCAL. PERDA DE TEMPO ÚTIL E ABORRECIMENTOS. DANO MORAL CONFIGURADO. CONDENAÇÃO DE AUTARQUIA AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCOS AO CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS DA DEFENSORIA PÚBLICA. NÃO CABIMENTO.

As informações e orientações equivocadas prestadas ao administrado que pretende reabilitar a sua Carteira Nacional de Habilitação, que causam a perda de tempo útil, frustrações, aborrecimentos e despesas ensejam a compensação e ressarcimentos pelos danos morais e materiais causados. Violação do princípio que norteia a conduta da Administração Pública. Orientação do STJ que, no julgamento de recurso repetitivo, decidiu pelo não cabimento da condenação de honorários entre entidades integrantes da mesma estrutura político-administrativa maior. Recurso ao qual se dá parcial provimento (TJRJ, 9ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 00214313820108190066, Rel. Des. Rogério de Oliveira Souza, julgado em 16/04/2013, publicado em 19/08/2013).

No bojo do julgado, o eminente relator destacou:

“Assim, não obstante o DETRAN-MG ter confessado o “impedimento sistêmico”, o que se extrai dos autos é a absoluta falta de organização do DETRAN-RJ em informar e orientar adequadamente o apelado sobre o procedimento de reabilitação da CNH.

É a falta de organização em informar e orientar e não o ‘impedimento sistêmico’ noticiado, o motivo de perda do tempo útil e aborrecimentos experimentados pelo apelado.

Nada disso teria ocorrido, não fosse o desencontro de informações e a imprecisão dos dados fornecidos pelo DETRAN-RJ, que poderia ter avisado ao apelado de que havia “impedimento sistêmico” no DETRAN-MG e que o procedimento correto seria a reabilitação da CNH e não 2ª Via ou Renovação da Habilitação.

O dano moral é evidente e foi causado pelo deficiente serviço prestado pelo DETRAN-RJ, que faltou com o dever de prestar a informação adequada.

A lesão se justifica pela perda de tempo útil, frustração e aborrecimentos que poderiam ser evitados.

Tal circunstância não caracteriza mero aborrecimento como quer fazer crer o apelante, mas chateações que suplantam os contratempos cotidianos, especialmente quando o recebimento do documento é imprescindível para que apelado consiga exercer atividade profissional que se dispôs.

Assim correta a sentença que julgou procedente o pedido de indenização por danos morais e materiais.”

Pois bem, a existência do julgado em questão nos desperta para o fato de que não somente nas relações privadas o tempo merece tutela por parte do Estado. Se partirmos do pressuposto de que o tempo é um bem jurídico merecedor de tutela jurídica, tal deve ser observado também na esfera das relações entre o Estado e os administrados.

A Constituição da República elenca, expressamente, no caput do art. 37, os princípios aos quais a administração pública deve obediência no desenrolar de sua atividade, dentre os quais encontra-se o princípio da eficiência, incluído na Carta Fundamental pela EC 19/98[1].  

Sobre o dever de eficiência do administrador público, Hely Lopes Meirelles leciona:

“O princípio da eficiência exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros”.

Vê-se, portanto, segundo o citado autor, o atendimento satisfatório das demandas da coletividade deve ser objeto de preocupação do administrador público, até mesmo porque o ser humano, enquanto criatura concreta, precede ao Estado, enquanto ficção jurídica. O Estado – e o direito que o regula - existe em razão das demandas geradas pela convivência do homem em sociedade.

Conforme já destacamos, é certo que as diversas questões que cercam o cotidiano demandam algum tempo para serem tratadas e solucionadas, o que conduz à afirmação no sentido de que é perfeitamente normal e aceitável “perder” ou “investir” tempo para resolver as questões do dia a dia.[2] Dentre tais demandas estão também aquelas que envolvem tanto o cumprimento de deveres quanto a obtenção de utilidades junto à administração pública, sendo certo que, em regra, há prazos para ambas as partes.

Tempo útil e tempo Livre

 

Conforme a tecnologia e a desburocratização evoluem, novos recursos são desenvolvidos com o objetivo de diminuir-se o tempo gasto para a consecução de tarefas e obrigações. As sociedades empresárias, e até mesmo o governo, através de campanhas publicitárias, incentivam as pessoas a utilizarem tais recursos, de modo a pouparem tempo para aproveitá-lo junto à família, aos amigos, para relaxar, viajar; enfim, proporcionar mais tempo para os gozos da vida.

Nesse aspecto, o tempo pode ser analisado sob duas perspectivas: (i) da sua utilidade e (ii) do seu uso livre.

Sob o ângulo da utilidade, demanda-se a disponibilidade de tempo para a execução de variadas tarefas do cotidiano, para o cumprimento de obrigações e para o trabalho. Pode-se dizer que é um tempo “vinculado”, cujo emprego já estaria pré-determinado, planejado; seu detentor já sabe, de antemão, para qual finalidade o tempo será utilizado. Considerando o significado da palavra “útil”, pode-se dizer que o tempo útil é aquele por meio do qual se busca uma vantagem ou a satisfação de uma necessidade. Na linguagem laboral, o dia útil é aquele reservado para o trabalho (observe-se que o dia é unidade de medida de tempo).

Na visão de Frederic Munné, citado por Cássio Adriano Braz Aquino e José Clerton de Oliveira, o tempo útil seria tipificado como tempo socioeconômico, sendo definido como “o tempo empregado para suprir as necessidades econômicas fundamentais, constituídas pelas atividades laborais, atividades domésticas, pelos estudos, enfim, pelas demandas pessoais e coletivas, sendo que esse tipo de tempo está quase que inteiramente heterocondicionado, somente sendo autocondicionado nas circunstâncias que visam à realização pessoal”.[3]

Assim, pode ser considerado tempo útil aquele consumido nas tarefas rotineiras como cozinhar, lavar e passar a roupa, limpar a casa, fazer compras, levar os filhos à escola, levar o carro à oficina, ir ao banco pagar contas e realizar transações, trabalhar etc.

Por outro lado, o tempo livre seria aquele dedicado para se fazer o que se quer, sem vínculos ou predeterminações. É o tempo que não está ligado a tarefas ou obrigações.

Recorre-se, nesta oportunidade, às reflexões de Bodil Jönsson, que, ao discorrer sobre o tempo livre, registra:[4]

“É preciso tratar algumas coisas com prioridade. E isso também é válido para quem deseja dispor de uma certa liberdade em relação a seu tempo. Eliminar, fazer escolhas para chegar a realizar ou outorgar-se o direito de realizar alguma coisa. Organizar-se para que o fenômeno do tempo livre surja na existência – e que se possa refletir e fazer alguma coisa de novo. Isso exige tempo, espaço, que os outros mostrem mais consideração a você e que você se perturbe menos”.

Destarte, o tempo livre é aquele dedicado ao lazer, ao repouso, a atividades descomprometidas, inclusive ao ócio.

Em obra recente, João Baptista Herkenhoff faz interessante análise acerca do valor que o ócio possui no desenvolvimento humano. É bastante comum associar-se o ócio à vagabundagem, à preguiça, à perda de tempo etc., o que, na verdade, é um erro. Citando a lição do pedagogo tcheco Jan Amos Komenský (Comenius), o autor capixaba esclarece que o tempo do ócio é humanizador, uma vez que nos permite parar para pensar, nos autoconhecer, investigar nossa condição humana. Assim, não seria um tempo perdido, mas, sim, sagrado:[5]

Corroborando esse ponto de vista, recorre-se ao acentuado por Cássio Adriano Braz Aquino e José Clerton de Oliveira Martins, os quais registram que, na sociedade pós-Revolução Industrial, o trabalho ocupava posição central na estruturação social e na construção do sujeito moderno. Contudo, advinda a crise do modelo social centrado no trabalho, cujas ideias passaram a ser questionadas, o ócio, o tempo livre e o lazer começaram a assumir posição central no novo contexto social. Os autores em referência destacam que o ócio humanista difere de outras vivências em razão de possibilitar ao indivíduo “encontros criativos” que resultam no desenvolvimento pessoal. Mas, para que isso se torne possível, é necessário um aporte informacional acerca dos benefícios do ócio e os valores que ele agrega à existência de cada um.[6]

Por sua vez, Manuel Cuencas Cabeza, catedrático da Universidade de Dusto (Espanha) assevera:[7]{C}

“No Instituto de Estudos de Lazer da Universidade de Deusto afirmamos que o lazer[8] deve ser entendido como uma experiência integral da pessoa e um direito humano fundamental. Uma experiência humana integral, a saber, desejada, complexa e focada em ações desejadas , autotélicas (com um fim em si) e pessoais. Além disso, um direito humano básico que promove o desenvolvimento, tais como educação, trabalho e saúde, e que ninguém deve ser privado com base em gênero, orientação sexual, idade, raça, religião, crença, estado de saúde, deficiência ou condição econômica”.

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Sendo assim, pode-se dizer que o ócio também é um instrumento de promoção da dignidade humana (tempo humanizador), na medida em que o exercício de se dedicar uma parcela do tempo ao autoconhecimento é fundamental para o aprimoramento do indivíduo enquanto pessoa.

 No ordenamento jurídico pátrio, o lazer foi erigido como direito fundamental, localizando-se entre os direitos sociais, a teor do disposto no art. 6º da CRFB/1988.[9]{C} Segundo José Afonso da Silva, o lazer e a recreação têm como objetivo oportunizar ao indivíduo que recupere suas forças após o trabalho, seja simplesmente repousando, seja entregando-se à diversão, ao esporte etc.”[10]{C}

De qualquer modo, sem pretender fazer incursões aprofundadas em matéria constitucional, o que se busca demonstrar é que o gozo do lazer requer tempo livre, e, assim sendo, afigura-se ato ilícito a subtração do tempo que a pessoa poderia utilizar para o seu lazer.

Seja tempo livre ou tempo útil, certo é que ninguém está autorizado a usurpá-lo sem o consentimento de seu titular.

Responsabilidade do Estado

Ocorre que, se o administrado deixa de cumprir eventual prazo para a obtenção da utilidade que pretende, a consequência será a não concessão pela administração pública. Isto é, o próprio administrado arcará com as consequências de sua desídia em relação a algo que é de seu próprio interesse. Mas, se ocorre o contrário, isto é, se a administração pública não cumpre os prazos que lhe são assinalados para atender o administrado, na maior parte das vezes este simplesmente fica à mercê da máquina estatal, muitas vezes sob a alegação de que “o sistema está fora do ar” ou “o servidor responsável está de licença” etc. Ou seja, nessas situações, ao administrado resta tão somente se sujeitar à ineficiência da administração pública no tocante ao tempo de resposta às demandas da coletividade, o que nos parece inadmissível, principalmente nos dias atuais, em que as tecnologias são desenvolvidas exatamente com o objetivo de agilizar o cumprimento de tarefas, e assim poupar tempo.

Nesse contexto, a partir do momento em que o Estado institui para si a prerrogativa de regular determinadas situações, como visto in casu, a concessão de licença para conduzir veículo automotor, deve, em contrapartida, garantir que o administrado, tão logo satisfaça os requisitos para a obtenção da prestação estatal, será atendido a tempo e modo pela administração pública. O administrado, em situações tais, torna-se verdadeiro credor do Estado.

Concluindo, a desorganização e ineficiência da máquina estatal jamais devem causar danos ao administrado, sob pena de responsabilização civil do Estado, que encontra expressa previsão no art. 37, § 6º da CRFB/88. Do mesmo modo que vem ocorrendo nas relações de consumo, a subtração indevida do tempo do administrado pela administração pública, em decorrência da procrastinação no atendimento das respectivas demandas, também resulta no consequente dever de reparar eventuais prejuízos de ordem temporal sofridos.

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Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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