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A relativização do ônus da prova e a Justiça Constitucional:

uma breve reflexão sobre a concretização de valores constitucionais em face da inércia legislativa

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03/10/2003 às 00:00
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5. Conclusões.

Podemos resumir o que dissemos acima nas seguintes proposições:

    1. A atividade probatória, dentro do processo, é disciplinada por lei da União, em atendimento ao princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), ao devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) e à competência privativa da União para legislar sobre direito processual (CF, art. 22, I). Denominamos de "estatuto da atividade probatória" o conjunto de regras jurídicas que disciplinam o requerimento, a produção e a apreciação da prova no processo;
    2. O ônus da prova, que constitui uma importante parte do "estatuto da atividade probatória", foi distribuído pelo legislador ordinário de forma indiferente ao direito material debatido em Juízo (CPC, art. 333);
    3. O combate à pobreza é um valor constitucional que ocupa posição de destaque na pauta axiológica da nossa Constituição vigente (CF, Preâmbulo e arts. 1º, III; 3º, I; 6º; 23, I; 193; 203, caput; ADCT, arts. 79, 80, 81, 82 e 83, acrescidos pela EC 31/00);
    4. Sem embargo da importância de que desfruta na Constituição, o combate à pobreza não teve tradução prática na legislação processual, notadamente no que se refere à distribuição do ônus da prova, e mais especialmente quando o pedido se dirige à obtenção do benefício assistencial a que se refere o art. 203, V, da CF/88;
    5. Sempre que um valor constitucional estiver atrofiado, por ausência de mecanismos legais, o Judiciário deve exercer a chamada "Justiça Constitucional", que é a aplicação direta da Constituição, sem interpositio legislatoris, como única forma de impedir que a inércia aniquile os compromissos constitucionais;
    6. No caso particular do ônus da prova de pobreza, para fins de obtenção do benefício assistencial (CF, art. 203, V), o exercício da "Justiça Constitucional" implica o reconhecimento de que a simples afirmação do autor da ação, quanto a esse fato, é suficiente para demonstrá-lo, salvo prova em contrário, a cargo da Administração.
    7. O ônus da prova, à luz da "Justiça Constitucional", depende muito do fato que se quer demonstrar, pois se o este fato está em conexão com uma norma constitucional de valor superlativo, então, como forma de preservar a proporção axiológica establecida pela Lei Fundamental, a parte adversa é que deve suportar a maior carga de dificuldade, sendo de todo inadequada a aplicação indiscriminada de uma regra apriorística como a do art. 333 do CPC.
    8. De resto, não só a distribuição do ônus da prova deve ser revisitada sob a luz dos valores constitucionais — embora, neste trabalho, a reflexão se limite a isso — , mas todo o "estatuto da atividade probatória" precisa ser reconsiderado ou, ainda mais amplamente, todo o nosso sistema processual necessita de perscrutação, dada a patente dissintonia que apresenta, em certos pontos, com a pauta axiológica do constituinte de 1988.

NOTAS

  1. Nesse sentido: Goldschmidt, James. Direito processual civil, trad. brasileira, Campinas: Bookseller, 2003, t. I, p. 299. Tanto é certo que o objetivo da atividade processual é o convencimento do juiz, e não o estabelecimento da verdade, que o art. 473 do Código de Processo Civil afirma que não transitam em julgado os motivos da decisão, mas apenas o dispositivo. Fica aberta, portanto, a possibilidade de rediscussão, em outro processo, dos fatos admitidos como verdadeiros na fundamentação da sentença. Ainda mais: o "erro de fato", para ser motivo de rescisão de sentença, não pode ter sido objeto de controvérsia, assim como não deve ter havido pronunciamento judicial sobre o fato (CPC, art. 485, §2º), o que demonstra, à saciedade, que, se o juiz pronunciar algo sobre a prova — bem ou mal — o convencimento terá sido manifestado, não sendo lícito reabrir a discussão somente porque a "verdade objetiva dos fatos" supostamente não foi atingida.
  2. Guimarães, Mário. O juiz e a função jurisdicional, Rio: Forense, 1958, p. 313.
  3. Florian, Eugênio. De las pruebas penales, trad., Bogotá: Têmis, 2ª ed., t. I, p. 142.
  4. Couture diz que no cúmulo de vacilações, de incertezas e de dúvidas, culminou um dia ante a necessidade de dar-lhe forma de um texto de direito positivo. O resultado foi o art. 133 do Projeto de Código de Procedimento Civil do Uruguai, com o seguinte texto: "Art. 133. Está a cargo das partes demonstrar suas respectivas proposições de fato. Quem pretende algo, deve provar os fatos constitutivos de sua pretensão; quem contradiz a pretensão do adversário, há de provar os fatos extintivos ou as circunstâncias impeditivas dessa pretensão. Sem prejuízo da aplicação das normas precedentes, os juízes apreciarão de acordo com o estabelecido no artigo seguinte — o dispositivo refere-se às regras do livre convencimento racional — as omissões ou deficiências na produção da prova." (Couture, Eduardo Juan. Fundamentos del derecho procesal civil. Buenos Aires: Depalma, 3ª ed., 15ª reimp., 1988, pp. 247-248).
  5. Sobre a argumentação tópica, para uma rápida e clara exposição, embora sucinta, ver: Ferraz Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 3ª ed., 2001, pp. 322-326.
  6. Em 1862, justificando o aparecimento do seu livro Os miseráveis, Victor Hugo manifestou, entre constrangido e indignado, a incômoda necessidade de que se escrevesse sobre a pobreza, nesses termos: "Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século — a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância — não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis.". Lamentavelmente, e a despeito da Constituição que temos, entre nós seu livro ainda é muito útil ...
  7. Paulo Bonavides, a esse respeito, fala da necessidade de compreensão da "atmosfera axiológica da ordem jurídica" como dado fundamental para o entendimento do constitucionalismo moderno, verbis: "(...) A atmosfera axiológica da ordem jurídica que o constitucionalismo respira, como acabamos de ver nas reflexões acerca do Estado Social, é elemento capital de sua justificação e legitimidade, e se torna, mais do que nunca, uma exigência elucidativa das metamorfoses por que há passado o Direito Constitucional de nosso tempo. Sua normatividade se fortaleceu sobremaneira e já o vemos constituído em eixo ou centro que irradia para todos os ramos do Direito um critério normativo supremo, de transgressão inadmissível, ao qual se curvam todos os poderes e se conformam todos os atos jurídicos" (Bonavides, Paulo. Os poderes desarmados: à margem da ciência política, do direito constitucional e da história – figuras do passado e do presente, São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 40).
  8. A concretização de valores constitucionais não deve ser confundida com a aceitação dos chamados "blocos de constitucionalidade", pois estes têm por objetivo expandir — para além do texto da Constituição formal — certos valores materialmente constitucionais, ao passo que a concretização é apenas uma maneira de tornar eficaz, em cada caso, a Constituição, respeitando, porém, os limites do texto. Sobre o conceito de bloco de constitucionalidade, ver: JOSINO NETO, Miguel. O bloco de constitucionalidade como fator determinante para a expansão dos direitos fundamentais da pessoa humana . Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 61, jan. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=3619>.
  9. apud Streck, Lênio Luis. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 31.
  10. Teoria de la constituición, Barcelona: Ariel, 1983, p. 222.
  11. De resto, tem sido esta também a solução, inspirada no art. 4º da Lei 1.060/50, na hipótese de afirmação do estado de pobreza, para fins de obtenção dos benefícios da assistência judiciária gratuita. O ponto é pacífico na jurisprudência, bastando citar, a título ilustrativo, recente julgado do TRF da 1ª Região: "PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA.IMPUGNAÇÃO. DECLARAÇÃO DE POBREZA. ÔNUS DA PROVA . 1. A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família (art. 4º da Lei nº 1.060/50). 2. Cabe ao impugnante provar a inexistência ou desaparecimento dos requisitos ensejadores da concessão do benefício, não sendo suficiente mero protesto, na vestibular da impugnação, à efetivação probatória das assertivas lá desenvolvidas. 3. Apelação improvida." (AC 1998.38.00.041484-4 /MG, rel. Des. Fed. João Batista Moreira (rel. conv. Juiz Urbano Leal Berquó Neto), 5ª Turma, v.u., DJ de 28 /04 /2003, p. 87).
  12. E nisto nos parece superior a técnica da concretização em face, por exemplo, da mera inversão do ônus da prova por força de lei (ope legis) ou por ato do juiz (ope judicis). Conquanto a inversão tenha a seu favor a segurança da aplicação apenas nas relações jurídicas indicadas (v.g., relações de consumo, ex vi do art. 6º, VIII, CDC), reduzindo o arbítrio judicial, justamente por isso sofre também dos efeitos nefastos da inércia legislativa, porquanto fica na dependência de lei que a consagre. Isso para não falar nas infindáveis e contraproducentes discussões em torno do alcance da inversão, do momento processual em que deve ser feita, etc. Sobre a inversão do ônus da prova no CDC, consultar: Matos, Cecília. O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Artigo in Justitia, São Paulo, 57 (170), abr./jun. 1995.
  13. Nesse sentido, veja-se, por exemplo, o trabalho do Prof. Cândido Rangel Dinamarco, publicado na Revista de Processo, n. 109, jan-mar de 2003, pp. 9-38, intitulado Relativizar a coisa julgada material, em que o mestre paulista propõe uma revisão do alcance da coisa julgada, de modo a indicar critérios para a relativização racional e equilibrada desse instituto processual, sopesando valores e opinando sobre quais devem prevalecer sobre o desta e quais não, em quais circunstâncias sim e em quais circunstâncias não.
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Sobre o autor
Nazareno César Moreira Reis

juiz federal da Seção Judiciária do Piauí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Nazareno César Moreira. A relativização do ônus da prova e a Justiça Constitucional:: uma breve reflexão sobre a concretização de valores constitucionais em face da inércia legislativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 92, 3 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4246. Acesso em: 27 dez. 2024.

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