V – O direito de propriedade – da absolutização à sua relativização.
Interessará mais de perto nesse estudo o exame da faculdade de uso e o elemento de proteção ou elemento externo, qual seja a possibilidade de reivindicação do bem objeto da titularidade, garantia máxima contra a ingerência alheia que, de regra, ocorre através da posse, consentida ou não.
Tradicionalmente, a civilística indica as seguintes características como sendo as principais do direito de propriedade: absoluto, exclusivo, perpétuo, elástico e ilimitado.[35]Seriam estes atributos puramente clássicos ou históricos? A resposta negativa se impõe, pois continua a propriedade sendo um direito do indivíduo, mas agora como pessoa e não como proprietário no sentido individualístico de titulação egoística oitocentista. É necessária outra leitura, com os olhos fitos na função social do bem, conforme a sua natureza.
Na interpretação da norma jurídica, deve-se buscar sempre seu sentido atual, adquirindo conteúdos novos, pois o seu texto nada mais é do que um complexo de palavras, haja vista sua constante evolução, respondendo pelas novas necessidades e pelos novos problemas jurídicos decorrentes da mudança do tempo, com significações novas[36] que, às vezes, quando da edição da norma, sequer se podia pensar nelas. É a interpretação e leitura que mantêm o direito vivo.
A característica do direito de propriedade mais afetada pelo princípio da função social foi o de ser um direito um direito absoluto, no sentido de sua utilização ampla, irrestrita e ilimitada pelo titular.
Na dicção de Caio Mario, “o que é certo, absolutamente certo, é que a propriedade cada vez mais perde o caráter excessivamente individualista que raiava pelo absoluto. Cada vez mais se acentuará a sua função social, marcando a tendência crescente de subordinar o seu uso a parâmetros condizentes com o respeito aos direitos alheios e às limitações, em benefício da coletividade.”[37]
Tepedino e Schreiber salientam que a propriedade afasta-se de sua tradicional feição “de direito subjetivo absoluto, ou ainda, limitado apenas negativamente, para converter-se em uma situação jurídica complexa, que enfeixa poderes, deveres, ônus e obrigações...”[38]
Nesse ponto interessante a observação de José Afonso da Silva, para quem os conservadores da constituinte insistiram para “que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que com isso estavam relativizando o conceito de propriedade.”[39]
VI - A função social integrada à estrutura e ao conceito de propriedade.
Deve-se também estabelecer uma segunda premissa em tema de função social: ser ela (a função) parte integrante (essencial) da estrutura, do conteúdo do direito, influenciando na sua caraterização e no seu conceito. Em outras palavras, impregnando o direito de propriedade ou, de outro modo, ser parte integrante do complexo direito de propriedade, impondo-lhe um novo significado.
O legislador constituinte não disse que esta ou aquela propriedade atenderá a sua função social, mas disse que o direito de propriedade que ele garante deve atender à sua função social tenha ela o objeto que tiver.
A premissa, como dito acima, é aquela que enquadra o princípio da função social como parte integrante do direito de propriedade, como elemento de sua estrutura, conformando-a, atuando de dentro para fora e não como os limites, que são exteriores e, portanto, de fora para dentro. Tal questão não é meramente acadêmica, tendo grande importância prática nas consequências que acarreta ao próprio direito o descumprimento de sua função social.
É conhecida a classificação que examina os institutos jurídicos levando-se em consideração dois elementos fundamentais, a saber: a estrutura e a função. Na lição de Perlingieri “estrutura e função respondem a duas indagações que se põem em torno do fato. O “como é?” Evidencia a estrutura, e o “para que serve?” Evidencia a função”.[40]
Pode-se afirmar, com segurança, que a função social não é limite ao direito de propriedade, mas faz parte de seu conteúdo, fundindo-se "com o próprio núcleo do conceito de propriedade"[41], erigindo-se “numa das vigas mestras de nossa ordem econômica e social."[42]
Laura B. Varela e Marcos Ludwig salientam que a função social é a essência dinâmica da estrutura jurídica, afastando deste modo a tradicional teoria dos limites, que são externos. Lembra-se, deste modo, que a “reconstrução do direito de propriedade, estrutura fundamentalmente civil, tem sua essência dinâmica na função social.”[43] É essa essência dinâmica que impõe ao titular a necessidade de atuar positivamente na direção do cumprimento da função social do bem de sua titularidade.
Isabel Vaz assinala que a “idéia de propriedade, na atual Constituição, foi inseparavelmente concebida ao lado da idéia de função social, acarretando consequências jurídicas até então inexistentes.”[44]A função social “é intrínseca à propriedade privada. As concepções individualistas sucumbiram ante a força das pressões sociais em prol de sua democratização.”[45]
VII – O cumprimento da função social.
O princípio da função social, como se disse, não tem o sentido de estabelecer limites ao direito de propriedade, pois estes têm conteúdo apenas negativo, bem próximo da visão tradicional, própria do exercício do poder de polícia de administração[46], mas imprime-lhe concepção positiva própria de princípios constitucionais impositivos. Assume, portanto, “um papel do tipo promocional”, atuando como conformador da lei ordinária ao conteúdo constitucional, possibilitando o reconhecimento da inconstitucionalidade das leis que o ignorarem, expressa ou implicitamente, servindo de farol iluminador, de interpretação da disciplina proprietária pelo juiz e pelos operadores do direito. Na falta de disposição expressa, representa, ainda, um critério que legitima a analogia e também o afastamento das normas nascidas como expressão do individualismo, servindo também como princípio de valência geral, para o proprietário, quando do exercício de seu direito, abortando os fins antissociais ou não sociais.[47]
Izabel Vaz faz importante distinção entre propriedade estática e propriedade dinâmica. A propriedade estática é aquela que produz frutos, sem que o proprietário tenha de desenvolver alguma atividade para tal. Proporciona ao seu titular, independente de qualquer atuação econômica desenvolvida, os benefícios inerentes à sua própria natureza, tais como aluguel, moradia, rendimentos, dividendos. O aspecto dinâmico repousa na ideia de ação, de atividade econômica organizada.[48]
Funcionalizar determinado instituto é inserir algo dinâmico na sua estrutura. Mesmo na visão “jurídica” de função exige-se uma atividade, que se exercita não no interesse próprio ou não somente no interesse próprio, mas exclusivamente ou conjuntamente no interesse de outrem.
A propriedade estática acima referenciada, pode-se dizer, equipara-se à propriedade individual, que também tem uma função social, em que pese respeitáveis opiniões em contrário. Estar a propriedade produzindo algum fruto para seu titular, sem exploração (no sentido próprio da palavra) de outrem (mão-de-obra escrava, juros extorsivos, aluguéis ou rendas superdimensionadas) ou no exercício de atividade lícita, como utilização direta pelo titular ou por membros de sua família, é indicativo de cumprimento de sua função social.
A função social na propriedade é uma função impulsiva, isto é, impõe ao titular o exercício de uma atividade compatível com o bem objeto de seu direito.
A aplicação de capital próprio (em dinheiro ou de outra espécie) para produzir fruto civil, é legítima, se dentro de certos limites, cumprindo uma função econômica e também social, pela geração de impostos, empregos, pelo fomento ao comércio e à indústria.
Izabel Vaz salienta que o “aperfeiçoamento do conceito de função social se revela quando o legislador impõe, não apenas uma “limitação dimensional” à propriedade, cujo titular sofre as consequências da redução quantitativa de seu patrimônio, mas quando passa a exigir do proprietário uma utilização do imóvel conforme os princípios da função social”.[49]
Fachin salienta que a função social relaciona-se “com o uso da propriedade, alterando, por conseguinte, alguns aspectos pertinentes a essa relação externa que é o seu exercício. E por uso da propriedade, é possível apreender o modo com que são exercitados as faculdades ou os poderes inerentes ao direito da propriedade.”[50]
O uso do bem, que naturalmente se dá pelo exercício da posse, é a parte mais sensível na temática da função social. Como salienta Teori Zavascki, por função social da propriedade “há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de proprietário” e conclui:
“Utilizar bens, ou não utilizá-los, dar-lhes ou não uma destinação que atenda aos interesses sociais, representa atuar no plano real, e não no campo puramente jurídico. A função social da propriedade (que seria melhor entendida no plural, “função social das propriedades”), realiza-se ou não, mediante ato concretos, de parte quem efetivamente tem a disponibilidade física dos bens, ou seja, do possuidor, assim considerado no mais amplo sentido, seja ele titular do direito de propriedade ou não, seja ele detentor ou não de título jurídico a justificar sua posse.”[51]
Carlos Sundfeld ressalta a necessidade de utilização do bem para cumprir a função social: “Ora, se estiver legitimado a apropriar-se de algo, há o indivíduo, obrigatoriamente, de cumprir os interesses sociais que possibilitaram tal legitimação. Para cumpri-los, deve assumir um papel ativo, colocando em atividade a riqueza de que é detentor, em benefício da coletividade. Assim, sendo, pode e deve o ordenamento jurídico impor ao proprietário obrigações de fazer, consistentes na própria utilização da coisa em prol da sociedade.”[52]
Orlando Gomes, escrevendo antes da publicação do atual texto constitucional, foi enfático quanto à obrigação de utilização da coisa em razão da função social:
“Deveres e ônus que reduplicam e são estabelecidos numa escala que vai desde as proibições restritivas do exercício do direito até à condenação da propriedade inerte traduzida na obrigação do proprietário de utilizar seu bem na forma de interesse coletivo. Sua atividade deixa de ser livre em face da operatividade externa da função sobre a estrutura, primando o elemento teleológico sobre o estrutural.”[53]
Como de regra, as expressões utilizadas pelo legislador constitucional a respeito da função social da propriedade estão associadas a uma possível inércia do titular no exercício de seu do direito, impondo-lhe comportamentos positivos, coerentemente com a nova mentalidade de propriedade, cujo direito subjetivo contém um poder-dever ou poder-função[54]. Todavia, por óbvio que, em determinada situação de confronto entre a função social da cidade e a função social da propriedade ou mesmo no confronto entre o exercício da função social por alguém num bem titularizado por outrem, pode implicar em necessidade de comportamento omissivo ou em necessidade de justificar sua inciativa.
Nesse ponto, retornando ao inicio das discussões “modernas” a respeito da função social da propriedade, recorre-se a preocupação, já naquele tempo, que levou Leon Duguit a questionar a inércia do titular do direito que propriedade que tinha campos disponíveis para o cultivo ou imóveis que podiam servir a outrem através da locação.
Afirma ele que não são meros “contratos de derecho privado, sino que forman en su conjunto un verdadero sistema legal”, que “son el sostén de un servicio de utilidad pública”, permitindo a lei a todo inquilino “con la condición de llenar ciertas formalidades, inponer al proprietario la prórroga de su arriendo en las mismas condiciones durante cierto período después de la guerra”, da mesma forma, que não permite que “el importe del alquiler no se fija por el libre juego de los convenios y si por decisión del Poder Público, como una tarifa de servicio público”, e ainda que “el proprietario no está ya en libertad de alquilar o de no alquilar”, deve “alquilar, y a un precio que debe dar a conocer previamente”, podendo “el juez siempre incluso decidir que el precio es excesivo, reducir-lo y condenar al arrendador.”[55]
Ora, entre nós a intervenção do estado no dominio dos contratos se dera de modo mais acentuado exatamente nos contratos de locação de imóveis, primeiro residencial e, depois, nos não residenciais, estabelecendo regras que permitissem a continuidade do vinculo, eliminando a chamada denuncia vazia.
Quantas leis foram editadas, inclusive as chamadas leis temporárias, visando garantir o direito de moradia como a Lei 1.300 de 1950 que devia viger até 31.12.52 conforme previsão do seu artigo 22 e que foi prorrogada pelos menos por oito vezes, até ser revogada pela Lei 4.494 de 25.11.64. Depois a Lei 6.649/79, substituída pela atual Lei 8.245/91, que passou a regular toda locação urbana – residencial e não residencial, que também já experimentou alterações.
Nas chamadas locações comerciais o Decreto 24.150/34 consagrou a ação renovatória. Num primeiro momento (justificável face a intervenção no direito de propriedade, símbolo da liberdade de atuação do homem), com requisitos rígidos (contrato escrito com prazo mínimo de 5 anos de vigência), flexibilizados parcialmente na nova lei. Tal flexibilização se deu em razão da prática dos locadores (que tem a decisão de alugar ou não alugar) de elaborarem contratos com prazos menores para não permitir a renovação compulsória da locação.
O mencionado Dec. 24.150/34, neste aspecto, prestigiando uma outra característica da função social do contrato, preocupou-se em garantir a proteção do fundo de comércio implantado e desenvolvido pelo esforço contínuo e persistente do locatário de imóveis comerciais, de tal sorte que, na hipótese de oposição à renovação compulsória da locação, o locador se via obrigado a indenizar o locatário por todo o investimento e esforço produzido com a finalidade de estabelecer um determinado fundo de comércio de interesse daquela determinada comunidade.
Até mesmo na Lei 8.245/91, que restabeleceu a chamada denuncia vazia, é mister que o contrato residencial tenha sido firmado por pelo menos 30 meses, garantindo uma certa estabilidade no mercado de locações, e possibilitou a revisão trienal do valor locativo para ajustá-lo à realidade mercadológica.
Desse modo, se um imóvel, que tem uma função social a cumprir, não se destina a uso próprio ou específico do proprietário, a única forma de transformar a propriedade estática em dinâmica, e com isso cumprir com a função social da propriedade, é “delegando” a funcionalidade à terceiro. Este, por sua vez, o fará por meio do exercício da posse direta (e.g., locação, comodato, uso, habitação, usufruto, superfície ou concessão de uso para fins de moradia ou para outros fins socialmente relevantes), considerando que o uso do bem – pelo titular ou por outrem – é que possibilitará o cumprimento de sua função social. Desta forma se permitirá sua legitimação como direito.